| 002 | IRMANDADE


O SILÊNCIO HAVIA SE tornado um grande amigo de Sinestrea por um bom tempo. A casa era grande, e recebia visita todos os dias, além de ser a moradia de incontáveis mercenários e ladrões, nem de longe um local adequado para que uma criança fosse educada, entretanto, o que mais havia na mansão eram crianças. Zora dizia que eram seus adoráveis larápios. Nenhum deles parecia viver bem, os ossos da maioria eram evidentes por conta da magreza, e viviam sempre doentes, tossindo e com infecções de pele. Teria tempo para descobrir isso.

Estava na mansão havia penas um dia, no segundo, a acordaram cedo e lhe deram trapos para vestir, mesmo a roupa que estava usando sendo incontáveis vezes mais apresentável. Obrigaram-na a colocar aquele vestido bege e que estava quase se desintegrando, mas ela ficara em silêncio durante todo o tempo, acatando ordens e tentando entender que tipo de coisa Zora estava esperando dela.

Sinestrea desceu as escadas, a mesa do desjejum ficava bem a frente, grande, capaz de comportar quinze pessoas. Estava com pães e um bolo. Um senhorzinho de idade cortava os pedaços, algumas crianças já comiam, e era impossível não notar que havia um ar mórbido no local. Ninguém exibia alívio ou felicidade por estar ali, apenas a melancólica sensação de estarem vivos. Ao canto, homens observavam imóveis com espada na mão o que acontecia. Suas capas grossas eram de um vermelho intenso na parte interna.

— Você deve ser a nova larápia — murmurou o senhor, sorriu levemente, numa tentativa de não assustá-la.

Em sua cabeça já não crescia cabelo, havendo algumas manchas no lugar. A pele parecia se dissolver em tantas rugas. Vestia uma túnica esfarrapada e com manchas marrons, segurava um pedaço de pau para andar sem cair. As crianças mal olhavam para ele.

— Imagino que sim — respondeu Sinestrea.

— Sirva-se, por favor.

Sinestrea sentou ao lado do senhor, em silêncio, enquanto as outras crianças mastigavam o pão velho e observavam o quanto ela era bonita. Os cabelos vermelhos não estavam tão sedosos quanto antes, isso era fato, mas Sinestrea esbanjava uma aura encantadora. E mesmo com a roupa cinzenta e esfolada, era notável que vinha da nobreza, suas costas eretas, as mãos delicadas e o toque suave indicavam isso. O velho deu um pão a ela, que evitou ao máximo esconder a careta enquanto mastigava.

— A Mestre já conversou com você? — perguntou ele, a voz era baixa e cansada, anos de servidão cansavam qualquer um, até mesmo o mais forte dos homens.

— Não — respondeu, mastigou a massa sem gosto e dura, reprimiu a careta de desgosto. — Sobre o que Zora gostaria de conversar comigo?

O velho não deixou que o pigarreio escapasse, apenas mudou a posição e suspirou, bem fundo. Tinha medo de Zora enviar uma garotinha tão nova para um prostíbulo, o que não o surpreenderia.

— Sobre sua estadia aqui, nada mais — finalizou.

Minutos sepulcrais se passaram com lentidão, Sinestrea comeu tudo o que conseguiu engolir sem chorar. Algo ruim estava se formando em seu peito, não era medo ou qualquer outra emoção graças ao velho e seu aviso, era apenas... Algo que ela não tinha controle. Incomodava, se assemelhava a um vazio irritante, como se estivessem arrancando algo de dentro dela.

Zora surgiu no alto das escadas, o vestido negro que usava era fosco e de um pano leve e quase transparente, um espartilho feito de ferro cobria todo o seu abdômen até embaixo dos seios. Os cabelos estavam com óleo, pois brilhavam a cada movimento. Sinestrea já havia visto damas da aristocracia mais bonitas e mais elegantes, mas tudo o que a mulher nas escadarias vestia parecia ressaltar sua beleza e a deixava fenomenal. 

Sinestrea engasgou, não conseguiu olhar para mais nada, a visão se embaçou e tudo ficou turvo, borrões negros e desformes surgiram. O som parou, as vozes das crianças e os pratos mexendo na cozinha do lado sumiram, dando lugar a um zunido estridente. Cenas escuras e borradas passaram por sua mente, um lugar ensolarado, o céu com o tom mais azul e bonito que já vira na vida.

Haviam montanhas ao fundo, o gramado verde se estendia pelo horizonte sem fim. O lugar era tão lindo e incrível que seus olhos doeram ao contemplar tamanha beleza. A pequena sentiu que sua alma estava fora do corpo, visitando outro lugar, entrando em algo que não deveria. 

Uma lufada de ar a acometeu, gelado e puro. Foram os segundos mais calmos e livres de toda a sua vida, e então, uma onda de poder a expulsou dali. Regressou para a mansão assustadora de Zora, quando abriu os olhos, incontáveis rostos estavam a sua volta, olhos arregalados a fitavam. Todo o seu corpo estremeceu, as costas doeram e os olhos se encheram de lágrimas. Ardeu, simplesmente tudo ardeu. Sinestrea gemeu, tossiu e sangue escorreu de sua boca e seus olhos. Zora caminhou até a criança caída no chão e arregalou os olhos quando viu o estado em que estava.

— Afastem-se! — ordenou, e as crianças se espalharam longe de Sinestrea na hora, Zora se abaixou e tocou o sangue.

Seus dedos ficaram manchados de sangue, e começaram a arder. Zora deu um grito e tentou incontrolávelmente limpar seus dedos na capa grossa que usava. Seus olhos se encheram de lágrimas, ninguém ousava perguntar nada ou se aproximar. Quando olhou novamente seus dedos, estavam queimados, ardiam como se tivessem sido mergulhados em ácido. Algumas crianças deixaram a surpresa escapar. 

— Que porra você é, criança...?

— Nada que devêssemos mexer — respondeu o velho Krogh, a voz ríspida e ignorante, mal conseguia olhar nos olhos da criança pela qual sentira compaixão poucos minutos atrás. — Leve-a de volta para onde a encontrou. Que A Face do Fogo possa nos perdoar por nos aproximarmos de criaturas sombrias...

— Cale essa maldita boca, ou quem retornará de onde veio será você! — gritou Zora, as crianças e até mesmo o velho se encolheram, a voz dela era lei ali, tudo que ordenasse tinha de ser seguido.

— Senhora... — sibilou um dos mercenários, sequer parecia um assassino, pois tremia de medo da criança desfalecida no chão. — O velho Krogh está certo.

— Que Nilyhow se foda! — gritou Zora, e se levantou bruscamente, ainda sentindo muita dor nos dedos. — Levem-na de volta para o quarto!

Sinestrea mal tinha forças para manter as pálpebras erguidas, um misto de emoções tomava conta dela a cada segundo. Um dos homens a pegou nos braços e a levou de volta para o quarto. Mal conseguia fitar o rosto da criança. O medo que os homens sentiam de qualquer coisa que fosse próxima demais da magia os assustava. Faziam séculos desde que Nilyhow separara os dois mundo, não havia ninguém deste lado que se lembra de como era a vida com os seres mágicos.

— Espero que morra, coisinha maldita — sussurrou o mercenário, a jogou na cama e se virou para a porta, Zora estava logo atrás, mas não escutara as palavras do homem.

— Não a incomodem até que acorde — ordenou Zora, ainda sentia muita dor nos dedos. — E quando isso acontecer, me chamem.

E então, Sinestrea foi deixada sozinha no quarto.

Olhos amarelos a fitaram descaradamente. A cor era linda, impressionante, até mesmo hipnótica. Observou o homem parado no outro extremo do quarto, uma túnica branca e dourada era todo o seu vestimento, além dos chinelos dourados, que pareciam sere feitos de ouro. A pele era retinta, homem belo, encantador, e sobretudo, forte. Faltou ar para os pulmões de Sinestrea, foi como se estivessem a impedindo de respira

Foi como um relance, um delírio. O homem estava ali, e no instante seguida, desaparecera. Foi quando Sinestrea conseguiu soltar um grito de desespero. Não havia mais nada a sua frente, apenas um quarto vazio e silencioso. Demorou poucos segundos para que a porta fosse aberta bruscamente, a criada que havia a acordado de manhã. Agora, sua expressão estava banhada em horror.

Zora apareceu, ainda estava com o vestido preto, mas o espartilho ela já havia tirado. Mantinha uma expressão curiosa e calma, como se tentasse não assustar a pequena garota. Se sentou na cama ao lado de Sinestrea.

— Não grite em minha casa — repreendeu a Assassina, não parecia ter qualquer compaixão por Sinestrea, a mulher sorridente do bar em Marw havia sumido, uma megera estava em seu lugar.

— Havia um homem aqui dentro — respondeu, Zora olhou para trás e verificou todo o quarto, entretanto, apenas constatou que estava vazio. — Ele era negro, vestia roupas brancas...

Zora apenas arregalou os olhos, mas não disse nada. As duas ficaram em silêncio absoluto por um período curto. A mulher pensou em todas as possibilidades para que a menina pudesse ter nascido com poderes, mas verificara nos registros de heráldica da biblioteca. Os Verhouss não tinham nenhuma ligação com feéricos.

— Você se lembra do que aconteceu, Sinestrea? — perguntou Zora com a voz rígida, encarou a criança com ódio, seus dedos não paravam de doer, tonturas a acometiam a todo instante e o estômago estava se revirando.

— Por breves segundos eu estive em outro lugar — respondeu Sinestrea, os lábios tremeram, os pelos se arrepiaram ao lembrar de tal acontecimento.

— Onde estava?

— Não sei, era apenas muito bonito.

O silêncio incomodou a criança, sabia que estava falando loucuras. Zora não ligava muito para os larápios, muito menos para as bobagens que diziam. Porém, nenhuma delas era capaz de machucar apenas com o próprio sangue. Só há um lugar que alguém assim se daria bem.

— Vou ser sincera com você — iniciou, seus olhos não desviavam das pupilas azuis de Sinestrea. — Sabe o que as pessoas fariam se a encontrassem? Cortariam sua cabeça, a colocariam no fogo e depois pediriam misericórdia para Nilyhow. Magia foi banida para nós, e aconselho que esconda bem esse segredinho. E, da próxima vez que aprontar em minha casa, mesmo eu tendo sido tão hospitaleira, se arrependerá.

Sinestrea encarou a mulher, seus olhos negros encararam de volta, um pequeno sorriso ladino se formou em seus lábios pintados de vermelho. Os cabelos dela estavam perfeitamente cortados e alinhados, se não fosse pelas mechas laterais maiores que o comprimento normal. A mulher era elegante, e com sua voz aveludada, tudo sempre parecia bem.

Poucos minutos depois, percebeu que havia um pouco de sua mãe em Zora. A firmeza, a certeza de que estava certa sempre. Até mesmo a autoridade, se lembrava da mãe dando ordens que eram acatadas imediatamente. Porém, Eleanora era gentil e fiel a um homem. Ninguém desse lugar ousaria desrespeitar uma lei sequer que fosse ordenada por ela. Sinestrea não disse mais nada, apenas encarou o rosto firme e imutável de Zora.

— Descanse — ordenou a mulher, se levantou subitamente e deixou Sinestrea sozinha na cama, ela se recolheu, sentiu medo de ver alguma aparição novamente. — Amanhã conversaremos. Bem vinda à Irmandade, criança.

Todo seu corpo doía quando abriu os olhos. Um zumbido insuportável soava dentro de sua cabeça, enquanto que um crepitar parecia vir do ambiente. A visão embaçada impossibilitava que visse qualquer coisa, tudo não passava de borrões misturados com vermelho e a sensação de quentura. Rolou um pouco e percebeu que estava caída no chão, mas algo queimou sua pele imediatamente, foi quando seus olhos finalmente enxergaram tudo ao redor.

O crepitar vinha das Chamas incessantes que queimavam todo lugar. As paredes cremes derretiam, enquanto que ficava ainda mais abafado e quente. Havia rolado justamente para o lado do fogo, e agora seu braço ardia como nunca antes. Urrou de dor, sentindo a pele sendo destruída. Se levantou as pressas ainda gemendo com a queimadura. Não conseguiu impedir que lágrimas caíssem dos olhos, olhou ao redor e teria de pular na direção do fogo para alcançar a porta. Respirou fundo, tentando se concentrar no braço para curá-lo mais rápido.

O vermelho se estendia por toda a sala. Estava suando, e o medo quase dominando seu corpo. Limpou as lágrimas e continuou procurando outra saída. A janela de vidro transparente era majestosa de grande, permitindo uma vista panorâmica da cidade lá embaixo, mas era pesada e mal conseguiu levantar um pouco. Não tinha outra saída, o fogo era a solução. Suas pernas queimariam também, mas se desse sorte, escaparia e poderia descer até a cidade. Também sobreviveria aos cortes se pulasse no vidro e caísse no chão, mas isso a deixaria incapaz de correr, provavelmente. E pelo que podia ver, a cidade também ardia em chamas.

Se assustou quando um pedaço do teto despencou. O estrondo fez com que seus ouvidos doessem, e o medo aumentou. Aquele pedaço de ferro, misturado com madeira e outros materiais podiam ter caído em sua cabeça. Respirou fundo e correu na direção das chamas.

As botas duras não protegeram seus pés, e muito menos as calças de batalha. Passou em meio das chamas correndo e sentindo a maior dor que já sentira na vida. Podia sentir a carne sendo comida pelas chamas, o cheiro de queimado vindo de seu corpo. Não morreria ali, mas as chamas.... o crepitar baixo, mas ao mesmo tempo ensurdecedor... tudo fazia com que se desesperasse mais. Era como estar em um labirinto, mesmo conhecendo cada corredor do edifício.

Quando terminou, suas pernas estavam queimadas, o pano da roupa derretidos e grudados na pele. As lágrimas caíam a cada pontada, ao sangue escorrendo e a carne de seu corpo desfigurada.

Foi quando Sinestrea acordou assustada, ainda no breu do casarão de Zora. Os olhos cheios de lágrimas cristalinas, aos prantos, como se realmente estivesse em meio a chamas. Podia sentir a dor nas pernas e no braço, parecia prestes a morrer. Respirou mais fundo, ainda ofegante com a adrenalina. No fundo do seu coração, sabia que isso era mais do que um sonho. E mesmo depois de adulta, Sinestrea continuou com medo de fogo, e ele pioraria.

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