21 - Victor Vitória Salaza


Quando alguém cancela um encontro, a frustração pode ser grande. 

Victor foi e voltou várias vezes em pouco tempo naquela noite de sábado o que nos causou uma confusão imensa. Eu não aceitei ficar decepcionada comigo por ter colocado muitas expectativas num simples drinque que tomaria com Gael, mas esperei ansiosa pelo encontro que Victor cancelou com intenção de ficar solitário. Meu amigo me ligou quando eu estava a caminho de meu apartamento quando a madrugada já ia longe desaguando no amanhecer refrescante. Até para mim foi estranho.

Sou impulsiva e arco com minhas besteiras, não foi o caso. Quando se diz que dois é bom e três é demais, imagino que uma quarta identidade não seria nada bom que se revelasse. Com Victor e o menino ainda consigo lidar, porém com outra versão piorada de mim mesma já seria demais. Espero que seja apenas um desequilíbrio meu e do Victor.

A ligação eu não me lembro de ter feito, mas já que supostamente liguei, aproveitei para me atirar no colo de Murilo. Entre apagões e confusões quando percebi estava nos seus braços. Busquei na memória do meu outro eu e não encontrei um interesse seu pelo homem com quem transei por horas. Creio que tenha descontado nele a raiva que passei no jantar com aqueles falsos e Nero, meu Senhor das Alturas, esse está fodido quando eu o pegar. Porém meu encontro explosivo serviu-me para que eu percebesse que me entedio facilmente. Murilo, disso me recordo perfeitamente, vê a mim Vitória como uma fantasia. 

Não quero o posto de amiga de foda. Meu emprego parece estar perfeitamente em ordem enquanto estou comando. Porém preciso mostrar a resolução da noite em que Nero ficou trancado em meu apartamento. Ou quando achei que o encontraria lá pela manhã. O que encontro é uma bagunça tremenda,  tudo fora de lugar, além dele ter usado um mínimo de esperteza chamando um chaveiro. A confusão da noite caiu sobre o porteiro que deixou-me um sms ao celular,  ameaçando até mesmo de falar com o síndico pelo tamanho do rebuliço causado por um "macho" atrás de um pederasta safado.


Confesso que ler a palavra "pederasta" sempre me leva ao passado seco, doloroso e massante pelo qual eu daria uma parte minha para esquecer.

Sei que minha vida está em completa confusão. Não recordo-me de Nero fazendo qualquer rebuliço em meu apartamento. Mas percebo a bagunça causada. E o que é Vitória? Um transtorno meu? Que roupas estranhas estou usando! Cheiro e gosto de cigarro na minha boca. Oh Deus. Eu estive com alguém! 

— AH! 

Estou todo marcado!

Questiono ao espelho exigindo que ele me explique, mas ele só sabe mostrar a mim como se fosse outra pessoa. Tenho quase certeza de que fui drogado por alguém, senão o porteiro não teria mencionado absurdos. E Nero não quer me atender. Preciso que ele me diga o que houve já que está claro que não transamos novamente.

Que dia é hoje? 

Um domingo. Torço muito para que seja normal. 

Nero segue sem me atender, mas deixa-me uma mensagem onde me chama de louca. 

Oi Gael. —  desabo em pratos ao telefone ao ouvir sua calma voz. 

Victor,  o que aconteceu ontem? Nós precisamos muito conversar ainda hoje. Alguém deixou  um recado para você.

Estou começando a ficar com medo das coisas que ando fazendo de maneira inconsciente. 

— Vem conversar comigo. Marcamos um café em algum lugar tranquilo com pessoas em volta. Te garanto que vai ficar tudo bem. 

— Não... eu não quero sair de casa. Estou apavorado. Gael, meu corpo tem marcas de mordidas. E Nero acabou de mandar uma mensagem, está furioso com essa Vitória. Eu preciso resolver isso. Gael, eu não estou em condições de aguentar mais coisas. Está pesando. Você mesmo um dia admitiu que eu faço drama. Mas não é assim como eu queria que fosse... me livrar de tudo o que pesa. Ninguém se coloca na minha pele.

— Victor se acalma. Por favor, amigo. Calma. 

— Eu estou cheio disso tudo. Essa merda de vida, tudo gira, gira, não sai do lugar. Ele vem aqui e fala que está sofrendo porque o Bernardo é terrível com ele e eu acredito. Depois me usa e some e não atende. 

— Victor!

Meus olhos fecham e as lágrimas grossas descem por meu rosto. Eu vou acabar com essa existência insuportável. Gael diz-me algo, mas não posso mais ouvi-lo. 

Ouço um barulho de chave. Alguém vai entrar aqui!

Vou me defender sozinho. Corro até a cozinha e pego uma faca. Um homem entra em meu apartamento e vai me fazer muito mal. Eu vou matar esse homem.

— Ficou louco? Olha o que você fez, Victor.

Nero segura meu braço quase ao ponto de machucá-lo espremendo minha mão até que eu solte uma faca. Não! Meu Deus o que eu fiz? Machuquei sua mão!

— Nero?

— Vou chamar ajuda. Você precisa ser internado e medicado. O que é isso em seu pescoço?

Tampo-me quando ele se aproxima e quase arranca minha camisa, rasgando-a e expondo meu tronco ao frio. Sua expressão vai de medo à preocupação e da raiva ao nojo. A seguir sinto o peso e o calor de sua bofetada, a primeira. Não consigo chorar. Tento encostar os pedaços de pano que sobraram da camisa para esconder minha vergonha. Mesmo que eu não me lembre, provavelmente saí com outro alguém. O olhar do homem sobre mim, deixa-me desconfortável. Ele derrama uma lágrima também e me abraça. Nero pede desculpas em meu ouvido e meu coração desmancha-se em um perdão sentido. 

Após me soltar, Nero pede-me auxílio para fazer um curativo em sua mão onde ele aparou a faca. As manchas de sangue no chão tornam-me ainda mais confuso, não me lembro de te-la pego o objeto na cozinha. Se realmente o fiz, foi rápido demais ou talvez em outra crise de inconsciência.

Não falamos sobre o que ele viu em meu corpo, pois de repente liga para o Bernardo e o tranquiliza dizendo que "a coisa normalizou" e ainda o chamou de amor na minha frente. 

— Lembra-se de umas planilhas que pedi para que fizesse? Eu lembro que entreguei a você alguns documentos com informações para alimentar os dados... será que lembra onde ficaram?

— No momento não... — mantenho a voz e o olhar baixo. Não consigo olhar para ele de tão envergonhado de mim. 

— Procure então. Quando mudou-se deve ter trazido no meio dos seus livros idiotas e papéis. Revirei tudo e só achei um computador com senha. — Nero se aproxima. Eu me encolho com medo. — Me passe a senha.

— Tá. 

Nenhuma senha possível desbloqueia meu computador. Meu guarda roupa está revidado, papéis jogados até no lixo do banheiro e livros rasgados por alguém raivoso, é o que restou de minhas coisas organizadas. Digo a ele que sinto pelo transtorno e ele me chama de mentecapto. Minha alma parece estar anestesiada. Me assusto com ele desde o tapa na cara. Agora sei porque fez amor comigo. Queria barganhar algo. Eu devolveria, pela primeira vez querendo que ele se fosse e não voltasse.

— Cadê os disquetes? Salvou em algum lugar?

— Acho que sim.  

— Me liga quando lembrar de alguma coisa. 

Ele sai de meu apartamento. Sinto frio que congela até a alma. Olho-me ao espelho para perceber a marca da força e fúria de um macho ciumento em meu rosto. Percebo com mais clareza a gravidade das coisas. Faltei em muitas sessões de psicoterapia e a partir de  segunda-feira, por mais vontade que sinta em ficar sozinho com meus pensamentos, preciso me esforçar um mínimo. Receio ficar completamente vazio conforme tirar tantos pesos de minhas costas.

Na última vez que o telefone chama, sendo Gael às sete horas da noite, eu atendo finalmente e ergo meu corpo dolorido do sofá. Há uma força desconhecida por mim que me força a ir ao meu quarto. Lá escolho qualquer coisa e visto. Nada de anormal. Apenas jeans, camiseta de malha e suéter grosso. Pareço ter ganho peso. Nem sei como. Não faço ideia.

Aceito o convite de Gael para um cafezinho e nada mais. Assim como a história da faca e as marcas em meu corpo, a aceitação deste convite é um mistério. Gael sorri ao me ver, porém eu não consigo imitá-lo. Não há graça em nada.

— Teve uma manhã difícil?

Eu tampo meu pescoço e ele comenta que ouviu nossos gritos, pois não desliguei o telefone logo quando Nero chegou. 

— Sabe me dizer o que está me acontecendo?

Ele faz algum mistério e me dá um pedaço de papel com linhas quase garranchadas, mas que consigo ler. Sinto familiaridade no traço, na letra "q" cortada em baixo e nos pingos dos is em formas de bolinhas. Eu já escrevi parecido. 

"Só conseguirei falar com você desta maneira. Não me ignore. Meu menino, eu te amo e vou ajudar você. Não sou você, olha que engraçado, mas todos acham que somos a mesma pessoa. Fique forte. Vitória Salazar."

Meu olhos ardem com lágrimas. Poderia ser uma brincadeira e até Gael estar metido nisso, é o que penso. Mas a letra é tão familiar e Gael uma pessoa de caráter que não tem motivos para brincar com algo nesse nível de seriedade.

— Victor. Eu peguei fragmentos de informações ao ouvir Nero contar sobre as "aparições" de Vitória. Sabe, sendo psicólogo, eu não achei anormal isso. E como já comentei com Vitória, sua outra identidade, eu posso ajudá-lo e eu quero muito que me dê a chance. Falei com doutor Guilherme, psiquiatra...

— Não estou louco. Não quero ir para um hospício.

— Por favor, se acalma. Vic... — ele segura minha mão. Queria muito compreender porque sua expressão tranquila consegue me acalmar. — Não é assim que funcionam as coisas.

— Ataquei o Nero com uma faca! Vou ser preso! Vão me colocar numa camisa de força.

— Menino que imaginação. Mas saiba que isso é realmente grave. Vocês tem uma terceira persona. E tudo isso que está acontecendo tem uma origem. Nas sessões que tivemos peguei muitas referências e por isso que estou indicando, de novo, o doutor Guilherme. Vic, me deixa só tentar te ajudar. Senão aceitar ajuda agora, as coisas vão piorar e aí, ouvir um psiquiatra não será uma opção sua e sim uma medida. O psiquiatra antes de ouvir você, e eu, porque vou te acompanhar, não vai medicá-lo e muito menos fazer um prognóstico precipitado. Eu tenho conhecimento de um problema de dissociação de identidade, mas o Guilherme trata pessoas com esse transtorno. Fique bem calmo, ok?

Eu fico mais calmo e tomo o primeiro gole de café. Está tão amargo que faço careta e ele ri. Acabo rindo junto ao Gael que disse não ter estranhado quando não coloquei açúcar no café, pois quando encontrou-se com Vitória, ela deu-lhe uma aula sobre sabor do café.

— Sabe o que ela disse? Gael, assim você mata o café.

— Ela? Parece loucura.

— Não é loucura. Sabe, é sim algo extraordinário, mas ainda assim fascinante. 


— Gael! Pela deusa! Como vim parar aqui? Que surpresa boa te encontrar. Estava aqui com meu Victor?

— Sim. — ele sorri. Conheço esse sorriso bobinho e não sei se gosto dele. Será que estou com ciúmes? — Dei a ele seu recado. 

— Ele está desconfiado do mundo. Não dá para ser impaciente.

— Vitória, não dá para esperar mais. Mas... acho que finalmente ele está percebendo a gravidade das coisas. 

— Não suporto mais ver meu Victor ser quebrado por Nero. Esse tratamento, esse "choque" tem que ser dado nele o quanto antes. Acha mesmo que meus recados vão funcionar?

— Vão sim. Talvez lá no fundo de si ele sente alguma obrigação com você. Os pensamentos dele são auto destrutivos, um suicida potencial. Você é uma força tremenda garota. Vic tem sorte de tê-la em si.

— Acho fofo quando o chama de Vic. 

Gael toca fundo em mim com suas palavras e ainda dá aquele sorriso de quem é pego em flagrante. Sou astuta demais, possuo um bom faro para pessoas boas e também para os canalhas... minha belíssima face ainda queima e meu ódio é tanto que certamente não deixarei barato, comento sobre tudo o que ainda nos amarra ao corretor cafajeste.

— Não se vingue dele. Tente relevar essas coisas. Acho que suas ações intempestivas podem prejudicar o Victor. Nero, desde que o conheço, tem se tornado esquivo e não sei até que ponto dá para provocar. E quanto ao Bernardo, sabe que o pai dele é deputado... Então, gente de poder e com muito dinheiro às vezes usa alguns nomes para lavar dinheiro, não estou generalizando, e acho que podem tomar medidas extremas para não serem expostos. Eu receio pelo Victor. Não se envolva muito nisso. Melhor sair sem nada e com vida do que brincar com essas coisas.

— Gael — eu quase cochicho — é que eu não sabia em quem confiar quando te contei tudo.

— Pode confiar em mim, mas não me envolva em nada além disso. Dê o que possui ao Nero e o liberte.

— É o que estou tentando fazer, mas ele não larga do meu pé. 

— Não o provoque. 

— Sim. — sou obrigada a concordar . — Realmente, Victor foi agredido por minha culpa.

Embora eu seja uma mulher livre, preciso aceitar que nosso corpo é o mesmo. E Victor está cada vez mais perto de um caminho sem volta.

Não importa o que eu tenha que sacrificar. Não vou permitir que ele sofra mais do que já sofreu.


***

Dê um passo antes de pular dentro das cores que você procura. Você recebe de volta o que você dá, então não olhe para trás no ontem. Quero gritar, não mais me esconder. Não tenha medo do que está dentro (Aftermath, Adam Lambert)

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