3 - Vic
Ainda nesse meu passado de coisas "passageiras" que marcavam pra sempre numa contradição, o início dos anos 2000 ainda nos sufocava, estigmatizava, estereotipava e ali eu parecia preso.
Lúcio, o homem fortão que eu cobicei por algumas noites em que saía à caça de alguém para uns beijos ou, no caso dele, somente para fantasias molhadas, me apareceu após seis meses com a metade de seu peso. Não era o mesmo homem. Oh! Era sim. E fora ele quem se lembrou de mim. Sim, ele que veio puxar assunto quando precisei de muita ajuda sua para conectar os dois homens. O rosto era realmente o seu, ainda bem bonito. Mas o físico estava mirrado.
Me lembro bem de quantas informações deu-me para que eu lembrasse, só faltou acrescer que sempre estivera acompanhado por um ou mais rapazes que se deleitavam no seu tipo físico. O chamarei de Lúcio como mencionei, querendo evitar complicações, ele então estava muito, mas muito mais magro, esquivo e pouco atraente com olheiras meio chamativas. Passou pela minha cabeça que ele poderia ser usuário de drogas. Não achei delicado perguntar o que lhe ocorrera. Poderia ter perdido alguém importante ou estar doente...
Com Aids.
A palavra que veio a minha cabeça imediatamente trouxe consigo o preconceito. Isso grudou nesse meu pensamento de que ele poderia ser um soropositivo e com isso, passei a evita-lo por não saber como lidar com algo daquela magnitude.
É fato que a Aids quanto mais lembra-se dela no passado, mais era anexada ao chamado "homossexualismo". Exatamente isso: "homossexualismo" no sentido de indicar uma doença. E a Aids era mencionada com doença uma derivada de outra, que para as novas gerações parecem chocar com violência, ainda que não sentiram um por cento daquilo que sentimos na pele. O "homossexualismo" era chamado de "opção" sexual. Ainda é, não precisamos mascarar nada.
E portanto: Uau! Que tremendo choque ao ler essa frase! Logo alguém irá corrigir e dizer que as palavras aqui foram usadas de maneira errada. Eu só quero expor um pouco do que já passei e ouvi no passado. O passado que nos acuava.
Realmente.
Voltando ao fato, Lúcio contraíra o HIV nos anos passados quando fazia programas e em pânico acreditei que nosso único beijo pudesse ter me tornado outro portador do vírus e isso acabaria com minha vida social quando a empresa de Software que me contratou no início dos meus vinte anos, pedisse algum exame de sangue. Algumas empresas pediam até exame de gravidez, porém o exame de HIV não foi meu caso naquela ocasião. O assunto já era amplamente divulgado e de um beijo eu sei que não o contrairia. Mas não adianta, podem examinar suas próprias consciências mais antigas se não tinham medo de estarem infectados ao abraçar alguém que só suspeitassem ter o vírus.
O preconceito era forte, doía em nós os "viados". Era pesado mesmo. Algumas pedradas só machucavam, outras nos derrubavam feio.
Sem ter me submetido a qualquer exame, ignorante, acreditei mesmo que do único beijo molhado que demos, algo pudesse ter sido passado a mim. Lúcio buscara apoio em mim, quis me ver mais vezes, falou até mesmo em ter um relacionamento comigo. Disse que podíamos nos cuidar que assim dava para viver. Fez isso quando todos já tinham se afastado dele e eu com muito medo, respondi que não podia e saí de sua vida.
Já expliquei a vós que não sabia como agir diante daquela situação tão delicada e fui respeitado por ele e após, ouvi falar muito pouco do ex rapaz de programa. Lúcio faleceu exatamente um ano depois daquele dia e eu nunca me despedi adequadamente. Seu "fantasma" por muito fez o remorso me corroer. Da realidade dura e crua, fiquei com lembranças e pesadelos.
Eu gostaria de virar uns capítulos de minha história ou contar aqueles onde fui feliz envolto por alegrias, leveza e paz, mas parecia preso no inferno.
Na empresa sofri vários tipos de assédio moral, desde erros apontados na frente de colegas, erros apontados com gritos, ser exposto com brincadeiras grosseiras reforçadas pela mídia e seus personagens caricatos que brincavam ferindo um tanto nossa sensibilidade, já que eu ainda não sabia como lidar com a libertação e por fim ser chamado separado pelo chefe que disse certa vez:
"Não fique rindo com os rapazes no refeitório, parece que quer dar pra eles. Depois reclamam que ninguém respeita."
Ele era um dos que pensava que viado só dá o cu e chupa o pau dos caras e que eu ali dentro, se fosse o que ele pensava, escrotamente, ao meu respeito, perderia o ambiente respeitável entre todos. Eu parecia desequilibrar tudo ali, me olhando através dos seus olhares preconceituosos. Ser bom funcionário e ótimo no que fazia, incluiu calar-me.
Sério, no passado cheguei a me perguntar se ator Jorge Lafond conseguia se fazer respeitar ao expôr sua orientação daquela maneira exagerada. Será que não lhe causava problemas? Quem sabe se não era para tentar tornar mais leve o próprio "fardo"? E para quem achar que é "opção" sexual, portanto escolha, entenda que alguns gays já acharam isso um fardo. Ou quem vê glamour nisso nem imagina tantas infelicidades escondidas sob a palavra Gay que em inglês quer dizer alegre. Ou eu que faço muito drama com isso? Talvez. Sei, HOJE, que ele era o que queria ser. E o exagero era apenas performance artística.
Demorei para entender.
O que quero explicar é que eu não era respeitado como o simples indivíduo colaborador da empresa. Eu mesmo nunca me expus. Negava com menos força do que fizera há poucos anos, mas ainda assim negava ser gay e ainda assim tinha tinha minha intimidade exposta nas piadas com gays, tipo: "Victor é macho até debaixo de outro macho" bordão de programa Global, que aliás sempre teve personagens exagerados para nos representar. Daí que veio a questão sobre Vera Verão. Já sobre os atores héteros que nos "representavam", o que dizer? Não tinham noção de verdade do que essas piadas faziam com alguns de nós e isso me incomodava particularmente. E novamente, digo que alguns amigos posteriormente admitiriam esse mesmo incômodo, enquanto outros achavam até mesmo engraçado e não se importavam. E HOJE eu também não me importo mais.
O problema estava em mim e minha construção como pessoa.
Eu não tinha nada de leve nos capítulos escritos sobre minha vida.
Eu não tinha muito gosto pela vida.
Eu já pensei em acabar com minha ela.
Eu já caminhei até a beira do asfalto, até a janela do prédio comercial onde trabalhava, até a cozinha onde uma faca de churrasco bem afiada facilitaria as coisas e até o armário da limpeza onde produtos tóxicos me ajudariam ou me deixariam com sequelas caso não funcionassem. Eu tive desgostos desde a infância e eles gostavam de morar em mim. Não nos livrávamos um do outro e por esse sentimento, eu me arrastava no dia após dia. Porque, por pior que tudo isso tenha lhes parecido, ainda não era pior do que eu encarar minha mãe e me abrir com ela. Já que eu era apenas seu filho tímido e não o viadinho da família preconceituosa.
Mais de uma vez de ouvir lá do meu quarto coisas parecidas com a conversa a seguir:
— Vitinho não quer saber de namorar ainda. É focado no trabalho e em conseguir as coisas dele. É muito caseiro. Eu que insisto para sair um pouco de dentro de casa.
— Ele é um moço bonito, Valéria, vamos arranjar um encontro? Tá na hora da Nádia se arrumar um namorado bonito e de boa família.
— A Nádia? Adoro ela. Tua filha é querida e super simpática. Acho que ele ia perder aquela vergonha toda e se soltar um pouco... Vamos combinar um almoço meio logo antes que ele me apareça com uma namorada grávida.
— Verdade. Os quietinhos são sempre assim. Bonito como ele é, deve ter umas paquerinhas com certeza.
— Hoje ele vai sair com um amigo. O rapaz é meio assim... mas acho que é só o jeito...
E esse amigo, Edinho, ouviu a conversa com os olhos arregalados com o que entrou em seus ouvidos e me disse:
— Tua mãe é cega? Só você para crer que ela não sabe.
— Ela já perguntou e eu neguei.
— Mas você é muito afeminado.
— Eu me cuido na frente da família. Eles nunca vão aceitar.
— Menino, faz como eu, mude-se. Vá viver sua vida. Você vai ficar maluco se não sair do casulo.
Especialmente depois daquele evento maldito com o tio de meu pai, eu tinha certeza de que iam jogar na minha cara que a culpa do assédio dele era minha. Preferi ficar com a fama de apenas o menino tímido, sem tantos amigos e que nunca apresentou uma moça à família que tanto me cobrava isso.
Tinha isso. Família. Eu não sei por quanto tempo ia aguentar sem ficar maluco, como Edinho andou me prevenindo.
No emprego já era complicado, em casa eu estava perto do desespero e por dentro eu estava pleno de uma carência afetiva cada vez maior. Não suportava olhar para um futuro de solidão.
Como eu queria encontrar meu par. Um homem daqueles com quem só podemos sonhar e depois desses sonhos, nos masturbarmos imaginando tudo o que fariam conosco de sexual e com muito romantismo. Eu construía na minha cabeça esse homem ideal e me fechava para alguns meninos parecidos comigo que possivelmente seriam ótimos amigos, amantes e companheiros. Eu queria uma fantasia, nela o homem seria alguém muito forte, tão forte que me protegeria e que me tiraria de casa, me assumiria e até me tiraria do emprego onde eu trabalhava e com isso eu estaria completamente blindado.
A construção desse meu universo particular estava me custando caro porque eu tirava os pés da realidade, quando deveria estar vivendo a vida na plenitude, ou seja, viver os vinte anos como um menino de vinte e não como se tivesse o peso de décadas de frustração nas costas.
Edinho tentou me tirar do isolamento. Esse isolamento que me parecia perfeito para ter meu sonho impossível, aquele sonho igual aos lidos em romances em que as mulheres, donas de casa anoitentistas (ou não) liam para fugir de suas realidades e entrar na pele das personagens geralmente sem graça que conseguem o melhor tipo de par, o mais rico, o mais gostoso e forte. Eu cansei de ler esses livros que minha mãe devorava e tanto quanto ela creio eu, sonhava com esse mesmo perfil.
Eu tinha que ser forte para escrever minha própria história por mais merda que fosse no começo. Afinal, não era eu um personagem de ficção e então trabalhar e estudar era o que me sobrava, dar uns beijos na boate gay, uma transada cheia de medo em algum lugar super secreto com alguém igualmente super secreto que tanto quanto eu não queria admitir o que era praticamente minha estampa.
Minha capa.
Um homem gay afeminado que não assumia-se declaradamente perante as pessoas que de certa forma lhe oprimiam. Assim como eu mesmo fiz comigo.
***
Qualquer hora alguém te põe pra baixo. Qualquer hora alguém diz que você não é capaz. Apenas lembre, você não está sozinho... (Aftermath, Adam Lambert)
***
Gente, ótima semana♥♥♥
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