Entrada LIV

Na manhã do dia 13 de fevereiro de 2013, este arquivo de computador foi encontrado e lido pela primeira vez. Nele, a polícia encontrou evidências que levavam a crer que o responsável pelo assassinato de Daniel Braga Vicentin fosse Lúcio Gallo Mendonça. Após investigações, baseando-se nos relatos fiéis contidos no diário de Daniel, a polícia conseguiu identificar e desarticular a quadrilha que administrava o clube clandestino de prostituição do qual Lúcio é acusado de ser mandante e libertar as garotas de programa, que eram reféns da quadrilha. Quatro pessoas foram presas. Lúcio está foragido desde então. O corpo de Daniel, encontrado por catadores em um aterro sanitário, foi cremado e suas cinzas foram espalhadas pela praia da cidade de Atma por seu amigo Bruno, assim como aconteceu naquele filme dos caubóis viados, só que na montanha.

TE PEGUEI! HAAAAHAHAHAHA!

Fala, cadernooo!!! EU TÔ VIVO, CARA! VIVOOO!!! SOBREVIVI À MINHA ÚLTIMA MISSÃO! HAAA!!!

CARA! Que loucura, meu, que loucura! Ó, a noite passada deve ter sido a mais intensa da minha vida. Sério. E olha que eu já tive muitas noites intensas pros meus poucos anos de idade. Muita adrenalina na veia, caderno. Senta aí que eu vou te contar desde o começo.

Bom, como eu disse aqui anteontem, poupei umas partes técnicas do meu plano porque eu não sabia se hoje eu acordaria comendo capim pela raiz, mas aqui está: conversando com o pessoal do grupo (aquele GPs em Taigo), descobri quais são os hotéis que o pessoal mais usa aqui em Taigo. Escolhi um dos mais baratinhos porque, pra servir pro fim que eu precisava, não podia ser nada de muito chique ou minimamente frequentável, não: quanto mais vagabundinho, melhor. Encontrei um lá nas imediações do centro da cidade mesmo e fiz minha reserva. Essa era a primeira parte do plano: montar a cena do crime.

Esperei anoitecer e, lá pelas seis, saí de casa. O Bruno estava mais nervoso do que eu, coitado: ficava andando de um lado pro outro, entrando e saindo do quarto dele enquanto eu me arrumava no meu. “Relaxa, Bru, vai dar tudo certo”, eu dizia, tentando acalmá-lo. Mas ele estava inacalmável. Terminei de me vestir e ele se sentou no sofá da sala, cobrindo a boca com as duas mãos. “Isso é uma missão suicida, Daniel”, ele disse e eu sabia que ele tinha razão. Parei em frente a ele e me ajoelhei. Segurei os pulsos dele e disse com toda minha verdade: “Eu vou voltar. Confia em mim”. Não dava pra confiar em mim, eu sabia. Ele se levantou e eu também. Nos abraçamos forte, como se estivéssemos nos despedindo pela última vez. “Me dá notícias”, ele pediu. “Pode deixar...”. Afastei meu corpo do dele e segurei seu rosto com as minhas duas mãos. Os olhos dele pareciam os de uma criança assustada e chorosa. Sorri, tentando trazer algum conforto. “Te amo”, eu disse serenamente, mas não sei se o efeito foi muito certeiro, porque os olhos dele se encheram de lágrimas que não caíram. Ele meneou a cabeça e nós trocamos um beijo rápido, mas muito sincero. “Também te amo”, ele respondeu num quase sussurro. Aí eu fui obrigado a beijá-lo pra valer, é claro, afinal não é todo dia que se encontra o Bruno com essa disposição pra falar o que eu quero ouvir. “Eu volto, tá?”, eu disse e ele balançou a cabeça mais uma vez. Saí de casa com o coração na mão por ter deixado o Bruno daquele jeito...

Eu havia falado com o Paulo e ele se dispôs a me ajudar com mais alguns detalhes. Ele tem uma câmera boa, coisa que eu não tenho, e carro, idem. Ele passou aqui em casa no horário que combinamos e me levou até o canil. Durante o caminho, imagine-se, ele fez um milhão de recomendações, todo paternalista. Mas a preocupação dele e do Bruno são perfeitamente justificáveis. Ficou combinado de ele me esperar do lado de fora do canil enquanto eu entrava e falava com o desgraçado. Enquanto isso, nos manteríamos em contato por telefone, caso algo inesperado acontecesse. E assim foi. Desci do carro, fui até a casa, interfonei, entrei, cumprimentei os caras da recepção e entrei — já devem ter gravado minha cara. Mais uma vez, eu estava lá dentro. Eram oito da noite. Caminhei com cautela, respirando fundo, contando cada passo, espreitando, querendo encontrar antes de ser encontrado. Madame estava conversando com uns coroas no meio dos sofás, mas não me viu. Vi Raquel se aproximando e, assim que me viu, ela arregalou os olhos e entreabriu a boca, não de susto, mas de alerta: “Ele está aqui”, li nos lábios dela. Meu coração já estava a mil por hora. Meu discurso já estava na ponta da língua. Só faltava encontrá-lo.

Por mais que eu tenha tentado escapar, a cafetina insuportável me encontrou e veio falar comigo. Não sei se ela fala com todos os clientes que entram na casa, mas ela parecia ter uma predileção por mim. Conversava cheia de mãos, coisa que eu detesto. Asquerosa. Conversa vai, conversa vem, ela me deixou em paz, finalmente, e eu fui procurar o bar.

E lá estava ele.

E meu corpo entrou em erupção de novo. Meu, muito ruim sentir esses negócios, sério. Só não me deu dor de barriga; essa reação eu não tenho, ainda bem, que uma dor de barriga era a última coisa de que eu precisava. Respirei fundo algumas vezes. Ele bebia sozinho, não sei por que. Era agora ou nunca. Tomei minha dose de coragem e ousadia e fui, a passos lentos, em direção a ele, com as mãos geladas, os braços formigando, meu cérebro explodindo em sinapses. Quando estava a três passos de distância, vesti minha máscara de teatro grego imaginária e chamei: “Boa noite, papai”, e me apoiei de lado, escorado no balcão do bar pelo cotovelo.

O desgraçado olhou em minha direção rapidamente. Eu sorria. Os olhos dele pareciam ter visto o Diabo. “Daniel?!”, perguntou retoricamente, levantando-se. Continuei sorrindo, tentando mascarar minha tempestade de nervos. “O que você está fazendo aqui?!”, ele perguntou, visivelmente furioso, mas sem se alterar. “Eu faço parte daqui... Você não sabia?!”, respondi, cinicamente. Ele agarrou meu braço com força e eu o olhei me fazendo de incrédulo. “O que foi, Gallo? Por que você está tão bravinho?”, perguntei ainda mais cínico, e ele agarrou meu braço com mais força. “Você não sabe com quem está lidando, seu moleque”, ele disse com os dentes cerrados. “Sei, sei muito bem. Aliás, é por isso que eu estou aqui hoje... Queria conversar, sabe?”. Ele não largava meu braço. “Mas você precisa soltar meu braço e se comportar que nem gente grande primeiro”, continuei. Ele me empurrou pra longe. A cara dele estava impagável: espumava de ódio. Acho que isso já era o bastante. “Olha só”, eu disse, “me encontra neste lugar aqui daqui a meia hora, pode ser? A casa do Bruno tá em reforma, não dá pra gente conversar lá. Enquanto isso eu tô nesse hotel... Lá a gente pode conversar com mais calma, pode ser?”, eu disse, entregando a ele um papel com o endereço, que eu havia anotado antes de sair de casa. Ele olhou pra mim, olhou pro papel, me matou com os olhos e não falou nada. Beijei meus dedos e os levei até a boca dele, só pra provocar. “Até daqui a pouco?”, perguntei. Ele não respondeu, mas eu sabia que ele não perderia a chance de me matar.

Dado meu primeiro recado, saí do canil rapidamente. Dei boa noite aos seguranças, voltei pro carro correndo e nele Paulo me esperava. “E aí?”, ele perguntou. “Pode seguir pro hotel. Ele vai”. “Tem certeza?”. “Absoluta”. Então fomos. Os trinta minutos que eu dei pro desgraçado seriam o bastante pra eu me organizar no quarto do hotel e fazer os procedimentos preliminares. Paulo dirigiu até lá o mais rápido que pôde. Quando chegamos, ele estacionou na rua ao lado; a janela do quarto em que eu me instalei dava pra essa rua. Combinei com o Paulo que, se algo desse errado, eu gritaria e ele deveria chamar a polícia. Peguei a câmera com ele, trocamos um abraço rápido após um desejo de boa sorte, entrei no hotel, avisei o tiozinho da recepção que daqui a pouco um homem chegaria perguntando por mim e que ele podia autorizar a entrada.

Fui pro quarto. Respirei fundo, me recompus, peguei a câmera e coloquei-a escondida atrás de um vaso sobre o qual havia uma toalha de banho. Deixei espaço pra restar só uma fresta estreita o bastante pra câmera capturar a cama, que ficava bem à frente, e duas pessoas de pé: eu e o desgraçado. Depois, peguei um celular antigo e coloquei bem ao pé da cama, sob ela, pra gravar nossas conversas quando estivéssemos deitados, assim eu teria o registro tanto do vídeo da câmera quanto do áudio pelo celular. Como eu tenho os arquivos aqui, vou poder transcrever o diálogo exatamente como ele aconteceu. Vou pular as partes que não importam tanto, ok?

A primeira coisa que fiz foi gravar um disclaimer: “Oi. Hoje é dia 9 de fevereiro de 2013, agora são oito horas e cinquenta e três minutos da noite; meu nome é Daniel Braga Vicentin, eu tenho 22 anos, estou agora no Hotel dos Girassóis, na rua Abigail Fontana, número 975. Estou gravando este vídeo porque daqui a pouco eu vou receber, aqui neste quarto, Lúcio Gallo Mendonça, delegado da cidade de Taigo, que eu descobri estar envolvido em um esquema de tráfico e prostituição de mulheres. Lúcio é meu padrasto e é o mandante dessa quadrilha. Eu vou tentar, hoje, conseguir uma confissão dele, dizendo que estou interessado em participar do esquema. Tudo isso vai ser registrado em áudio e vídeo e encaminhado imediatamente à Corregedoria do estado pra investigação futura”. Me senti um repórter fazendo cobertura de escândalo. Me sentei à cama e fiquei conversando com a câmera feito um idiota. Praticamente contei pra câmera tudo que eu já te contei aqui. Depois fui à janela, acenei pro Paulo pra certificá-lo de que tudo ainda estava bem e, minutos depois, ouço batidas fortes na porta.

Meu coração deu outro pulo. Agora era a hora da verdade.

Acenei pra câmera pra mostrar que era ele quem estava chegando. Respirei fundo, abri a porta e logo o vi, enorme, à minha frente. Lúcio entrou no quarto e, logo de cara, já me deu um soco, que me fez cair deitado de bruços na cama. Quando me virei, ele estava parado, de pé, à minha frente, me apontando uma arma. “Eu já te dei uma chance, moleque, não vou te dar outra”, e engatilhou a arma. Vi a Morte me esperando ao lado da porta. Levantei as mãos em sinal de rendição e voltei com agilidade inacreditável ao meu papel de lolito interesseiro: “Ei, ei! Calma aí, papai!”, disse com um sorriso de lado sem alterar meu tom de voz. O desgraçado permaneceu imóvel à minha frente. “Abaixa essa arma, eu quero conversar”, continuei, ainda simulando uma calma que não existia em mim — já falei que uma arma apontada pra sua cara é absolutamente aterrorizante? O olhar dele continuava medonho. Ele não se mexia; a arma também não. Eu precisava me arriscar mais; ficar parado aumentava minhas chances de levar um tiro (?). Levei uma mão até a parte do rosto em que ele me acertou o soco. Não doía, porque ele pegou de mau jeito, mas adicionei o elemento à cena porque precisava fazê-lo tirar aquela arma da minha frente: “Você bate bem, sabia?”, falei, dando uma risadinha e me sentando na cama. Ele deu um passo pra trás. O corpo dele bloqueava parcialmente a visão da câmera. “Deixa essa arma ali, vai”, eu disse, apontando para a cômoda com a cabeça, “senta aqui com seu filhote”, dei dois tapinhas sobre a cama. Ele respirava forte e não falava nada. Então, num movimento rápido, relaxou o braço e fez o que eu pedi: deixou a arma sobre a cômoda. Respirei fundo: minha vida estava a salvo pelos próximos minutos.

Lúcio se aproximou e se sentou ao meu lado com os braços relaxados entre as coxas. Olhei-o, sempre sorrindo. “Não ganho um beijo?”, perguntei. Ele não respondeu, só manteve os olhos em mim, que escaneava cada centímetro do rosto dele, tentando ler o que se passava na cabeça dele. “Vou te dar cinco minutos”, ele disse. “Para...?”, perguntei, morrendo de medo, mas parecendo seguro. “Pra me contar como chegou àquele lugar e o que quer comigo. Depois disso, eu vou meter uma bala na sua cabeça e voltar pra casa depois de te deixar na primeira lata de lixo que eu encontrar”. Olha, ele falou isso muito sério, diferentemente das outras vezes. Eu acreditei. Juro. E aí eu vi a Morte de novo, sentada o nosso lado. Comecei a me desesperar por dentro. Minha tentativa de seduzir não estava funcionando, mas era o único caminho que eu conhecia. Numa jogada cega, me deitei na cama, fingindo frustração, e disse, bufando: “Que pena... Pensei que a gente ainda fosse se divertir um pouco hoje”. Não foram palavras muito sábias. Num movimento rápido, ele se aproximou de mim, levou uma mão ao meu pescoço e começou a me enforcar pra valer. A Morte estava atrás dele. “Seu tempo está passando”, ele disse, ainda sério e com aquele mesmo olhar assassino. Comecei a sentir o sangue subir pra cabeça e ficar tonto com a falta de ar, então ele me soltou. Rolei pela cama e tossi por alguns segundos. Eu precisava mudar de tática rapidamente, porque parecia que meu tempo estava mesmo acabando.

Saí do meu papel de enteado libertino e fiquei mais sério. Em tom de simulada decepção, perguntei em voz chorosa: “Por que você tá me tratando assim?”. Uma sobrancelha dele se mexeu involuntariamente e o olhar se atenuou sutilmente. Aproveitei esse sinal súbito e continuei: “Eu só queria fazer parte!...”. Ele se levantou. Caminhou em direção à cômoda, pegou a arma novamente, depois foi à janela e olhou pra fora. Ainda mudo, ele se virou pra mim e cruzou os braços, olhando para o relógio. Ele parecia definitivamente decidido a me matar. Meu tempo estava acabando e eu ainda não havia encontrado o fio da meada.

Então tive um lampejo. Era minha última alternativa. Ainda nessa ópera canastrona, comecei a tecer um verdadeiro tratado de lamentações, e, no ponto alto da ária, eu disse: “Você acha que eu quero o quê? Acabar com a sua vida? Você não vê, Lúcio, que eu te amo?!”.

Boom! Parem os relógios! Cortem os telefones! Calem o cão! Silenciem os pianos!  

“O que você disse?”. A expressão do desgraçado mudou imediatamente. Ele, agora, me olhava com o mesmo olhar que me olhou quando o encontrei no bar: atônito, aterrado, incrédulo! Consegui, caderno! Fisguei o filho da puta! “Isso mesmo que você ouviu!”, falei em voz bem alta, quase chorando. Ele se aproximou de mim novamente. Sentou-se à beirada da cama de novo, deixando a arma no chão. Virei o rosto como se estivesse enxugando minhas “lágrimas” e ele me tocou o braço. “Repete”, pediu depois de se recompor e voltar ao papel de vilão assassino. “Eu te amo, Lúcio...”, repeti sem dificuldade. Ele parecia não acreditar no que ouvia — não por achar que eu mentia. Abaixei a cabeça, dando continuidade ao meu ato cênico que, agora, parecia estar caminhando ao grand finale que eu queria. Ligeiramente, ele levou uma mão ao meu rosto e me beijou aquele beijo que você já conhece. E eu retribuí como uma princesa que recebe seu príncipe encantado. Isso tudo bem diante das lentes da câmera. Logo nos deitamos e continuamos nos beijando; ele por cima de mim, flexionado, eu por baixo, abraçando-o, cheio de mãos.

E então houve o que, pra mim, foi o momento mais alto da noite:

Eu te amo”, o desgraçado disse, parando de me beijar por um segundo.

Você ouve, caderno? Você consegue ouvir a gargalhada que a minha alma deu quando eu ouvi isso? “Eu te amo”! Imbecil! Idiota! Patético! Otário! Amador! HAHAHAHA! Caiu na minha farsa tão, mas tão, mas TÃO facilmente que me fez parecer um gênio! A vitória gritou tão alto dentro de mim que o meu corpo todo foi invadido por uma onda devastadora de desejo, que me fez partir pro ataque sem mais delongas: era a hora de selarmos aquilo de uma vez por todas.

Apressadamente, desabotoei a camisa do desgraçado, revelando seu peito liso e torneado. “Eu sou seu, Lúcio; só seu!”, eu disse, e ele me beijou com ainda mais ânsia. O corpo pesado dele sobre o meu praticamente me asfixiava, mas eu não me importava: eu queria mais! Sem sair de cima de mim, ele terminou de tirar a camisa e a jogou para o canto. Eu senti o pau duro dele roçar contra o meu, no mesmo estado. Eu pressionava meu corpo contra o dele enquanto nossas línguas se exploravam vorazmente.

Nos sentamos na cama eu tirei minha camiseta, sentando-me sobre ele em seguida. Tirei meu cinto, o dele, joguei ambos para o lado, deitei meu corpo sobre o dele e voltei a beijá-lo. Eu beijava a boca, o rosto, percorria a língua pelo pescoço, pelo lóbulo da orelha, depois descia até o peito, voltava e recomeçava. Abaixei o zíper da calça dele e afastei o tecido, revelando parte da cueca e daquele volume que me aguardava. Beijei toda a extensão do tronco dele até alcançar seu órgão, duro feito pedra. Então paguei o melhor boquete da minha vida. O desgraçado urrava de prazer, contorcendo o corpo, me agarrando pela cabeça, movimentando a pélvis contra o meu rosto, metendo na minha boca até eu engasgar. E ele queria mais. “Eu vou te foder até você pedir arrego, moleque!”. Ah! Que tesão, caderno! “Vem, papai, fode seu filhote, então!”, ofereci.

Saí de cima dele por um minuto e tirei de dentro da minha carteira uma camisinha e um sachê de gel lubrificante, que eu havia comprado especialmente pra essa ocasião. Ainda nos beijamos mais, e mais, sem pressa, antes de ele vestir o preservativo e lubrificar tanto ele quanto eu. E um ou dois minutos depois ele já estava dentro de mim. Caderno, eu estava tomado de uma sensação tão indescritível que agora, sinceramente, eu sequer me lembro se doeu. Meu corpo estava absorvendo todas as sensações, fossem elas quais fossem, e transformando em tesão: ele poderia ter me enfiado uma faca que eu não sentiria nada além de prazer.

Primeiro foi de quatro. Ele me agarrou pela cintura e fez meu corpo curvar pra baixo segurando minha cabeça em direção ao travesseiro. Me penetrou sem muita cerimônia, mas, como eu disse, nem me lembro se doeu ou não — o lubrificante ajudou bastante, certamente. Começou a meter devagar, mas logo logo já estava a todo vapor. Não era nada parecido com o que eu havia sentido quando experimentei em mim mesmo: dessa vez tinha um corpo humano, não só um pênis — que agora era de carne, não de borracha —; e não só “um pênis”: era o pau do desgraçado entrando e saindo de mim. E, assim como tudo que eu comecei a sentir depois daquele “Eu te amo”, foi sensacional. Pelo menos naquela noite, dar o __ fez todo o sentido do mundo. E eu parecia um animal, feito o Felipe: eu gemia, urrava, pedia mais, e mais forte, e mais! E o desgraçado sobre mim, com o peito colado nas minhas costas, e metendo com vontade, entrando e saindo de mim com vigor, e eu sentindo cada centímetro dele me preenchendo como se o lugar daquele órgão pulsante fosse exatamente lá.

Depois ele se sentou com as costas apoiadas na cabeceira da cama e eu me encaixei nele. AH! Que tesão, caderno! “Isso, moleque: senta na pica do teu papai, senta!”, ele incentivava, e eu obedecia feito um bom filhinho. Se eu tiver sentido alguma dor da qual não me lembro agora, àquela altura ela já devia ter desaparecido, porque, nessa parte, me recordo bem, o negócio ficou insuportavelmente bom: cada vez que eu sentava contra aquele pau duro e praticamente o sentia ir parar no meu umbigo, meu corpo recebia uma descarga de prazer; e cada vez que ele saía de mim, meu corpo o engolia de novo com mais fome, e aquelas descargas vinham, uma atrás da outra, ritmadamente, ao meu comando.

Depois, ele nos deitou frente a frente e me fez dobrar as pernas em direção ao meu peito. Colocou os braços ao meu redor e flexionou o corpo sobre o meu. Eu agarrava o lençol com força, gemendo alto. Ele parecia conseguir colocar o pau inteiro dentro de mim. Ele agora estocava devagar e ia até o fundo; depois tirava, me olhava no fundo dos olhos e colocava de novo, até o talo, e cada vez que ele fazia isso eu sentia que ia gozar — meu pau já estava babando sem que eu nem precisasse tocá-lo. O desgraçado me estapeava o rosto com força e, nesse momento, eu entendi com clareza divina o que o sadomasoquista que eu atendi aquela vez sentia: um tapa nunca é forte o bastante; nem dois, nem três; e um pouco de enforcamento e cuspidas no rosto são humilhantemente, desesperadoramente excitantes.

Por duas vezes ele parou dentro de mim por alguns segundos e eu tive certeza de que iria desmaiar de tanto prazer. E, realmente, não resisti por muito tempo; mal deu pra avisar: acho que nunca gozei tanto. Foram uns quatro ou cinco jatos fortes que me atingiram o peito em cheio.  Quando me viu gozar, o desgraçado gemeu forte junto comigo. Depois, limpou meu peito com a língua e me beijou, me fazendo sentir o gosto do meu próprio esperma, o que não me assustou, porque eu já sei o gosto que eu tenho — e atire a primeira pedra quem nunca. Quando ele gozou, fizemos a mesma coisa e, olha, pra mim foi como beber o néctar dos deuses.

E não demorou nem quinze minutos pra repetirmos a dose, tudo de novo, até a exaustão. Quando já estávamos fartos, nos deitamos, então, um ao lado do outro. O desgraçado acendeu um cigarro (eu não sabia que ele fumava) e ficou olhando pela janela, em silêncio, por um longo tempo. Eu fiquei quieto, sentindo, agora, minha onda de euforia esvaecer lentamente. Aquilo estava demorando mais do que o planejado. Fiquei preocupado com a bateria da câmera e do celular, mas me certifiquei de que as duas estavam cheias antes de começar a gravar. Passados minutos daquele silêncio estranho, o desgraçado disse: “Você não pode fazer parte”. Um clique estalou no meu cérebro e eu me dei conta novamente de que estava ali por um motivo, então aproveitei o gancho e comecei: “Por que não?”, perguntei, abraçando-o e me deitando sobre o ombro dele. Ele soltou mais uma baforada de fumaça e me acolheu no ombro dele, respondendo em seguida: “Porque é perigoso”. “Me explica?”, pedi com voz de cão sem dono.

Então, enquanto eu acariciava seu peito nu e beijava seu corpo e seu pescoço, Lúcio me contou com riqueza de detalhes como o esquema funciona, desde a criação da máfia até a chegada dele à chefia, passando pelo processo de publicações de falsos anúncios, mudanças de nome da agência de fachada, transporte das meninas, manutenção do canil, funções de cada funcionário, ganhos de cada membro, punições por mau-comportamento das garotas, punições por desvios de conduta dos membros da quadrilha (leia-se “morte”) e meu eu-interior regozijava com toda aquela profusão de informações que seriam usadas, fuziladas contra ele. Tudo, caderno: ele contou absolutamente tudo que eu precisava saber. Me deu até vontade de agradecer, cê sabe? A forma que eu encontrei de fazer isso foi dizendo: “Acho que eu vou voltar a morar com vocês”. Ele sorriu, ainda fumando, e continuou: “Acho melhor não. Sua mãe... É melhor a gente não dar bandeira”. “Mas você montou meu quarto de novo, pensei que--”, “Eu fiz isso sabendo que você não ia voltar”. Tá vendo como ele é esperto?... Terminado o cigarro, ele se sentou na beirada da cama, pegou a camisa, guardou a arma e começou a se vestir. “Me encontra no canil sábado que vem no mesmo horário... A gente fala melhor sobre negócios”. Apertou o cinto, ajeitou o cabelo em frente ao espelho e se despediu de mim com um olhar e um sorriso enviesado. Saiu do quarto e fechou a porta.

Caí em mim mais uma vez. Agora tudo estava dito e feito: eu tinha a confissão em áudio e vídeo, tinha o levado pra cama e agora meu padrasto é meu amante. Eu ainda estou digerindo essas informações todas. Você pode imaginar que não está sendo assim tão fácil. Mas o mais importante é que eu consegui, caderno: consegui tudo que eu precisava.

Apareci na janela do quarto e Paulo ainda estava lá, no mesmo lugar. Liguei pra ele, avisei que tinha corrido tudo bem; que ia só tomar um banho antes de descer. Assim fiz. Tomei um banho gelado, lavei corpo e alma, mas parecia que eu ainda conseguia sentir o desgraçado dentro de mim, e odeio admitir, mas a sensação era ótima. Saí do banho, me vesti novamente, recolhi as provas do crime e fui encontrar o Paulo no carro. “E aí?!”, ele perguntou, ansioso. Devolvi a câmera pra ele e disse: “Contém cenas de nudez e sexo explícito. Assista com moderação”. Só aí me dei conta de que aquela gravação não exporia só o desgraçado: me exporia também; e o Paulo me veria dando pro meu padrasto... Meio constrangedor, não? Mas não importa: tudo em nome da justiça.

Depois que saímos do local do crime, Paulo perguntou se eu não queria ir pra algum lugar, beber um pouco, esfriar a cabeça, conversar sobre o que aconteceu pra tirar isso do sistema e eu aceitei. Fomos pra um barzinho perto da casa dele e continuamos o assunto. Ele disse que na segunda-feira ele já dá início no processo todo. Da denúncia ao julgamento leva um tempo, mas, dependendo do andamento da apuração das provas, pela natureza do crime, talvez consigam uma ordem de prisão preventiva contra o desgraçado, pra assegurar que ele não tente nada contra ninguém aqui fora, tipo eu.

O que eu quero ressaltar nessa nossa conversa no bar, porém, é outra coisa. Em dado momento, Paulo perguntou: “E o Bruno?”, simplesmente. “O que é que tem?”, respondi. “Não rola nada entre vocês?”. Não respondi imediatamente. Fiquei alguns segundos pensando e cheguei à conclusão de que, não pela primeira vez, eu não sei o que rola entre a gente. “Por que pergunta?”, respondi, curioso. “Porque é óbvio?”, ele treplicou, me deixando ainda mais curioso. “O Bruno é louco por você, Daniel”. Quase engasguei com a cerveja. “Ele disse isso?!”, perguntei de olhos arregalados. “Não, não; ele jamais diria isso, mas eu percebi”. “Percebeu como? O que ele disse?”, a notícia me deixou um tanto quanto agitado, note. “Ué: lá em Atma, você acha que eu e ele ficávamos conversando sobre o quê?”. “?????”.  “Sobre você, é lógico”.

Caderno, cê tá acompanhando o raciocínio? Por que eu só fui informado disso agora? E por que foi por meio do Paulo? Por que o filho da puta do Bruno nunca me falou nada — aliás, pelo contrário: fica tentando me afastar —? Olha, fiquei meio puto com isso, viu? “Ele nunca me falou nada... O Bruno é bem frio comigo, na verdade”, respondi. “Mesmo? Frio como?”. “Tipo, a gente já se beijou umas três ou quatro vezes, eu acho; e ele sempre tem a capacidade de levantar da cama no dia seguinte como se nada tivesse acontecido!”. Paulo ergueu as sobrancelhas, tomando mais um gole de suco. “Estranho... Mas ele gosta de você. E vocês são lindos juntos”. Sorri e senti meu rosto corar, e percebi que meu sorriso foi por aquele “juntos”. Eu e o Bruno “juntos”, cara. Imaginar nós dois juntos, um ao lado do outro, assistindo o noticiário, indo ao mercado, fazendo almoço aos domingos, tomando café da manhã, faxinando a casa, sentados na areia da praia, nos arrumando pra sair, andando pelo shopping, voltando pra casa, dormindo quietinhos... Paulo estava coberto de razão: nós somos lindos juntos, mas acho que ainda não nos demos conta disso.

Me esqueci completamente de que havia combinado de manter o Bruno informado dos acontecimentos. A noite passou e eu acabei não mandando uma mensagem sequer. Pedi ao Paulo que me trouxesse de volta pra casa. Já passava da meia noite; Bruno devia estar preocupado, embora não tivesse mandado mensagem, mas eu preferi fazer surpresa e voltar pra casa sem aviso. Agradeci o Paulo inúmeras vezes por tudo e trocamos mais um abraço antes de eu descer do carro e entrar em casa.

A luz da sala estava apagada, assim como todas as outras da casa, a TV ligada e Bruno cochilando no sofá. Entrei sem fazer barulho, tranquei a porta e me aproximei dele. Já falei hoje o quanto eu amo esse cara? Já falei quão lindo ele é dormindo? Me agachei em frente a ele e sorri involuntariamente. Levei uma mão até o ombro dele e acariciei devagar; então vi os olhos dele se abrirem devagar e depois se arregalarem, de um segundo pro outro: “Graças a Deus...”, ele murmurou em meio a um suspiro pesado, me puxando para si num abraço desajeitado. “Eu falei que eu ia voltar pra você”, eu disse, beijando-o no rosto três ou quatro vezes. Ele balançou a cabeça e retribuiu meus beijos. “Por que cê tá aqui na sala?”, perguntei. “Não consegui ficar no quarto esperando notícia; vim pra cá”. “Então já pode voltar... Vamo?”. “Uhum...”. Voltamos pro quarto e passamos uma noite inundada de paz. Não transamos, não nos beijamos, não falamos sobre o que ficou do lado de fora da porta da sala: fomos apenas nós dois, juntos, da melhor forma que sabemos ser juntos.

Acordei cedo e vim escrever. Bruno ainda dorme. O dia tá bonito lá fora... Amanhã eu cancelo minha reserva no hotel e vejo o que mais faço com a minha vida. Hoje eu só quero ser feliz e me esquecer das preocupações; eu preciso. De toda forma, sinto que tirei um peso dos meus ombros. Ainda não acabou, eu sei, mas já consigo avistar a linha de chegada. Por ora, vou me sentar na beirada por um instante e recuperar meu fôlego. Tenha um lindo dia, meu amigo. Nos vemos em breve!

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