6 - Victor
Após minha união com Nero não mais retrocedi a respeito de minha orientação sexual perante a vida social. A vida passou a ser um fardo muito menos pesado por isso. Também ajudava muito o fato de Nero que na altura de seus trinta e três anos já era bastante tranquilo com relação à própria aceitação e por conhecermos muitas pessoas que não queriam ficar escondidas, muitos amigos em comum acabaram nos copiando naqueles dois primeiros anos.
Cada vez mais eu tornava-me um homem pleno de felicidade.
Pareço repetir a palavra perfeição como se a própria não abrangesse defeitos em si. Mas veja... onde antes eu tivera tantos dissabores, na vida profissional por exemplo, apenas deixei de tê-los por completo. De início meu companheiro achou que eu poderia me livrar desses aborrecimentos trazidos pelo trabalho, além do salário baixo, ficando eu desta maneira sem sair muito de dentro de casa. Portanto, vivi quase dois anos como uma dona de casa com esses afazeres intermináveis que só dá valor quem tem que fazer, sabendo que quase ninguém valoriza.
Diferente de sentir-me diminuído por isso, primeiramente pensava em agradá-lo. Eu amava cuidar do lar, mudar a decoração harmonizando o ambiente, manter as coisas limpas, molhar plantas, cozinhar tudo o que ele gostava, escolher e organizar suas roupas e principalmente a parte financeira. Esta última parte para eu, era algo importantíssimo. Nero me deu essa importância bem no início. E o SER dona de casa, no meu mais íntimo pensamento realizava-me, afinal era o universo imposto às meninas, mulheres, mãe, vizinhas, tias que eu admirava desde pequeno. E além disso, ele depositava em minha conta um pouco mais que um salário mínimo como gratificação e pagava algum valor de contribuição para a Previdência Social, não havia o porque de eu reclamar de algo.
Claro que houve quem achasse um absurdo e para não ouvir coisas como a que cito abaixo, optei por me misturar cada vez menos.
— Victor! Que saudade. Você caiu do céu! Não leva a mal se eu perguntar... está empregado?
— É que está difícil de emprego na minha área...
— Na tua área sempre tem vagas, amigo. Sabe que o marido da Cleide é sócio da A&C Publicidade e perguntou por esses dias se eu tinha alguém para indicar...
— Nunca trabalhei com propaganda.
— Na verdade eles precisam de pessoal de TI, mas não sei exatamente como que funciona.
— Ah... vou pensar um pouco. Me passa seu número, te ligo caso... se não aparecer outra oportunidade na minha área mesmo. Nunca trabalhei com propaganda.
— Mas é na sua área.
— Meu esposo não quer que eu trabalhe fora, prefere que eu cuide das coisas em casa... Nero é meio possessivo.
— Esposo, Victor? Ai, é meio estranho ouvir isso, amigo. Sou muito quadrada, desculpe. Mas cada um sabe como vive. E no mais, nem as mulheres aceitam isso hoje em dia. Se ele te dá um pé na bunda, como que vai se virar? Precisa trabalhar, menino.
— Vou pensar.
— Vou falar para a Cleide que te encontrei e dizer a ela que sexta às oito horas você pode passar lá na agência.
— Olha, Márcia, primeiro vou conversar com o Nero.
— Vou agendar. Até parece que você com vinte e pouco anos deve ficar em casa. Faz favor, menino. Tua mãe não merece esse tipo de coisa.
Eu odiava essa intromissão e basicamente me escondia como se devesse para todo mundo. Não atendia nem mesmo o telefone de casa para não ouvir a azucrinação desses amigos que queriam me dizer como viver. Só pensava em retrucar que meu companheiro tinha como me bancar e não reclamava disso.
Aliás, estávamos muito bem financeiramente. Na ocasião Nero contou que os donos de uma construtora e incorporadora de alto padrão lhe propuseram sociedade e nossos terrenos entrariam numa negociação de permuta que resultaria em três apartamentos na troca quando o empreendimento estivesse concluído. Sendo que um dos imóveis, Nero recebeu adiantado. Eu não entendia como que funcionavam as coisas, se tudo estava certo ou se havia algo errado, apenas comemorei.
E então? O que mais eu poderia desejar? Financeiramente sempre fora viável para mim. Nero intermediava a venda de imóveis, pequenos lotes ou grandes áreas, também aluguel de imóveis em várias regiões. Suas comissões eram bem expressivas e nesses negócios às vezes entravam veículos, até que ele me deu um desses carros, mesmo avisando que era provisoriamente e que em breve o "passaria para a frente", afinal, queríamos dinheiro.
Para colaborar da melhor forma possível, passei a ser uma pessoa muito econômica. E claro, ele se acostumou com minha nova maneira de administrar, tornando-se bastante sovina. Logo passou a reclamar de qualquer coisa extra que eu incluía entre o básico.
— Não acha que é demais fazer camarão duas vezes no mês?
— É que você adora...
— Sim, mas olha o preço.
— Eu quis fazer um jantarzinho especial, hoje fazem exatamente dois anos que conheci você.
— Podia fazer isso no aniversário oficial do casamento. Porra... romantismo caro o seu.
Aquilo foi bem decepcionante. Até porque no começo jantávamos fora uma vez por semana e não íamos em restaurantes muito modestos. Eu imaginei que pelo menos naquela data, ele tomaria alguma iniciativa... mas fomos dormir emburrados. No entanto ele que estava certo. Quem sabe esse jeito cada dia mais seco era devido à sua grande responsabilidade como provedor de receitas da casa e quanto a mim... eu devia apenas reconhecer meu lugar na situação. Também, eu me tornava cada dia mais discreto e não me preocupava em ficar "guardado" quando ele tinha seus jantares com clientes. Eu começava a me anular, tinha consciência.
Lembro-me de como foi o segundo aniversário oficial de casamento, pois passei um dia ansioso a preparar um jantar divino, além de me preparar para fazer todas as suas vontades na cama mais tarde. Bem, acontece que Nero esqueceu-se completamente de nós. Quando retornou do trabalho, já bem tarde, comentou que fora a um happy hour com amigos, reclamou de um dia cansativo quando não teve NADA para fazer, pois nenhum cliente entrou na imobiliária, retirou e foi jogando a roupa a caminho do banheiro e eu fiquei feliz por ter sido chamado para compartilhar esse banho, o que fiz alegremente. Pobre Nero. Eu era apenas fútil demais e o que eu tanto chamara de perfeição estava tomando outra forma da qual eu desviava o olhar ou preenchia com meus excessos para camuflar suas falhas.
Após uns dias passei a amadurecer a ideia de voltar a trabalhar, embora não aceitasse a imagem mental da minha separação do lar e dos afazeres. Como eu disse, anulava-me cada vez mais, pois sequer eu valorizava meu esforço dentro da situação toda, afinal se eu consolidasse a ideia de empregar-me novamente, não me livraria das tarefas da casa, apenas agregaria às obrigações que puxei para mim. Mesmo assim, eu sugeri:
— Amor, eu vou espalhar uns currículos. Acho que você tá estressado porque não te ajudo financeiramente. Minha área sempre está precisando...
— Quer mesmo sair de casa pra ganhar meio salário por mês? — Nero perguntou com um leve sarcasmo, porque era o que achava que eu poderia ganhar.
Ele menosprezava o que eu sabia fazer ou apenas queria continuar a me poupar dos infortúnios que eu lhe contara ter sofrido nas empresas? Pode ser que não me queria fora de casa, certamente por sentir ciúmes.
— É que eu pensei em terminar a faculdade, já estou com vinte e três anos.
— Se for de manhã ou à tarde tudo bem. De noite eu proíbo.
Nessas horas dava para sentir o quanto era possessivo comigo e isso apagava a insegurança que eu tinha, o medo de ele me largar por qualquer motivo. Eu sentia uma alegria quase indisfarçável em ser seu objeto de posse.
Doces ilusões...
Como ainda não era bem disseminada a ideia de curso à distância, cursei por dois anos Gestão em Tecnologia de Informação, apenas para terminar com um canudo nas mãos, desempregado, cuidando do lar e um marido já bem saturado de tudo, beirando a truculência às vezes.
Assim foram-se quatro anos ao seu lado, eu na condição parasitária que parecia sugar toda a alegria de Nero. Eu demorei para perceber que vivíamos uma simbiose, mas era mais fácil me diminuir para engradecê-lo. Minhas queixas eram rebatidas com seus caprichos. E quando ele exagerava, e percebia, pedia-me desculpas apenas por pedir. Quando pedia. E com o medo assustador de perder aquele homem, parei completamente de me expressar negativamente e isso o agradou.
Isso era um problema tão nosso que nem mesmo os mais próximos sabiam. Tentávamos passar a imagem de casal perfeito e portanto alguns casais costumavam dizer que queriam ser como éramos, elogiando meus sorrisos quando em qualquer reunião com amigos, ele puxava-me para um abraço carinhoso, parecendo apaixonado.
Ele estava entediado e eu via em seus olhos. Ele fugia do assunto e seu silêncio me ensurdecia.
Para testá-lo sugeri novamente sobre entrar no mercado de trabalho e ter uma renda vinda de fora e ele finalmente permitiu. Passei a nutrir a ideia de que estava querendo se desapegar da relação e desenvolvi ansiedade que me levou pela primeira vez a recorrer à medicação controlada.
Bom, passaram-se três meses que eu estava reempregado e o estresse era moderado, mas quanto a cuidar de um apartamento grande de duas suítes, mais dois quartos, um banheiro social, quarto e banheiro de empregada, duas salas grandes, cozinha, sacada em dois lados e um homem incapaz de tirar o prato da mesa, isso era bem cansativo. Pior, ele não dava o menor valor e passados mais uns meses, comentou que cortaria umas despesas e percebi que minha "mesada" não foi mais depositada. Como era de esperar de mim, calei-me. Me tornara a empregada doméstica de graça com "direito" à exigências desgastantes desse "patrão".
Meu carro top de linha com sua manutenção, IPVA e seguro, ficaram altos demais para bancar com minha renda, então o troquei por um seminovo com a quilometragem estourada. Senti vergonha de pedir mais dinheiro do que aquele destinado às compras. Tudo o que referia-se à parte financeira era motivo de discussão e de mim tirou o controle das contas da casa.
Pensei que estivéssemos quebrados. No entanto, ele tentou esconder a melhor fase financeira que poderíamos ter aproveitado juntos. Nero esquecia-se às vezes que fora eu quem havia elaborado suas planilhas de controle onde era relacionado o CPF e nome dos pagadores aos valores devidos por eles. Ali era controlado o quanto recebia em dinheiro e o que eles transferiam pelo banco, geralmente nas transações bancárias os valores eram muito baixos de onde ele tirava o valor para emitir suas notas e a partir delas, declarar ao fisco.
Ou seja, sonegação descarada, claro, tanto que quando fiz um comentário sem maldade sobre esse assunto, ele amenizou muito na mesquinharia. Por um tempo...
Só que ele não era mais o mesmo Nero que eu conhecera. As coisas começaram a ficar mais estranhas e isso muito tirou meu sono. De uma hora para outra suas reuniões passaram a se estender pelas madrugadas, tornando-se uma constante e suas explicações viravam quase acusações. Ele revertia e dava certo.
— Fiquei bebendo com o Muriel até de madrugada, ok? Dá para melhorar essa cara? Parece que chupou um limão.
— Fiquei meio chateado.
— Porra, então arruma o que fazer e ocupa essa cabeça. Só pensa merda de certo. Porra, vendemos o sítio dele e sabe quanto vai entrar de comissão essa semana? Não fica feliz por isso?
— Claro. — Baixo o olhar para a comida.
— Vou te dar um dinheirinho pra ver se melhora essas calças. O que está fazendo com o dinheiro que recebe? Pelo amor de Deus, Victor, se vista melhor. Como que vou te levar junto nesses encontros? O pessoal leva marido, namorada, amante e eu não levo porque você nunca tem ânimo.
— É que cuidar de tudo isso é cansativo.
— Ah tá, quer empregada? Só o que me falta.
— Eu comecei a trabalhar fora de novo.
— Ah me poupe. Passa o dia sentado olhando para um computador. Se o seu serviço fosse relevante, ganharia uns dois conto por mês. Não quero ouvir mais um pio sobre esse teu empreguinho e muito menos que está cansado. Quem está cansado disso tudo sou eu. E pare de agir como uma garota chorona. Não posso falar nada?
Assim eram as discussões mais brandas. Era melhor calar-me e continuar com o marido.
***
E acho isso meio engraçado. Acho que é meio triste. Os sonhos nos quais estou morrendoSão os melhores que eu já tive. É difícil dizer a você. Acho difícil de conduzir quando as pessoas correm em círculos, é muito, muito louco... (Mad World, Adam Lambert)
***
Boa noite pessoal♥ Passando na corrida hoje só para postar com carinho esse capítulo. Embora esteja arrastado, ainda assim é necessário ligar em as pontas dessa história... logo a coisa "despiroca" kkk. Beijão♥
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