1 - V


Narração por Victor

***

Eu tive uma primeira infância vazia...

Meus pais trabalhavam fora, trabalhavam muito. Tudo o que fizeram foi para conseguir a estabilidade financeira, ter casa própria e um carro do ano. E eles conseguiram. Tive um padrão de vida confortável, longe de ser rico, mas ainda assim era muito mimado. Porém os mimos eram brinquedos, roupas e itens recém lançados que eles na ânsia de me satisfazer pela falta que me faziam, compravam a fim de arrancar de mim uma expressão de contentamento. 

Se felicidade era ter bens materiais, posso dizer que fui um pouco feliz.

Dos seis anos em diante minha vida vem à memória fresca em flashes bagunçados. 

A visita de  tio Arlindo, que não se chamava assim na realidade, pois bem, era um pesadelo. Ele era um senhor solteiro, grisalho e meio metido à dar lições de moral nas pessoas, o mesmo era quem fazia brincadeiras idiotas e machistas enquanto alisava partes do meu corpo infantil, que eu ainda inocente sentia desconforto e não sabia como protestar contra.

Geralmente, creio eu porque minha memória não lembraria disso também, meu tio tinha um costume de dar soquinhos contra a região onde fica meu pênis, na intenção de ver o quão rápido eu me protegia de sua ação. Eu tinha medo dele por isso. Isso quando não dava petelecos ou pinçava meu pequeno membro e o apertava ainda em tom de brincadeira de moleque. Se eu chorasse, ele me chamava de menina. E às vezes pedia para que eu imitasse uma e meus primos, filhos de outros tios achavam graça, o que era um incentivo para eu obter atenção. 

Nem todos os finais de semana eram somente de terror, pois tio Arlindo não era muito querido por meus pais também. Não o suficiente para crer num menino de recém sete anos quando contei sobre as brincadeiras dele.

— O tio Arlindo sempre aperta o meu pinto. 

Contei ao meu pai em algum momento, mas ele estava meio alterado pela bebida, o que resultou em nada. Suportei portanto mais alguns encontros desconfortáveis antes de "lembrar" de contar à minha mãe. Pois eu tinha certo medo de apanhar dos primos e de meu tio. Não tive como mentir para ela quando me viu chorando. 

Finalmente ela questionou tio Arlindo que fez até um discurso religioso durante o almoço obviamente negou e ofendido deixou de nos visitar. Meu pai, que na verdade era sobrinho dele, dizia à minha mãe que eu era um guri perigoso e que esse tipo de mentira poderia causar problemas sérios na família, já ela ponderou e disse que como não viram nada, tio Arlindo também poderia estar errado. 

E uma pedra eles puseram sobre o assunto.

Depois disso meus primos que na infância achavam graça quando eu imitava meninas, também tiveram comportamentos nojentos, que eram brincadeiras tolas que hoje agridem mais à memória e ouvidos de quem ouve nossas histórias. Em geral eles apenas reprisavam o comportamento de seus pais que eram bastante machistas perto das mulheres da família. Bem como meu pai que geralmente se manifestava grosseiramente ao ver as novelas da época, dizendo que a personagem Sicrana de Tal deveria levar uns bons tapas ou que Fulana era muito gostosona, irritando minha mãe, que dizia:

— Por pior que fosse, eu preferia ter uma filha.

Isso me reprimia muito. Acho que ela receava que eu fosse repetir os comportamentos desses homens da família Salazar. Quem sabe minha admiração pelo gênero feminino começou a partir de minha prima Rebeca que era a única entre nós meninos e quem batia de frente com todos. Foi quem nos ameaçou, chegando a agredir fisicamente justo o mais velho e mais forte, nosso primo Juliano. 

Eu a temia e amava loucamente.


Minha vida parece sempre dividida em capítulos e os fragmentos do passado nem sempre obedecem a cronologia dos acontecimentos. Nesse capítulo da primeira infância é bem provável que eu não lembre de muitas coisas além do que relatei. 

Dali pelos oito ou nove anos, por meu pai eu era bastante repreendido para que não brincasse com as filhas das vizinhas. Eu Victor, diferente dos outros meninos, amava o universo infantil das meninas que copiavam suas mães, inclusive brigando com as bonecas como se fossem suas crianças. Claro que brincar de boneca, somente às escondidas. Como era bom ser uma mãe autoritária no estilo dos anos 80! Eu era "a diretora" do orfanato e aceitava bem ser colocado em outro gênero que me parecia bem menos frágil do que o meu. E quem sabe a fragilidade era somente minha perto de outros meninos.

Quando minha mãe tirava umas horas no sábado à tarde para tomar chimarrão com algumas vizinhas, além dessas brincadeiras eu adorava ouvir suas conversas. Parecia uma convocação de guerrilheiras. Sentia medo delas quando juntavam-se. Eram pesadas as coisas que diziam sobre maridos, irmãos, pais e filhos homens e eu, Victor, era a peça de um quebra-cabeça encaixado erroneamente em outro padrão de formas e estampas.

Ali minha mãe, finalmente chama-la-ei então de Valéria, teve coragem pela primeira vez, às gargalhadas, de contar que meus olhos verdes escuros eram o resultado de chás abortivos e da mistura de arruda com cachaça que uma benzedeira lhe indicou. Era óbvio que brincava com relação à cor de meus olhos, óbvio mesmo, afinal ela os tem da mesma cor. Quanto às tentativas de aborto, não era brincadeira.

Aborto para mim não era uma palavra importante. Aos oito ou nove anos, isso perto de 1990, da maneira que recebíamos informações naquele tempo, éramos muito inocentes. Não me doeu ouvir com todas as letras:

— Tentei abortar o Victor várias vezes. Tomei muito chá de losna com cachaça e arruda no começo, depois quando ficou perigoso pra mim, eu parei.

Anos mais tarde quando se separaram, meu pai atirou na cara dela que a gravidez tinha sido proposital, época em que ele queria a separação de uma mulher frígida e feia como ela, segundo ele. Ela devolveu o insulto dizendo que cansou de tentar me "tirar" para não ficar amarrada num homem porco como ele, segundo ela. 

Acabo de antecipar um capítulo, pois sim, eles vieram a se separar no início dos anos 90 quando eu esperava que meu aniversário fosse comemorado com bolo, festa e amigos. Precisei vê-los gritando um com outro, na pior discussão que já tiveram.

E o capítulo posterior também foi pesado, talvez porque me lembro melhor das coisas, elas doíam mais. Na separação ambos alegaram que era complicado ficar comigo. Ela trabalhava dobrado e ele logo se ajuntou com um mulher ciumenta que o controlava e não me aceitava consigo. Precisou minha avó materna chantagear emocionalmente minha mãe para que ela ficasse com a guarda, que durou até meus doze anos quando ela se amasiou com um solteirão mal humorado que detestava crianças. E assim, meio largado, fui parar na casa dos avós paternos que era mais legais que a vó materna sem paciência comigo e outros primos.

Só que ali estaria vivendo sob o mesmo teto que o tio Arlindo, aquele do início... aquele que me assediou por anos. Acreditei que ele não me tocaria por eu ser um pouco mais velho. Sinceramente achei que ele era ciente de que se me tocasse poderia ter problemas. Ainda assim, o homem aproveitava-se quando estávamos sozinhos para me tratar no feminino no sentido de diminuir um homem que na sua cabeça valia mais do que uma mulher. 

Seus insultos eram principalmente combinados com o gênero feminino: "burrinha, suja, estúpida, égua, chorona" e por aí à fora. Falo especificamente desse meu tio porque ele é quem tinha esse comportamento e que mudou para algo mais sujo depois de dois anos, mais ou menos quando ele comprava-me com pequenas quantias em dinheiro e ameaças de castigos físicos, pedindo para eu referir-me a mim como: "gatinha do tio, safadinha, cadelinha". Isso sem me tocar ainda, e sim tocando-se por cima das calças até estremecer de maneira estranha e tentar chegar mais perto. O que o parava sempre era a Providência de lá de cima, pois sempre acontecia alguma coisa que o interrompia.

Porém um dia ele ousou me tocar, eu tinha quatorze anos e morria de medo dele, e foi asqueroso. Deus do céu! Foi indigno, repugnante e amedrontador sentir sua mão entrando na parte de trás de minha calça de moletom da escola. Eu distraído, pego de surpresa revidei, lutei com protestos verbais em baixo tom de voz. Ele imediatamente me acalmou com uma ameaça e com essa, eu consenti enojado que ele mexesse em meu ânus virgem, ainda que levemente e sem forçar-se para meu interior. 

Queria morrer. Jamais chorei tanto. Previ que as coisas piorariam, mas houve algo naquela época que ocorreu de maneira confusa, pois na segunda tentativa dele, foi eu que lhe disse algo que jamais lembrarei, muito menos palavra por palavra, mas creio que ele tenha se assustado, pois parou com as investidas físicas, mantendo apenas seu olhar predatório sobre meu corpo e as agressões verbais que nunca cessaram. Sob ameaça e um histórico manchado pela minha suposta invenção ainda na infância de que ele mexia em mim, eu não tinha coragem de abrir a boca. 


Por aquela idade, suportei também todo o fardo da homossexualidade negada quando meu jeito afeminado desmentia minhas palavras. Meu jeito falava por mim. Eu negava e me ofendia com as sugestões das pessoas.

— Não sou gay! Que horror, tia! 

Eu tive quem me perguntasse, insistisse e acusasse de ser gay. Como sabia que não amenizariam, nem seriam amigos e compreensivos, eu negava com convicção e esforçava-me para disfarçar o que queria vir para fora. 

Só me restava falar com as paredes, falar até mesmo em vingança, mas tinha medo das consequências que ela traria. Vingança é traiçoeira. Era correto reprimir esses pensamentos. Todos os pensamentos naturais de defesa, eu reprimia. Mas a solidão, após fatos repetidos de abuso nas palavras do tio Arlindo, trazia novamente o desejo de reagir, porém tais pensamentos me assustavam, pois vinham em forma de vozes e eu tive muito medo de talvez estar ouvindo assombrações. 

Cuidei de sufocar tudo aquilo com medo do mundo.

O dia em que cheguei perto de um surto e abri a boca, o canalha, por outro lado falou "sua versão" das coisas e naquela casa fui proibido de entrar sob novas ameaças, porém ameaças declaradas diferentes das que o maldito já fizera. Meu pai irritado comigo "atirou-me pedras" e minha mãe, mais maternal após nosso afastamento preferiu acreditar em mim e resolveu abrir um processo contra minha família paterna. 

Já sabemos quem tem dinheiro dita as regras então um acordo financeiro bem gordo, abafou o caso. Ela recebeu um bom dinheiro, tanto que me abriu uma Poupança para o futuro. E me abrigou novamente sob protestos do meu padrasto. Resolvi dar a ela uma chance.

Com a desejada dispensa de servir o exército por um ano, eu escolhi cursos técnicos em vez de uma faculdade. Na área de Informática precisava lidar com idiotas que meio que me tratavam com uma bichinha indefesa a qual eles não respeitavam.  A Informática nos anos noventa era bem limitada e os sistemas muito simples em comparação ao que estaria por vir, porém era extremamente complexo de aprender e a conexão com a internet era difícil, lenta e maçante.E eu era um garoto de dezoito anos a batalhar por uma melhora nas condições do fornecimento dos meus serviços, já que não era um dos melhores.

Victor, toma o celular — na época isso era um luxo. 

Eu ainda não possuía um particular, comprei meu primeiro uns cinco anos depois, lá por 2003, e o da empresa servia para ficar de plantão aos finais de semana e ganhar uns trocados ridículos no final do mês como extra. Não tinha escolha. O plantão eram quase sempre meu, não havia sequer uma escala justa. Não conseguia me defender de absurdos. Calava-me até quando o DP teimava que naquele mês eu tinha ficado com o plantão por apenas três finais de semana e eu tinha certeza que eram quatro. 

Nem mesmo abria minha boca diante de brincadeiras pesadas com relação à minha orientação sexual. Orientação que eu mantinha em segredo, como antes disse, eu era um afeminado que mentia que tinha uma namorada em outra cidade. Embora eu tivesse certeza que sentia-me atraído por homens, minha experiência única com um deles era algo nojento de lembrar. Eu era cheinho e tímido. Comia e me escondia. Tinha poucos amigos e medo de tudo, clichê, porém real. Era tudo mais discreto, quando digo o discreto, aquele que conseguia enganar as pessoas com seu jeito acima de qualquer suspeita. Já não era meu caso e eu lutava contra minhas "viadagens" para ter um mínimo de respeito e paz.

— Ó Victor sonhei contigo, vou jogar no bicho.

— Hoje é veado na cabeça!

— Já falei que não sou gay. Tenho namorada, só que ela mora em São Paulo.

— Sei... sim... sim...

E risos seguiam a brincadeira. O chefe raramente dava uns "esfregas" nos colegas pedindo respeito e eu em nome do bom ambiente para os demais, eu forçava um riso, engolia amargo e chorava escondido.

Era assim. Assim mesmo. Conheço hoje pessoas que não se assumiram no passado com medo disso e por isso acabaram se casando, tendo filhos, vivendo felizes ou infelizes. Uns sufocaram por meses, outros por anos e mais anos, uns jamais se assumiram abertamente e viveram vidas de segredos. Eu queria ser apenas eu mesmo e sonhava com o dia em que alguém igual se interessasse por mim.

Eu era o sonhador pé no chão. Queria, almejava e ao mesmo tempo tinha a consciência do que eu teria se me mantivesse oprimido, talvez um pouco de respeito por fora e infelicidade por dentro.

Claro que eu sentia algo forte dentro de mim que às vezes subia-me a goela e quase me sufocava. Cheguei a comentar com um colega desses mais tranquilos, o místico da turma e ele me orientou a procurar um centro espírita. Eu não fui por puro preconceito naquela época. Ignorância. Talvez eu tivesse recebido ajuda.

Ou não.


***

Qual a sensação? Vou deixar que se mostre. Estou feliz em entreter e dividir com você. É difícil dizer como seus próprios pensamentos podem te machucar. Vou deixá-los encarar. Eles se sentem como eu lá fora. Então bem-vindo ao show. Que tragam as luzes. Deixem iluminar você. Estamos todos aqui esta noite. Bem-vindo ao show. Bem-vindo à minha vida. (Welcome To The Show, Adam Lambert)


***

Então é isso por hoje. Beijos, carinho sempre ♥♥♥ >^.^< 

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