Entrada LX

Fala, caderno...

Tudo bem? Espero que sim. Cara, que semana tensa... Muito tensa. Aconteceram umas coisinhas meio isoladas, mas, em vez de vir aqui de picadinho pra contar o que foi acontecendo, resolvi esperar acumular e falar tudo de uma vez só, pra te economizar. Acabou que, no final das contas, acumulou coisa demais, eu acho. Mas não tem problema: tô aqui pra isso. Se prepara aí, respira fundo e vem comigo.

Primeira coisa que aconteceu, meio da semana passada: descobriram o canil e fecharam o estabelecimento. Raquel me ligou na manhã de quarta-feira me contando que os policiais chegaram lá na hora do almoço, mais ou menos (sorte ou azar que não tem cliente lá a essa hora) e trouxeram o negócio abaixo. Só a Madame Cécile estava lá (os seguranças só chegam à noite e ficam até a manhã do dia seguinte, pelo visto, tipo doze por trinta e seis. O barman também não estava e eu achei bom que não estivesse; bonito demais pra ir preso). Vasculharam o lugar todo em busca de sei lá o que, prenderam a Madame e levaram as meninas pra algum tipo de albergue. Como previ, acho que o governo da cidade (ou do estado ou do país) vai fazer alguma coisa pra ajudá-las. Raquel me ligou contando isso e disse que volta pra casa assim que o processo acabar, porque ela se comprometeu a ajudar no que precisasse. Ofereci moradia pra ela aqui, mas parece que esse albergue vai mantê-las por um tempo sem que elas precisem se preocupar com despesas. Não tenho mais notícias da Madame; sei que ela foi presa temporaria ou preventivamente, que nem o desgraçado.

Na sexta-feira da mesma semana (semana passada), recebi uma carta do Ministério Público. Antes de falar disso, vamos à senhora minha mãe, dona Leonor. Ela passou alguns dias na casa da minha vó enquanto os “paparazzi” não davam sossego lá na casa dela com o desgraçado. Eu fui lá alguns dias e, parece, eles já desistiram de mexericar — também, a notícia já correu até o noticiário nacional, então não tem muito mais o que eles quererem saber lá na casa. Em visita à casa da minha avó, sentei, então, pra tentar conversar com a minha mãe sobre isso tudo pela primeira vez. Ela estava meio que em estado de choque, evitando falar no assunto, mas era necessário. Ela me contou que, na mesma noite do dia do acontecido, última vez que estive aqui aliás, o desgraçado ligou pra ela da cadeia. “Cadeia” não: quartel; ele não está na cadeia porque tem ensino superior completo e é membro da polícia; foi parar no quartel. Ligou pra ela, pediu pra ela entrar em contato com o doutor Pedrosa, coisa que ela já tinha feito, e afirmou veementemente que tudo isso é um equívoco gravíssimo, que ele vai processar quem quer que seja que tenha levantado essa falsa denúncia contra ele. Não se admire se eu disser que minha mãe acreditou piamente no que ele disse, porque ela acreditou. “Mãe, você tem assistido o noticiário?”, perguntei, tentando ser o mais didático possível. Ela me lembrou muito a mãe do Bernardo dizendo que “Deus é maior do que essa sua Ciência”, como se a palavra do Lúcio valesse mais do que o que a televisão mostra. Ela não tem assistido o noticiário mesmo, porque toda hora eles estão falando disso. Aproveitei a deixa e expliquei calmamente: “Então, mãe: você sabe por que o Lúcio foi preso?”. Ela balançou a cabeça negativamente, ainda insistindo em não falar sobre o assunto. “O juiz só expede ordem de prisão preventiva pra alguém que já tem motivo o bastante pra estar preso, mãe. Se fosse uma mera suspeita, ele estaria em liberdade... O nome já diz: ‘preventiva’: prevenir que ele faça alguma coisa que possa prejudicar as investigações ou alguém que esteja envolvido”. E, novamente, ela desviava do assunto.

Daí você me pergunta: “por que você não contou logo que foi você que denunciou?” e eu respondo: porque, pra isso, eu teria que dizer que obtive uma confissão da própria boca do desgraçado no momento em que nós dois estávamos transando feito cães. Não dava pra dizer isso à minha mãe naquele momento, então tive de usar meios que a convencessem de que ele não era o santo em que ela acreditava sem que eu precisasse expor esse detalhe no meio da prosa. Mas não adiantou: ela continuava acreditando que ele era inocente e que logo isso tudo seria esclarecido.

Pois bem, voltemos à minha carta do Ministério Público: na sexta, chegou uma intimação pra mim. Daí eu me dei conta de que é lógico que eu seria intimado, afinal havia um vídeo confessional em que eu e o desgraçado aparecíamos e essa era a maior prova de que eu dispunha, portanto era de se esperar que eu haveria de comparecer ao tribunal pra prestar esclarecimentos, haja vista que, no vídeo, eu passei praticamente minha ficha de identificação completa. Dito e feito: lá estava minha intimação pra ser ouvido em tribunal na terça-feira da semana seguinte, que é hoje.

Olha, acho que essa foi uma das experiências mais tensas da minha vida. Sabe “O Exorcismo de Emily Rose”?, aquelas cenas de tribunal em que tem os counselors, a juíza, o júri, o réu e as testemunhas ao lado da juíza? Me lembrei da doutora indiana que defende que a causa da morte da Emily foi o Gambutrol, e o counselor bigodudo é contra o que ela diz. O advogado do desgraçado, doutor Pedrosa, era o bigodudo; o procurador era a advogada de defesa, aquela loirinha. Foi muito tenso, ainda mais quando eles fazem a gente colocar a mão em cima da Bíblia e jurar por Deus que falaremos a verdade somente a verdade nada mais que a verdade amém. Lógico que eu não ia mentir nada, mas né, nunca se sabe.

Ao julgamento. Foi de manhã. Liguei pro Paulo, antes, pra pedir uns conselhos, e ele me falou pra ficar tranquilo e dizer a verdade, que eu não tinha nada a perder e que daria tudo certo. Na verdade eu queria que o Paulo fosse comigo, pra me dar um apoio moral, mas não deu. Por outro lado, infelizmente, o doutor Pedrosa conseguiu fazer minha mãe participar da audiência como espectadora, ou seja: eu teria que falar tudo que eu teria que falar não só na frente do desgraçado, mas também na frente dela. E, olha, foi um negócio meio barra pesada, porque eu teria que falar de uma vez tudo que eu havia tentado esconder até então.

O promotor era mais camarada. “Mais camarada” no sentido de que parecia estar do meu lado. O filho da mãe do Pedrosa me fazia umas perguntas que, em vez de defender o desgraçado, pareciam fazer com que eu me incriminasse também. Sorte que o promotor sempre protestava e ganhava. A juíza era uma mulher ruiva com uma cara muito brava e óculos redondos, que não falava muito; só escutava. E, bem, tive que, basicamente, contar a história inteira: que eu sou garoto de programa, que eu tinha um cliente chamado JP, que esse cliente me levou pra esse lugar chamado de ‘canil’, que lá eu conheci uma menina chamada Clarissa, com quem, um dia, me encontrei e ela me disse que havia fugido do canil e me explicado que lá é um tipo de cativeiro; que ela me disse que o chefe da quadrilha se apresentou como ‘galo’, que eu associei a “Gallo”, que é o sobrenome do Lúcio; que mostrei uma foto a Clarissa e ela reconheceu, e eu comecei a procurar provas que pudessem incriminá-lo, até que encontrei aquele cartão de pet shop que tinha um número para o qual eu liguei e conversei com alguém que me fez entrar no “clube” sem muita burocracia e depois marquei um flagra e levei o desgraçado pra cama pra fazê-lo confessar; que gravei e entreguei tudo à Corregedoria com a ajuda de um amigo advogado. O desgraçado me olhava com um olhar que eu não consigo nem explicar, caderno. Se eu conseguisse sentir qualquer sentimento bom por ele, eu teria pena, ainda mais se essa história de ele estar apaixonado por mim for verdade. Eu sentiria pena. Minha mãe levantou da sala e saiu antes mesmo de eu terminar; ali eu já soube que nós teríamos muito o que conversar depois. A juíza me olhava como se lesse minha alma. Pedrosa andava de um lado pro outro me fazendo perguntas como “Então quer dizer que, a partir de certo momento, você começou a fazer parte do canil?”; “Quem garante que você, enquanto garoto de programa, não sabia da existência desse lugar antes de conhecer esse tal JP?” [???], “Por que você praticou ato sexual com o seu padrasto pra conseguir uma confissão?” [??????], “Juíza, meu cliente pode ter sido levado a dizer coisas movido pelo impulso sexual” [???????????]. Eu não sei quanto eles vão pagar pra esse advogado, mas acho que o título de jurista dele deveria ser cassado. Ainda bem que o promotor protestava bastante e a juíza geralmente concedia. Mas eu o entendo, de certa forma: defender réu confesso deve ser um negócio difícil. Curioso foi que o desgraçado denegou o tempo inteiro: na gravação (que, graças ao bom Deus, não foi exibida em momento nenhum, nem em áudio nem em vídeo), ele me explica meticulosamente como funciona o esquema; pra minha mãe e pro advogado, ele se diz inocente.

Fiquei mais ou menos uma hora e meia sendo interrogado. Acho que fiz um bom trabalho. Não sei se eu fui o primeiro a ser ouvido, mas acredito que essa história ainda vá render por um tempinho. Eles têm que encontrar os outros membros da quadrilha, ver que crimes cada um cometeu, julgar individualmente, ouvir mais testemunhas e tal. Essa, acredito eu, foi só a primeira de algumas audiências que vão acontecer. Talvez chamem até minha mãe, que é uma das únicas, senão a única, pessoa que acredita no que o desgraçado diz. Enfim. Saindo da sala da audiência, encontrei-a sentada em uma antessala perto da saída do prédio. Um monte de homens de terno e gravata andando pra lá e pra cá; eu já cansado da sabatina, e ela parecendo a viúva solitária sentada sozinha na antessala. Me aproximei e me sentei ao lado dela. Respirei fundo, tentando evitar olhá-la. Assim que eu me sentei, ela se levantou e disse: “Vamos embora daqui”. Então me levantei novamente e nós saímos do tribunal. Fomos andando, em silêncio, meio sem rumo. Acabamos parando num café parecido com o bistrô do Bernardo. Minha mãe ainda não havia dito absolutamente nada; andava com os braços cruzados, cabeça meio baixa. Não pediu nada. Eu estava com fome, então pedi café e um folheado que estava com uma cara muito boa. Nos sentamos em uma das mesas do piso superior.

Mantivemos o silêncio. Minha mãe, com os olhos marejados, mexia nas unhas e não dizia nada. Eu comia esperando que ela dissesse alguma coisa, ou tentando encontrar alguma coisa pra dizer, mas não estava sendo muito fácil nem pra mim nem pra ela. Quando acabei de engolir o último pedaço do folheado e tomar o último gole de café, perguntei, finalmente: “Não quer falar nada sobre hoje?”. Ela me fitou os olhos profundamente, com o cenho carregado de tristeza e decepção. “Por que você fez isso comigo, Daniel?”.

Eu esperava que ela fizesse qualquer pergunta, menos essa.

— O que eu fiz com você?... Não. Eu não acredito que você vai defender esse cara, mãe.

— Ele é meu marido, Daniel!

— Ele é um criminoso, mãe! Você não ouviu o que eu contei no tribunal?!

— Você foi pra cama com o meu marido, Daniel! — ela gritou e ameaçou chorar; sorte que o café estava quase vazio.

— Eu não tive escolha, mãe! Eu precisava fazer ele confessar! Esse foi o único jeito!

— Você me traiu com o meu próprio marido!

— Não! Foi o seu marido que te traiu com o seu próprio filho! Mãe! Você não vê?! Você se casou com um monstro! e por mais que eu esfregue a verdade na sua cara você se recusa a ver o que é óbvio! O Lúcio é um bandido, Leonor! Um bandido! Ele está preso por formação de quadrilha, sequestro, cárcere privado, facilitação de prostituição! Você sabe o que isso quer dizer? Ele era chefe de um bando que traficava e prostituía mulheres! Onde você estava que você não ouviu isso?! Acorda, Leonor!!!

Nesse momento eu já estava bem exaltado. Minha mãe é uma idiota de marca maior; não adianta tentar mostrar as coisas: ela só vê o que ela quer. “Para de falar essas coisas!”, ela dizia. Eu já tinha terminado. Daí ela começou a chorar. E chorou, chorou o quanto quis, e o choro dela não me comoveu, como quase sempre. Deixei ela chorar o quanto ela quis e permaneci quieto, esperando pacientemente. “Me leva pra casa da sua avó”, ela pediu. Assim o fiz. Voltamos pro estacionamento onde ela havia deixado o carro quando veio assistir ao julgamento, levei-a até a casa da minha avó — que, ao contrário da minha mãe, estava muito mais ciente e inconformada com tudo isso —, voltei pra casa de ônibus e agora estou aqui te contando isso tudo.

Estou esgotado psicologicamente. Depois que cheguei, só tomei um banho e vim direto pra cá. O Bruno saiu, não chegou ainda; acho que vou tirar um cochilo na cama dele enquanto ele não volta. Ainda não sei quanto tempo leva até isso tudo acabar, mas espero que não demore. E espero que minha mãe deixe de ser imbecil por um tempo e trate de entender o que ela se recusa a entender. Ela e minha vó conversam muito; espero que isso facilite as coisas. Vou mandar mensagem pra Raquel e pedir pra ela me manter informado quando for a vez dela depor. Ainda não falei com o Paulo sobre a audiência... Ai ai, quanta coisa pra fazer, né? Mas, como diz aquela música, “Bem, a canção está chegando ao fim”. Que acabe logo. E que o próximo CD seja menos trágico do que esse, porque, olha, haja emocional. Vou ficando por aqui. Vou ver se demoro menos pra postar a próxima entrada, tá? Se alguma coisa acontecer, corro aqui e te conto. Um abraço e se cuida.

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