Entrada LI
Fala, caderno...
Cara, agora o bicho pegou. Tava demorando, né? Não, demorando não tava, mas aconteceu, finalmente: encontrei o que eu precisava. Tudo. E foi mais fácil do que eu imaginei.
Última vez que eu estive aqui, me lembro de ter dito que encontrara algumas coisas suspeitas no quarto do desgraçado: uns números, cartões e tal. Pois bem. Ontem eu tirei uma parte da tarde pra tentar entrar em contato com aqueles números. Por segurança, liguei de um telefone público, porque, né? Melhor não arriscar. Aqui perto de casa tem um. O primeiro que eu procurei saber, claro, foi o que tinha o nome de Cecília. Fiquei um tempo ensaiando um discurso possível antes. Porque, pensa bem. Imagina se a voz que atendesse fosse a da Madame mesmo? O que é que eu ia dizer? Pensei em mudar o tom da voz pra caso ela me reconhecesse. Vai saber, né? Pensei também em simular um engano, pelo menos pra ter um tempo mínimo de diálogo pra reconhecer a voz, se fosse ela. Então liguei. Era um número de celular, já falei? O tom de chamada tocou umas quatro vezes antes de atenderem: “Pronto?”. Meu coração foi parar lá na boca. “Oi... Quem fala?”, perguntei. “Quer falar com quem?”. A voz não era nem grave nem aguda; era uma voz feminina, mas ainda não dava pra identificar se era ou não a Madame. Então perguntei, indo direto ao ponto: “Esse número é da Madame Cécile?”. “Quem?”, a pessoa perguntou. “Madame Cécile”, respondi mais claramente. “Não, filho, não tem ninguém aqui com esse nome”. Suspirei fundo. Definitivamente, não era a Madame quem falava comigo. Me desculpei pelo engano e desliguei o telefone. Primeira evidência, eliminada.
Em seguida, peguei o cartão do pet shop. Havia nele dois números, um fixo e outro, celular. Liguei no fixo e deu que o número não recebe chamadas ou não existe. O celular chamou, chamou, chamou e não atendeu. Temporariamente, desisti. Voltei pra casa então, e continuei fazendo as minhas coisas. Enquanto navegava pela Internet, voltei à minha última evidência, que era o endereço anotado em um pedaço de papel. Busquei no celular a foto que eu havia tirado e digitei no Google. O bairro em que o endereço fica eu conhecia, mas o nome da rua me era estranho. Fui ao Street View e o destino era uma casa normal, como outra qualquer, que poderia até estar associada a alguma coisa, mas definitivamente não era o canil. Suspirei fundo, frustrado. Depois, olhei pro cartão do pet shop sobre a mesa mais uma vez. “Dog Store”, o nome do estabelecimento. Dois telefones, uma imagem da loja e o endereço, que eu também digitei no Google e procurei no Street View.
Agora adivinhe. Adivinhe o que acontece no próximo parágrafo.
No resultado do Street View, não existe nenhum pet shop no endereço indicado: existe uma casa, uma mansão. EXISTE O CANIL, caderno. ENCONTREI! CADERNO, ENCONTREI O CANIL!!! E, meu, o desgraçado foi genial! “Dog Store”. “Loja de cachorro”. Canil. É óbvio! É esse o cartão que eles devem usar pra distribuir entre os membros ou pra quem quiser fazer parte da sociedade! É óbvio! Quem é que desconfiaria que um cartão de visitas de pet shop seria, na verdade, um convite pra um clube secreto de prostituição?! Genial, caderno! Genial!
Bom, passado o meu momento de euforia, concluí que, já que o cartão do pet shop tinha dois números de telefone e um deles não recebe chamadas ou não existe, o outro certamente estaria relacionado a alguém de dentro do canil. Supus, imediatamente, que esse alguém não haveria de ser o desgraçado, pois, por mais que o disfarce seja ótimo, ele é o chefe do esquema e é delegado aqui; ele é um homem muito esperto, não se arriscaria tanto assim. Consequentemente, também supus que esse número pudesse ser do responsável pela administração de membros: quem entra e quem sai. Assim sendo, comecei a planejar meu discurso de forma a, quando o telefone atendesse, eu me fingir de interessado e conseguir matar dois coelhos com uma cajadada só: além de descobrir o endereço, conseguir entrar.
Pelo que o JP me falou, essa sociedade é paga. O problema era que eu não queria passar informações verdadeiras minhas pra entrar lá, porque isso poderia me colocar em perigo, coisa que eu pretendo evitar, na medida do possível. Então tive uma ideia: ligar e dizer que fui indicado diretamente pelo desgraçado e mentir dizendo que meu pagamento vai ser direto pra ele. É uma conversa fiada, eu sei, mas nunca se sabe quão falho esse esquema pode ser, especialmente considerando que uma menina mais esperta conseguiu fugir de lá sem grandes esforços. Como ontem eu ainda estava com a cabeça quente por causa dessas descobertas todas, deixei pra colocar em prática essa parte do plano hoje depois do almoço.
Saí de casa, novamente, e voltei ao orelhão de onde liguei no dia anterior. Eu estava me cagando de medo, cara. Soo valente aqui, falando em planos e em justiça e em derrubar essa quadrilha, mas não pense você que eu faço isso tudo com o coração leve, não; meus índices de adrenalina nesses últimos dias têm estado no limite. Fui até o orelhão tremendo. Juro. Tirei o telefone do gancho e disquei o número de celular que havia no cartão do pet shop. Combinei comigo mesmo que eu me faria de amigo do desgraçado pra ludibriar o cara que atendesse e que falaria como se estivesse muito certo de tudo que acontece no canil. E assim foi. Após chamar quatro vezes, uma voz séria de homem atendeu: “Dog Store, boa tarde”. Minhas mãos estavam geladas, caderno, mas tentei ao máximo manter a compostura. Vou reproduzir o diálogo aqui da forma como eu me lembrar:
Eu: Boa tarde... É nesse número que eu ligo pra confirmar meu cadastro?
Ele: Cadastro...?
Eu: Sim, como membro do canil.
Ele: Quem tá falando?
Eu: Meu nome é Vincent, sou amigo do Lúcio e fiq--
Ele: Só um momento — ele me interrompeu assim que eu falei o nome do desgraçado.
Ouvi um ruído de páginas sendo folheadas e senti que mirei no alvo certo. Mas também fiquei com medo de ele entrar em contato com o desgraçado e meu plano fajuto ir por água abaixo.
Ele: Quem te passou esse número?
Eu: O Lúcio me entregou o cartão do pet shop e falou que bastava eu ligar — vantagens de lidar com sociedades secretas: se elas são secretas, já que eu sei o nome do líder, quer dizer que eu sou confiável.
Ele: Tá. Qual é o seu nome?
Eu: Vincent. Pode manter só “Vincent”, se não tiver outro “Vincent” por aí. Ele disse que é bom eu preservar minha identidade.
Ele: É. Ele já te passou as informações de pagamento?
Eu: Já, sim, tá tudo ok; vou acertar direto com ele — perceba que eu estava com sorte, chutando todas as respostas certas.
Ele: Preciso das suas informações pessoais.
Aí eu quase tive outro ataque cardíaco. Se eu quisesse ser o mais verossímil possível, teria que cooperar e fazer tudo que o cara pedisse. É lógico que eu não poderia passar informações verdadeiras. Confiando cegamente na suscetibilidade de falhas desse esquema e no tamanho geográfico de Taigo, passei o endereço da casa do próprio desgraçado, onde eu também já morei, crendo que os mandantes da quadrilha não sabem onde cada integrante dela mora. Funcionou, eu acho. O cara me pediu um número de telefone fixo e eu disse que era o número que o visor dele registrava (o número do próprio orelhão). Me pediu um número de celular e eu passei o número do primeiro celular que eu tive na vida, que já não existe mais há muitos anos. Depois:
Ele: Seu cartão aí tem endereço?
Eu: É rua Ágata Muscínea, 48?
Ele: Isso... — silêncio por alguns segundos. — Tá tudo certo. O Gallo já te explicou como funciona?
Não sei se eu sabia essa resposta.
Eu: Mais ou menos. Como é?
Ele: A taxa de assinatura que você vai pagar te dá direito às coisas da casa: bar, sinuca, hidromassagem et cetera. Se você quiser transar com alguma garota, paga separado pra Madame.
Eu: Ah, sim, ele me disse, sim — menti. — Então tá bem. Preciso fazer mais alguma coisa?
Ele: Não, tá liberado. Seja bem-vindo.
Eu: Obrigado.
Desligamos. Então a ficha caiu: agora eu fazia parte do canil; agora eu poderia entrar naquela mansão quando eu bem entendesse. A sensação... Cara, a sensação que eu tive foi a de ter cometido o crime perfeito; de ter quebrado a segurança e invadido a área restrita do site do FBI; de ter entrado num cofre e roubado sem ser percebido. Eu estava dentro! Bastava, agora, encontrar meia dúzia de testemunhas e pronto!
Voltei pra casa com as pernas bambas. Entrei no meu quarto, sentei na cama e respirei fundo. Eu precisava calcular meus próximos passos, que poderiam ser os últimos nessa história toda. Eu precisava voltar ao canil e entrar em contato com a Raquel, que a Clarissa me disse que ela me ajudaria no que eu precisasse. Como não posso perder tempo, resolvi fazer isso tudo hoje mesmo. Decidi, portanto, que, à noite, eu retornaria ao canil e tentaria localizar a Raquel pra dar andamento a isso tudo. E assim o fiz: anoiteceu, fiz o último programa do dia, voltei pra casa, tomei um banho, avisei o Bruno que eu sairia pra resolver uns problemas (estou tentando poupá-lo dos detalhes de tudo que tenho feito porque não quero deixá-lo preocupado). Chamei um táxi e fui. Ágata Muscínea, 48.
Ver aquela casa mais uma vez me deu arrepios, agora que eu sabia de tudo que realmente se passava lá dentro. Desci do táxi, caminhei até o interfone e toquei. Diferentemente de quando eu ia com o JP, pediram que eu me identificasse. “Vincent”, eu disse e o portão se abriu. Segui até a antessala e lá estavam os mesmos dois caras: o negão por quem a Clarissa fingiu estar apaixonada pra poder escapar e o outro, que assiste pornô de madrugada. “Boa noite”, eu disse a ambos, mas nenhum respondeu. O da mesa apenas balançou a cabeça e pegou o caderno de registros. “Então você é o Vincent...”, disse quando encontrou meu nome na lista. “O próprio”, respondi naturalmente. Ele me analisou por alguns segundos e perguntou: “Não era você que vinha aqui com o JP?”. O filho da mãe me reconheceu. “Sim, eu mesmo”, respondi, neutro. “Hum... Tem notícias dele? Faz tempo que ele não dá as caras por aqui”, ele disse, guardando o caderno de registros. “JP morreu há algum tempo”, respondi. “Mesmo?”, ele pareceu espantado. “Mesmo”, confirmei. Esse cara não era o mesmo com quem eu havia conversado mais cedo, não; devia ser um mero recepcionista, mas, se se ele sequer toma nota quando um membro da sociedade morre, isso é sinal de que o esquema de controle de membros tem brechas muito grandes. “Que pena...”, ele disse, “Tenha uma boa noite”. Agradeci. O segurança da porta abriu passagem e eu entrei novamente naquele antro de degradação.
O ambiente era o mesmo das outras vezes; a diferença é que agora eu estava sozinho e não teria o JP pra usar como escudo. A minha maior preocupação era o Infortúnio me presentear com um encontro com o desgraçado. Mas isso não aconteceu, graças a Deus. Eu tinha que falar com a Madame, que avistei ao bar, entre dois coroas, sempre espalhafatosa. Me aproximei e chamei: “Madame?”. Ela se virou e me olhou com olhos surpresos. “Você!...”. Já havia esquecido meu nome, pelo visto — ainda bem. “Como vai a senhorita?”, cumprimentei, beijando a mão dela. “Eu vou ótima! E você? Há quanto tempo não te vejo por aqui!”. “Pois é... Meu acompanhante fiel, infelizmente, faleceu... Mas me presenteou com um convite pra fazer parte deste lugar encantador”, preciso investir numa carreira de teatro, porque estou ficando muito bom nisso. “HAHAHAHA! Oh! Mas que prazer tê-lo aqui conosco então” — mas quero ser um ator melhor do que isso, que fique claro. Cortando a conversa pelo toco, falei: “Hoje eu quero a Raquel. Ela se encontra?”. “Claro! Vou chamá-la agora. Me dê um minuto”. Cécile se afastou e me deixou sozinho novamente, no meio daquele monte de velhotes safados e daquele jazz horroroso que não parava nunca. E meus olhos sempre atentos, procurando não encontrar o desgraçado. “Aqui está”, disse Cécile, voltando pouco tempo depois, trazendo Raquel pela mão. A menina me olhou com espanto, certamente supondo que Madame a trazia pra qualquer outra pessoa que não eu. “Vincent!”, essa se lembrava do meu nome. “Raquel...”, trocamos beijos no rosto e um sorriso de faz de conta. “Não vou atrapalhá-los, está bem? Tenham uma excelente noite”, disse a Madame, afastando-se. “Ah! Espere um segundo!”, pedi. Queria deixar o serviço já pago, pra não ter o desprazer de trocar mais algumas dúzias de palavras com ela antes de ir embora. Assim o fiz.
Eu e Raquel ainda continuamos no mesmo lugar por algum tempo. Ela estava visivelmente surpresa por me ver. “Vamos?”, perguntei. Ela assentiu com a cabeça e nós fomos para o corredor que leva aos quartos. Eu sempre olhando para os lados, vendo se o desgraçado não estava por perto. Ela seguiu à frente. Entramos em um dos quartos; Raquel me olhou mais uma vez, confusa. Acho que ela esperava que eu estivesse lá com o JP. Sem saber ainda o que eu fazia lá, ela começou a se despir em silêncio. “Não, não, não”, fiz sinal para que ela parasse, “Não precisa tirar a roupa”. “Não?”, ela parecia assustada. “Não. Hoje nós só vamos conversar”, respondi, “Senta aqui”. Ainda com aquela cara de dúvida, ela se aproximou devagar e se sentou na cama. Ficamos sentados com as pernas dobradas, um de frente pro outro. “Como você está?”, perguntei, tentando quebrar o gelo. “Eu... vou bem. E você?”, ela respondeu, um pouco menos desconfiada. “Eu vou bem, obrigado. Te chamei aqui hoje porque preciso conversar sobre algo muito sério com você”. Ela franziu as sobrancelhas e abriu bem os olhos, intrigada. “Tá...”. Sem enrolar muito, fiz uma breve sondagem antes: “Cadê a Clarissa?”. Ela não respondeu imediatamente; vi que gastou uns segundos procurando uma resposta. “A Clarissa?”, perguntou, mesmo tendo entendido quando falei da primeira vez. “Sim”, confirmei. “A Clarissa... Ela não trabalha mais aqui”, Raquel respondeu. “E você sabe o porquê?”, perguntei. Ela balançou a cabeça negativamente. “Você sabe onde ela está?”. Resposta negativa novamente. Essas respostas me fizeram concluir que os frequentadores do canil não sabem que aquelas meninas são sequestradas. Se soubessem, Raquel não precisaria mentir: bastava dizer que Clarissa conseguiu fugir, não? “É o seguinte”, prossegui, “eu sei de tudo que acontece aqui”. Raquel inclinou a cabeça e levantou uma sobrancelha. “Sabe do quê?”, perguntou. “Sei que vocês estão presas nesta casa, sequestradas. A Clarissa conseguiu fugir e voltar pra casa--”, “Ela conseguiu?!”, “Conseguiu, e me falou pra te procurar, que você poderia me ajudar a denunciar essa quadrilha”. Raquel tampou a boca com as duas mãos. Seus olhos logo se encheram de lágrimas. Continuei: “O líder da quadrilha é meu padrasto e eu já tenho quase tudo que preciso pra desmascarar ele. Vim aqui hoje pra saber o que você sabe sobre essas pessoas, sobre essa casa, sobre as outras meninas que estão aqui...”.
Gravei nossa conversa. Raquel não sabia muito mais do que Clarissa, mas me deu uma informação preciosíssima: o desgraçado vai ao canil todos os sábados pras tais “reuniões” e, depois, passa a noite no bar, bebendo sozinho. Eu ainda não sei o que posso fazer com essa informação... Talvez eu consiga armar um flagra ou sei lá. Ela também me disse que a Madame na verdade se chama Conceição e que ela é quem passa a maior parte do tempo na casa com as meninas; também isso deve servir de alguma coisa. Raquel acha que as pessoas que trabalham no canil não sabem que as garotas de programa são sequestradas: todos pensam que elas estão ali por vontade própria e que a casa é só mais um scotch bar da high society, mas eu não sei; tenho pra mim que de alguma coisa eles sabem sim; mas, como quem se atreve a abrir a boca pra denunciar qualquer coisa morre, e, como uma já morreu nessa tentativa, ninguém mais se atreveu até hoje. Santo Deus... É de arrepiar os cabelos.
Combinei com a Raquel que entraria em contato com ela novamente assim que a denúncia estivesse feita e pedi que ela desse a notícia às outras meninas, porque quanto mais delas souberem o que estou planejando, mais delas podem se dispor a testemunhar quando for preciso. Agora estou aqui em casa pensando no que fazer a seguir. Já tenho acesso à casa deles, já sei onde fica o canil, já tenho provas... mas sinto que não tenho o bastante. Vou conversar com o Paulo amanhã e ver o que eu posso fazer a partir daqui. Quando tiver pensado em algo mais operacional ou quando eu quiser dar um brainstorming e decidir alguma coisa, te procuro de novo, tá bom? Enquanto isso, se cuida e fica bem, que eu tô precisando de você neste momento crítico, hehe. Um abraço e até breve.
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