O doce veneno do vinho bordô
História foi escrita em parceria com o projeto PurpleGalaxy_Project , betada com muitos resmungos pela doce MegNovis e com o design de bygoldenart
Tenham uma boa leitura S2
𓍊𓋼𓍊𓋼𓍊
Águias são aves que ocupam o topo dos céus. Sanguinárias, vaidosas e traiçoeiras. Estar na presença desses animais era como ter um pequeno bilhete de advertência que constantemente dizia "perigo" colado às costas. Hoseok sempre achou que o clã Jung era como as águias, poderosos, influentes e tão altos quanto o nível do próprio sol, fazendo jus ao brasão da família, mas ele sempre se considerou inferior, mesmo estando entre eles.
Era um bem-te-vi em um ninho de águias. Apenas um enfeite indesejado do casarão antigo.
Hoseok sempre soube que ele não era como seus irmãos e primos, sequer como aqueles que eram chamados de agregados, ou mesmo como os servos que eram tidos como de confiança. Ser um ilegítimo no clã das águias era um pecado mortal, uma doença contagiosa que se alastrava pela carne com o primeiro respiro de vida e somente se dissiparia com o último bater do seu coração ilegítimo; até lá, ele continuaria sendo atormentado pelo resto dos seus dias, apenas por ter ousado nascer filho de quem era.
Acolhido pelo clã apenas por insistência de Jung Sukyeon, os primeiros anos foram como o inferno na terra. Ele era alimentado com o básico e se aquecia com tecidos frios, todos do clã rezavam para que aquela criança desaparecesse entre as paredes do casarão e a paz fosse restaurada, mas o destino sempre pareceu ter uma ideia melhor para o trêmulo garoto.
A criança assustada foi substituída rapidamente por um homem leal e ambicioso, lutando contra as águias para ocupar seu lugar de direito até que o clã encontrasse sua queda.
Com a morte da antiga líder, facções foram criadas em meio ao clã da fartura, ocasionando uma grande perda com a decisão ambiciosa de depor quem fosse escolhido junto ao rei.
E assim como os Jung ficaram conhecidos por sua ascensão desmedida, foram conhecidos por sua descida vergonhosa.
Os boatos, maldosos e descabidos diziam que era culpa da criança ilegítima, que por ser fruto de um adultério, também era um filho de fada, uma aberração; assim como a mulher que tinha lhe dado a luz.
Hoseok já tinha ouvido aquilo antes. Que a mãe era fada e tinha a beleza que nenhum ser, humano ou não, era capaz de resistir, e que, ao deixar uma criança como ele ali, marcava a família com um sinal de tormenta. E como se sua origem fosse o suficiente para culpar o garoto, os Jung transformaram aqueles boatos em verdade.
Hoseok agora era o culpado da ruína do clã Jung.
Considerado indigno de títulos e do direito de herança, o homem foi destituído do que antes era o único tipo de amor que ele conhecia.
— Jovem mestre está tão calado hoje — Amanai anunciou de repente, os olhos monótonos mais interessados em esfregar canela nas janelas.
Hoseok apertou o nariz levemente, desgostoso com o cheiro de canela que subia a cada movimento vigoroso do pano contra a superfície de madeira, mas não emitiu nenhum comentário. Naquela época do ano, era comum que as casas fossem limpas com canela, alecrim e outras especiarias para afastar os maus espíritos e outras coisas não ditas.
— Apenas aproveitando o começo do silêncio noturno.
Amanai balançou a cabeça enfeitada por tranças, esfregando com mais afinco o pó marrom nas entradas do escritório. Hoseok quis tomar o pano das mãos da serva e mandá-la embora, assim como tinha feito tantas vezes desde que perdeu o que sequer pôde ter, mas ele tinha certeza que a garota retornaria na manhã seguinte com flores a tiracolo e pão fresco.
— Sendo agraciado pelo silêncio da noite antes de cair na cantoria dos amantes? — Amanai sorriu, achando divertido. — O senhor vai se sentir nas nuvens com o Carnival então.
Outra risadinha deixou os lábios da serva, fazendo Hoseok suspirar brevemente.
Carnival, ou a festa que nunca acaba, era o evento que todos na cidade pareciam apreciar fervorosamente. Com sete dias de festa em meio à floresta, sem nomes para honrar ou reputações para zelar, os moradores saiam em meio às árvores, cheirando a vinho doce e ervas, sorrindo e dançando uma música fantasma, contentes como se a dama da sorte estivesse sussurrando uma confissão de amor em seus ouvidos, mas quando questionados, não sabiam ao certo o que tinha se passado nos dias de folia.
A festividade nunca interessou Hoseok, no entanto. Tudo que sabia era informações tiradas de fofocas sussurradas entre os empregados e o chiado maldoso dos nobres ainda na tenra idade de como alguém poderia sair da miséria e ascender à glória ao ser agradecido pela dama da sorte, ou cair em desgraça ao desagradá-la.
Havia apenas duas condições sobre o festival:
Uma vez dentro do Carnival, a saída era permitida somente quando a festa acabava;
Se estivesse fora, a entrada seria permitida apenas se fosse convidado por alguém.
Naquele ano, Hoseok tinha decidido participar.
Atraído pela promessa do sussurro generoso da doce sorte entre os convidados e a oportunidade de estabelecer o próprio nome entre a família, o jovem mestre aceitou as coordenadas dadas por Amanai no começo daquela manhã, enchendo os bolsos de azevinhos desidratados e amoras selvagens para proteção, aguardando de forma paciente no escritório pelo crepúsculo do primeiro dia, já que a comemoração iniciaria apenas com o Sol escondido e a terra fria entre as colinas.
— Acho que está na hora, senhor. — Amanai parou de esfregar, olhando com atenção para algo no fim da propriedade.
Hoseok se curvou para frente, a fim perguntar como ela sabia que estava na hora, entretanto, poucos segundos antes do som sair de seus lábios, uma horda de sons metálicos e suaves soaram pelo cômodo, longe demais para serem perturbadores, mas perto o suficiente para serem escutados.
O carnival tinha começado.
Todos os moradores vestiam coisas simplesmente, como calças de algodão e camisas soltas. Nenhuma joia a vista. Nenhum ouro reluzente. Nenhuma soberba em seus rostos, apenas a ansiedade em seus corpos, a qual parecia aumentar com o tilintar suaves dos sinos os chamando.
Hoseok não tentou entender ou reconhecer alguém em meio a tantos rostos, não conseguindo graças ao interesse dos sons fantasiosos e metálicos cobrindo sua mente, fazendo-o flutuar em direção à floresta.
Banhada pela lua cheia, as árvores projetavam sombras e garras entre os troncos, movendo-se a cada piscada como uma brincadeira de pega-pega, criando trilhas e as desfazendo no momento que os moradores cruzavam seus trechos, trancando-os lentamente cada vez mais fundo. Uma vez dentro da floresta, o mundo parecia mais devagar. Hoseok notou os cipós vivos correndo entre os arbustos altos e as árvores se movendo em ruídos, como se sussurrassem umas para as outras. Os moradores não pareciam ligar para aquilo, seguindo cada vez mais fundo nas sombras densas até sumirem completamente no arbusto seguinte.
Hoseok moveu-se na mesma direção, abrindo a boca ao encontrar um abismo entre as colinas de Dorée.
Uma viúva, Banyue, estava na ponta do abismo, parecia quase excitada para o que veria a seguir.
— Senhora Ban... — chamou confuso, mas a mulher sequer virou em sua direção antes de erguer um dos pés e se deixar cair na escuridão logo a baixo. — Porra!
Ele ofegou, aproximando-se da ponta do abismo em busca de algum grito remanescente ou um corpo destroçado entre os arbustos, mas não existia nada ali além do silêncio e das folhas esverdeadas.
Hoseok então deu um passo para trás, temeroso. Que se danasse a dama da sorte e seus sussurros, ele voltaria para Dorée e encontraria outras formas para ter o que queria.
Antes que pensasse em cruzar o caminho de volta para a cidade, um toque aveludado correu seu ombro e ele foi atirado no abismo.
O grito fantasmagórico rasgou sua garganta, agitando os pássaros curiosos do topo da colina. Ele esticou as mãos, procurando algo para se segurar, debatendo-se e cortando os dedos nos galhos afiados enquanto o corpo continuava em queda livre. Hoseok esperou que os arbustos fossem enfeitados com seus ossos, então apertou os olhos à espera do impacto, mas o chão se abriu no meio e ele passou pelas árvores, pela terra e por dentro da colina, em direção ao Carnival.
Quando Hoseok parou de cair, ele ouviu música, risadas e o cheiro pungente de algo tão doce que tinha um fundo azedo no ar.
Hoseok puxou o ar com força, movendo lentamente os braços e pernas em uma mesma direção, com o intuito de se levantar, mas parou assim que tocou a superfície fofa da flor gigante que tinha amortecido a queda; ele não pôde evitar de abrir a boca, encarando as pétalas coloridas e grandes o suficiente para serem usadas como barco nos rios.
— Humano tolo, não sabe descer de uma flor sem a ajuda de um besouro?
Hoseok olhou para baixo, através da borda da pétala da flor, sentindo sua alma escorregar lentamente para dentro dos seus ossos. Dentes pontiagudos para fora da boca, expressões afiadas e olhos totalmente negros o encaravam de lá de baixo com um sorriso retorcido no lábios escuros como o céu sem estrelas.
— A-ajuda de um besouro? — Hoseok repetiu, unindo as sobrancelhas e apertando as mãos na borda das pétalas.
A criatura riu de forma engasgada, como se Hoseok fosse engraçado demais para se ignorar; ele planou poucos centímetros do chão, fazendo o jovem, notar as asas puídas e transparentes nas costas do ser.
Como se as partes faltantes das asas não fossem nada, a criatura pairou elegantemente até embaixo da flor e balançou o caule com um puxão firme. Hoseok tentou se equilibrar, agarrando as pétalas amarelas e mantendo os pés fincados na flor, mas pela segunda vez no dia, o jovem tinha entrado em mais uma queda livre para o solo.
Daquela vez, a terra não foi gentil consigo. O Jung caiu com o rosto amassado no chão e os braços para frente, numa tentativa falha de proteção. Uma horda de risadas soou perto demais de si, estranhas demais para serem de humanos, e depois que pareceu uma eternidade com o rosto enfiado na terra, como uma flor sendo retirada do solo, uma mão fria o puxou para cima com graciosidade. Hoseok abriu a boca para agradecer a criatura alada de antes, a mesma que o tinha derrubado da flor, mas uma mão quente rapidamente enroscou em seu braço, puxando-o de forma brusca para longe da criatura alada e da sua horda risonha.
O Jung uniu as sobrancelhas, crispando os lábios em um sinal de irritação. Estava se sentindo como uma bola de criança, sendo jogado e empurrado para todos os lados. Com um simples puxar, livrou-se do aperto da criatura e parou a caminhada frenética. Ela virou-se, mostrando feições humanas o suficiente para não serem obras de sua imaginação.
— Perdeu a cabeça? Estava prestes a agradecer aquela fada! — a mulher resmungou, cruzando os braços. — Sei que somos tolos o suficiente para descer até aqui, mas também não precisa ser burro o suficiente para não aprender as regras da colina!
Morgan Fairge não parecia a mesma da versão dura e pouco acessível de Dorée. Ela não tinha as roupas simples e o cabelo solto como as outras mulheres que foram para a floresta, ao contrário, ostentava grandes cachos do tom mais escuro de vermelho, arrumados para emoldurar o rosto redondo, brincos grandes e uma conjunto de vestido e corpete feitos de um tecido que Hoseok jamais imaginou ver. Era brilhante e leve, como as pétalas de uma flor.
— Regras? — questionou, dando um passo para trás à medida que Morgan parecia cada vez mais bonita.
— Regras, ou você desceu para a colina sem nem ao menos saber o que era? — ela zombou, mas parou assim que notou o silêncio que só podia significar que sim, ele tinha ido sem ao menos saber. Morgan torceu o rosto. — Jovem mestre, debaixo da colina das fadas, você deve seguir regras essenciais, como: jamais agradeça as fadas, não as insulte ou as ignore, nunca recuse um presente, mas também não faça que elas os dê um, e por último, não faça acordos. Fadas não mentem, jovem mestre, mas elas enganam, e nenhum acordo é barato o suficiente para nós.
Hoseok encarou o rosto da mulher com incredulidade, mas se manteve calado. A queda do abismo, a flor gigante que o amparou, a criatura de dentes afiados e asas esfarrapadas não poderiam ser explicadas se ignorasse Morgan. O Carnival. A dama da sorte.
Tudo era sobre elas. As fadas.
A mulher se aproximou mais, ficando perto o suficiente para que Hoseok pudesse enxergar o brilho prateado em sua pele. Sem pensar em nada, ele se inclinou em direção a ela levemente, o desejo de tocar a pele brilhante passeou por seus dedos como uma brisa suave.
— Ah, isso também é das fadas. — A voz da mulher soou perto demais e Hoseok se afastou, ela sorria como se soubesse exatamente o que tinha acontecido. — O glamour, a atmosfera, o brilho, a beleza... é tudo trabalho delas. A luxúria. Estou mais bonita aqui, não é? — Ela deu um risinho, mas continuou a dizer: — A dança delas é o pior, ela te encanta e te faz dançar até sangrar, mas é tão bom... é tão vivo.
Hoseok piscou os olhos castanhos dourados, absorvendo as informações dadas por Morgan e encarando a situação ao redor. A música tocada era como os sinos de mais cedo, um soar encantador, com notas doces como o mel, atraindo quem ouvisse para que acompanhasse aqueles que giravam no centro; alguns pareciam leves demais para o ar, flutuando e rodopiando na brisa, como pássaros. Também tinham as criaturas pesadas, que faziam algumas mesas tremer com os pulos ritmados e passos altos. Criaturas de dedos longos e pele como as cascas de uma árvore tocavam alegremente, outras riam com taças de madeira em mãos e vestiam roupas de tecidos brilhantes com alguns desenhos que remetiam à floresta bordados em prata. Ogros robustos e com armaduras rosnavam para aqueles que chegavam perto enquanto bebiam e batiam palmas. Seres menores e brilhantes como pequenos sóis rodopiavam aqueles que dançavam, iluminando as ondas de tecido que subiam e se emaranhavam entre os dedos. Criaturas com chifres, rabos, penas, folhas e espinhos também estavam lá. Os humanos pareciam em casa no meio a eles.
Acostumados demais para estranharem.
Por um fração de segundos, Hoseok encontrou os longos cabelos castanhos da viúva Banyue em meio às fadas. Ela tinha os pés descalços e, diferente de mais cedo, um vestido do tom mais profundo de púrpura enquanto sorria para alguém — uma mulher com patas e chifres de cervo e pintinhas esbranquiçadas pelos braços expostos.
Pobre Banyue. O marido foi morto. Será que foram as fadas? Dizem que foi o cervo.
A fofoca corria por toda Dorée. Hoseok agora sabia, não tinha sido um servo a matar o homem, apenas a fada com chifres de cervo.
— Siga as regras e fique vivo até o fim do Carnival, jovem mestre. — Morgan deslizou para a direita, deixando um rastro de tecido enquanto se movia. — Venha, vamos aproveitar a festa do povo da floresta.
Hoseok inclinou o corpo para frente, fascinado pela festa, e Morgan agarrou os braços cobertos, arrastando-o para outra direção, até a parte com pequenas luzes flutuantes que pareciam estrelas. Ao se aproximar, o homem notou que eram pequenas criaturas de pele azul-céu, com vozes estridentes como tordos e chapéus engraçados em formato de cogumelos enfeitados por musgo fluorescente.
Morgan não disse nada a elas. As pequenas criaturas sequer falaram algo antes de chiarem como se estivesse fervendo e avançar loucamente contra o jovem. Hoseok não teve tempo de reagir, sua pele foi beliscada pelas mãos pequenas e ágeis, rasgando as roupas e rosnando enquanto pareciam discutir algo muito específico.
À medida que as pequenas criaturas trabalhavam, algo mais elaborado surgia no lugar do conjunto simples de camisa e calça de algodão. Hoseok pôde sentir alguns puxões no cabelo claro antes que as pequenas criaturas se afastassem, conferindo o próprio trabalho e sumindo pelas copas das árvores em meio à risinhos.
— Bem, elas têm o talento — Hoseok sussurrou para si mesmo, conferindo a roupa com cuidado.
A camisa feita pelas pequenas criaturas tinha um grande decote em forma de V bordado com linhas prateadas, mangas longas que abriam suavemente ao redor do pulso e uma faixa de tecido grosso que marcava a cintura delgada, sendo um conjunto com a calça de um tecido cinza brilhoso, que era estreita no quadril e folgada nas pernas até o tornozelo, esse que era protegido pelas botas de couro comum. Ao passar as mãos pelo cabelo, notou as flores silvestres enfeitando as madeixas.
— Oh, sim, elas têm talento — Morgan concordou, colocando a mão dentro do bolso escondido do vestido e tirando de lá ramos de sorva seca. — Use enquanto estiver aqui, não os tire do bolso. Elas te fazem resistir um pouco mais aos encantamentos, e a dança.
Com a pele formigando ao toque da especiaria, Hoseok colocou o ramo no bolso, não querendo pensar no que aquele formigamento poderia ser. Botão-de-ouro, rosas e flores de mel estavam por toda parte, perfumando o ar com o cheiro tão doce e inebriante que o estômago de Hoseok se contorceu. Morgan sorriu, satisfeita por ter entregue a sorva, e puxou Hoseok pelas mãos em direção ao redemoinho brilhante, em direção à festa das fadas.
A festa das fadas era algo nunca visto antes por Hoseok. Corpos brilhantes e longos cercaram eles, levantando o cheiro doce da terra e algo pungente que fazia o nariz de Hoseok tremer com a nuance, as fadas riam com dentes afiados e lábios secos, rodopiando em volta de si mesmas ou de outras pessoas, rodas eram formadas, cada um em seu ritmo insano de pernas e mãos batendo, chamando-os, atiçando os músicos a continuar tocando até o fim da noite. Os pés de Hoseok pareciam ganhar vida própria, forçando-o a se aproximar. Seu corpo inteiro pedia para que ele entrasse na roda e sucumbisse a música, como se os acordes mélicos fossem uma substância tóxica injetada em sua pele, impondo-o ao ritmo dos pés das criaturas noturnas.
As sorvas impediam que Hoseok obedecesse aos acordes encantados. Ele resistiu à dança, parado exatamente onde Morgan tinha soltado suas mãos e desaparecido em meio às criaturas estranhas, deixando-o à margem da festa, sendo esbarrado uma vez ou outra por criaturas com chifres, asas e espinhos negros que serviam bebidas com cheiros doce.
— Aceita uma bebida? — Uma voz infantil soou atrás de Hoseok, fazendo-o girar na mesma hora.
Uma criatura disforme oferecia a bebida para Hoseok, o par de olhos negros tenebrosos junto aos pequenos olhos menores da mesma tonalidade espalhado pela testa e a maçã do rosto encaravam o humano com avidez. A pele ciano, junto às quatro patas com pequenas cerdas escuras espetadas e as orelhas longas apontadas para cima, não eram o suficiente para fazer Hoseok correr, mas era o suficiente para enviar arrepios curtos pela nuca.
Morgan o avisou para não as insultar ou as ignorar, tampouco aceitar presentes, mas como exatamente ele poderia negar uma bebida das fadas?
— Obriga... — Hoseok parou no meio, lembrando de não agradecer as fadas e olhou ao redor. Tinha humanos sendo servidos pelas fadas, bebendo e comendo os alimentos do povo da floresta sem hesitar. Eles pareciam bem.
Com uma olhada rápida entre as bebidas, o humano escolheu o cálice com desenhos semelhantes ao sol e a trouxe para perto. O cheiro de rosas preencheu o ar, delicado e sedutor, com notas de alguma erva que ele sequer conseguia lembrar o nome e uma cor vermelho sangue em uma dose insuficiente para a satisfação de qualquer ser.
A criatura que de pele ciano observou com diversão e Hoseok, alheio a criatura de quatro patas, levou a bebida até os lábios de forma desconfiada.
O gosto suave dançou em sua língua, fazendo-o virar a taça corajosamente em busca de mais, mas assim que o gosto suave foi substituído por um amargor semelhante ao fel, Hoseok inclinou o corpo para frente e cuspiu a bebida na terra, em meio a uma tosse incessante e batidas em seu peito.
O humano tentou mexer os lábios para questionar o que era aquilo, mas tudo que o líquido tinha tocado parecia arder e o impossibilitar de pronunciar algo. A criatura de antes sorriu, mostrando os dentes normais demais para sua aparência, e bateu a bandeja de bebidas com a taça de madeira que ainda era segurada pelo humano.
— Aceite a bebida como um "boas-vindas" das fadas, humano.
Os cantos dos olhos de Jung passaram a ficar turvos com rapidez, os dedos, antes tão quentes e vivos, esfriaram de maneira que uma coloração azulada passou a pintar as unhas bem cuidadas de forma fantasmagórica. Ele se curvou um pouco mais, buscando o ar e massageando o peito de forma trêmula, algo parecia crescer de forma exacerbada em seu tórax, como uma cobra serpenteando suas tripas; até que tudo parou.
A falta de ar, o incômodo e o terror da morte foram substituídos rapidamente pela euforia que se instalou em cada pedaço da carne de dentro para fora. As pálpebras de Hoseok caíram, os músculos relaxaram e ele endireitou a própria postura, erguendo-se como se não achasse que fosse morrer há poucos segundos. Em algum momento, Hoseok se preocupou, mas logo depois, nada mais importava. Alegria genuína dançando em sua pele.
A música o chamava para dançar em seu esplendor. Algo em seu bolso queimava e de lá ele puxou as sorvas secas que tinha ganhado de Morgan alguns minutos mais cedo.
Por que elas estavam ali?
Por que Morgan o tinha dado?
Como ela era tão má por impedi-lo de dançar.
Ele pensou, bravo com Morgan, e descartou as frutinhas. Alguém passou por perto, uma criatura resplandecente de olhos de raposa e orelhas pontiagudas apontadas para baixo, usando um vestido de folhas. Ela sorriu como se pudesse devorá-lo e Hoseok se inclinou. Era tão bela. Tão cruelmente bonita. A criatura o envolveu em algo macio e o carregou para a dança.
A música estava tocando em todas as direções, incitando os passos, hipnotizando os sentidos, tocando cada músculo do corpo. Hoseok sequer sabia o próprio nome. O sorriso rasgou seu rosto, seus pés pularam no solo da colina e seus braços se enroscaram com facilidade na cintura do ser mais próximo. Algo pairava sobre eles. Três luas brilhando no céu de forma obscena demais para ser natural. Ele gargalhou quando uma das criaturas caiu em cima de outra maior, rasgando as asas frágeis. Todos riram ao seu redor.
A diversão não tinha fim.
Todos continuaram a tocar, música após música, dança após dança, sem uma pausa para recuperar fôlego. Ninguém para. Ninguém sai.
Três horas ou três dias, Hoseok não sabia realmente. Seus pés passam a latejar, mas ele não se importava. O músculo das pernas tremeram com todo o esforço e o tórax doeu, mas ele não parou. A melodia era quem comandava, rastejando por sua derme e penetrando sua carne até atingir suas veias e comandar seus batimentos cardíacos como um simples instrumento de corda.
Em um momento, a roda se desfaz como carpas. As criaturas se afastaram. Hoseok, de uma hora para outra, estava com os braços de um desconhecido em sua cintura. Mesmo em meio a neblina brilhante dos seus olhos, Hoseok conseguiu notar o longo cabelo rosa, os olhos astutos esverdeados e as presas felinas que sobressaiam levemente os lábios cheios da criatura. Era tão bonito que doía. Tão belo que podia beirar o divino.
Era uma fada, Hoseok tinha certeza, tanta beleza jamais poderia pertencer a um humano.
— Humano e tolo demais para estar em meio a roda, não acha? — a voz do desconhecido soou doce, tão doce quanto a música tocada, e enviou arrepios perigosos pelo corpo do humano.
Em um movimento gracioso, o desconhecido faz Hoseok girar de forma tortuosa. O humano piscou os olhos devagar, encarando as esferas verde-esmeralda do desconhecido como se sua alma dependesse disso.
— Tolo demais para estar em qualquer lugar, mas não o suficiente para deixá-lo não me salvar — o humano respondeu de maneira rouca, arrastada, ainda muito afetado pela bebida de antes. A criatura pareceu adorar a resposta, porque gargalhou e jogou a cabeça para trás, mostrando parte do peito imaculado.
Hoseok não se importava se todos estavam olhando para a cena, ele apenas desejava que a criatura mais uma vez soltasse seu riso melódico e o prendesse em seus braços pelo resto daqueles dias.
— Venha comigo, humano. Posso te salvar algumas vezes mais — a criatura chamou de forma sedutora, serpenteando os dedos gordinhos pela cintura de Hoseok até chegar em suas mãos.
Não precisou de muito para Hoseok acatar o pedido. Era como estar enfeitiçado. A fada andou entre a multidão sem se preocupar em ser esbarrada, subindo em direção ao altar que Hoseok sequer tinha notado.
Perto demais, o humano notou que não era um altar, e sim um trono. Um grande trono feito de madeira escurecida e entalhes de ouro, sendo ocupado por um homem tão bonito que o humano passou a pensar que era tudo uma ilusão.
O desconhecido de antes não se limitou a parte de baixo do trono, ele andou até o homem sentado lá, pouco incomodado com os olhares indiscretos e sentou-se no apoio do braço, cruzando as pernas pálidas brilhantes e envolvendo os ombros largos do outro homem com o braço esquerdo. Ele parecia extasiado.
— Acho que dessa vez você vai apreciar minha escolha, meu rei — o desconhecido cantarolou no ouvido do homem, passando uma das suas pernas descobertas para o colo do monarca com familiaridade.
O humano sentiu a pele queimar com o olhar do rei. Ele, assim como o primeiro desconhecido, tinha uma beleza quase divina, mas o rei era algo além.
Longas madeixas verde-menta caiam para fora do trono, ostentando tranças menores espalhadas pelo comprimento e enfeitadas com brotos rosas de flores-de-mel, dando um ar gentil em conjunto com a pele verde-pálida, como jade seca, que vez ou outra tinha o pequeno vislumbre de uma escama sobressaindo o casaco de seda em uma brincadeira provocativa, mas logo tudo aquilo era quebrado ao olhar o rosto do rei. Olhos âmbar cintilantes como ouro líquido eram destacados pela sombra preta embaixo dos olhos, tornando-os vivos e puros em meio aos caninos duplos e curtos que espetavam os lábios de baixo, como um lembrete perigoso, e os chifres longos e curvos de um dragão envelhecido, espreitando elegantemente os cabelo verde-menta como galhos.
Selvagem. A beleza do rei pertencia à própria floresta para Hoseok, um grande contraste com o homem de cabelo rosa, que ostentava grandes joias em seu pescoço e pulso, tilintando cada vez que fazia um movimento gracioso em cima do trono. Mesmo de longe, Hoseok conseguiu notar as tranças finas que enfeitavam a parte da frente dos cabelos rosas e as duas pequenas manchas em formato de flor de cerejeira na maçã do rosto do homem, dando-lhe um ar quase irreal.
— Um humano? — a voz soou como o rosnado de um dragão antigo, provocando arrepios pelo corpo do Jung, à medida que um sorriso de duplos caninos cresciam na face do rei fada. — Acho encantadora a sua escolha, meu consorte
Mesmo em meio à névoa da bebida fada, Hoseok entendeu o que eram as pessoas cruelmente belas à sua frente. Casados. Reis. Governantes de todas aquelas criaturas misteriosas e nocivas.
O Rei Consorte sorriu de maneira brilhante, saltando do trono como uma raposa ágil e caminhando até o humano. Ele se aproximou como uma cobra à espreita, cercando o corpo alheio com o seu próprio e se posicionou nas costas de Hoseok, apoiando o rosto no ombro humano.
— Meu rei está ansioso para conhecê-lo humano, estamos há muito tempo esperando por algo como você. — A doce voz estava lá novamente, sussurrando no ouvido humano como um diabo tentando um religioso. Hoseok quase pôde tremer com o calor da fada em suas costas e o hálito de hidromel pairando ao seu redor.
Um sentimento trêmulo desconhecido invadiu a euforia da música no peito humano e os joelhos doloridos traíram o próprio corpo, girando-o em direção ao Rei Consorte, inclinando-se em busca do toque caloroso do desconhecido. Ele também quer conhecê-los. Ele também esperou por muito tempo por eles, nas noites frias em meio a um quarto esquecido, rezando para que as criaturas da floresta pudessem buscá-lo como tinham buscado sua mãe, rezando para que fosse filho de fada e ganhasse ouro, mel e cauda. Hoseok passou os olhos pelo desenho de pétalas no alto das maçãs do rosto do Rei Consorte, depois pelo nariz arrebitado e afiado como espinhos de rosas e os lábios cheios pintados de um bordô tentador; o rosto tão resplandecente que facilmente o faria esquecer das três Luas bordadas no céu e do Sol acima das montanhas.
— Esperando por mim? — o humano questionou em um meio sussurro, a mente distorcendo as palavras para caberem em seu pequeno mundo. — Vocês esperaram por mim?
A voz brilhante do humano se tornou algo penoso com a simples pergunta ao tomar notas genuínas demais para serem fingidas. O Rei Consorte o encarou, no entanto, pouco abalado com o tom cortante adotado. Aquele era um dos efeitos da bebida das fadas, evidenciando a natureza humana e mostrando rachaduras nas superfícies planas, trazendo tudo enterrado na carne à tona.
— Oh, sim. Esperamos por você. — Um arrepio eletrizante desceu pelas costas do loiro ao escutar a voz severa e antiga em seu ombro. O rei estava lá, o rosto próximo ao ombro humano, como o Rei Consorte tinha estado anteriormente.
O rubor dormente tomou o corpo de Hoseok. O Rei deslizou as mãos com aneis grotescos pelas costas cobertas, suavemente, como uma brisa quente em meio ao inverno, e raspou o nariz de botão no pescoço desprotegido; foi o suficiente para Hoseok paralisar, também pareceu o suficiente para fazer o Rei Consorte agir.
Mãos com garras afiadas viajaram até o rosto de Hoseok, segurando-o com possessividade e forçando-o para frente, em direção às duas pedras de jade banhadas de ciúmes e perversidade pertencentes ao Rei Consorte.
— Não olhe para o meu rei, humano. Olhe para mim. — A voz soou de forma perigosa, os dentes afiados sobressaindo dos lábios convidativos como um lembrete casual de quem eles eram e o que poderiam fazer.
O rei, no entanto, não pareceu se importar com a cena do marido. Uma risada suave quase pareceu vibrar nas costas de Hoseok e chegar até seu pescoço pelo rosto do rei, que tinha os olhos âmbar acessos em seu consorte, com a mais pura diversão.
— É um privilégio vislumbrar a beleza do meu Consorte, mortal. Olhe para ele, admire-o e agradeça por ter sido visto por olhos tão perversos. — O rei tocou a bochecha dourada de Hoseok com a ponta das grossas garras, fazendo-o tensionar como um filhote indefeso com a descida das unhas até a jugular desprotegida. — Se ele não sabe apreciar a honra da sua beleza, meu doce Eros, devemos mostrá-lo como deve ser feito.
Os lábios do Rei Consorte lentamente se esticaram em um sorriso pintado de jocosidade e um quê de perversão, como se a fala do Rei fosse uma grande piada de humor único e ácido que apenas ele fosse capaz de entender. Uma mensagem oculta. Uma aprovação velada.
Em meio aos Reis do povo da floresta, Hoseok tentava respirar. A proximidade fazia seu corpo vibrar e os dedos dos pés dobrarem dentro das botas sujas. Algo como a música o chamava, mas diferente da melodia característica de sons metálicos e risos estridentes que o atraía para a roda no coração da floresta, aquele chamado o atraía para mais perto, da forma mais submissa e insana, em direção ao coração dos Reis.
Em meio a eles, Hoseok queria ser imortal.
— Por favor — o humano sussurrou de forma tola, suave como a brisa que dançava entre as árvores.
Algo parecia o tomar no seu âmago, subindo por seus músculos e derretendo suas resistências, concentrando-se em cada pequena parte que o poderia fazer enlouquecer caso não pudesse tocá-los e ser tocado por criaturas tão belas.
Os ombros magros e delicados do Rei Consorte sacudiram, uma risada amena e suave dançou entre seus lábios e atingiu inteiramente o humano, fazendo aquele sentimento do seu âmago transbordar um pouco mais.
— Você implora por algo que nunca chegou a ter, humano. — Os olhos do Consorte brilharam em pura luxúria, como vagalumes em meio à névoa; a língua úmida da fada atingiu diretamente seu queixo, causando pequenos arrepios na pele humana. — Apesar disso, meu Rei tem total razão, devemos mostrá-lo como deve ser feito.
Ao longe, Hoseok escutou soar em uma voz pacífica, uma balada sobre um humano que teve seu coração arrancado e enganado, ao passo que o som surgia, as fadas riam e se agitavam. Ele não se importou, sequer olhou na direção de onde a música trágica era iniciada, às mãos do Rei Consorte estavam em seus pulsos e as do Rei ao redor do seu quadril, ele mal pôde registrar os minutos seguintes, sendo levado de forma deliberada para longe da festa.
Pelas árvores altas, as encostas e as colinas revestidas em ouro brilhante, um castelo de pedra reluzente se erguia em total esplendor. Hoseok não se atentou aos detalhes, sequer sabia exatamente quantos corredores e cômodos precisou passar até que parassem em frente à porta com entalhes de raposas traiçoeiras, que se abriu de forma dramática, como se esperasse o toque dos seus senhores.
Hoseok teve o breve vislumbre de uma cama grande no centro do quarto com o dossel bordado, almofadas exageradas e ouro cintilante, antes que fosse puxado para dentro do cômodo. Seus olhos encontram os olhos dos Reis, e nada mais tinha importância. Seus quadris foram cobertos pelas mãos grandes e seus ombros acariciados por mãos possessivas. Os Reis envolveram-no como mais cedo, na festa, cercando-o como um animal indefeso e Hoseok mal conseguiu identificar quem era o dono dos toques. Existia os lábios do Rei Consorte em seu pescoço, mas também a língua áspera do Rei em seu ombro, existia a roupa que se perdia no caminho de tropeços para algum lugar e depois os dentes pontiagudos em seu maxilar, as unhas afiadas em sua cintura e uma mão atrevida em sua barriga plana.
Havia o som das respirações suaves, da pele sendo beijada e dos suspiros contidos do humano. Preso em meio a eles, Hoseok não consegue proceder com nada além de pequenos barulhos e apertos, onde suas mãos ossudas alcançaram, buscando, precisando e desejando pelo contato mais íntimo que conseguia imaginar naquele momento.
— Um beijo — o humano pediu, em meio aos suspiros desejosos, inclinando-se para frente em direção ao monarca.
A fada o olhou com lascívia, mas não foi ele quem segurou seu maxilar e tocou seus lábios de coração. O Rei Consorte estava lá, pressionando os lábios coloridos aos seus, fazendo-o fraquejar sob as próprias pernas e ser segurado pela cintura como uma boneca de pano. O tempo parecia lento, tudo estava quente e seus sentidos mais entorpecidos do que com a bebida das fada. Hoseok abriu caminho, lutando contra os lábios macios pressionados aos seus, o Rei Consorte o apertou como se ele pudesse fugir a qualquer momento, ou como se quisesse. O beijo era doce como mel, suave, mas voraz, até que o sal explodia em seu paladar, como uma bala intrometida em meio ao hidromel, e seu corpo fosse empurrado de forma pouco gentil para dentro de algo.
Não havia tempo para gritos ou resmungos, sequer conseguiu erguer os braços em busca de algo para se segurar, quando seu corpo despido encontrou a água com cheiro de baleeira. Havia um silêncio alto debaixo d'água, até que Hoseok emergiu da água com os olhos vermelhos e a boca inchada.
A lentidão da bebida das fadas não estava mais lá.
Sóbrio. Atento.
A parte mais suscetível da sua humanidade agora parecia encolhida sem a bebida, mas ainda muito acordada pelas carícias. Hoseok procurou pelo casal de fadas e os encontrou o observando, curiosos, lascivos. Ali, o humano entendeu que nem tudo foi graças a bebida, o sentimento trêmulo do seu âmago ainda estava lá, serpenteando furiosamente por seus órgãos, incitando-o a continuar de onde pararam, exigindo que fosse tocado, desejado.
— Não é do nosso feitio nos deitarmos com quem não pode distinguir uma noz de uma bolota. — A voz profunda do Rei o despertou mais do que gostaria de admitir, deixando seus sentidos cada vez mais loucos ao lembrar que estava nu dentro da banheira. — Agora, humano, ainda deseja algo?
A pergunta que era simplista quando proferida por lábios humanos, nos lábios fae era algo que poderia amarrar até o mais astuto dos homens, Hoseok sabia disso, mas não queria se importar o suficiente para negar qualquer coisa que seu corpo pedia com tanta aflição.
— Vocês, meus Reis. Desejo vocês. — O humano se inclinou para a frente na banheira, engatinhando desajeitado até a borda. Sua voz rouca o surpreendeu, mas ele logo dissipou o sentimento ensandecido que subiu por sua garganta. — Por favor.
O Rei caminhou em direção à banheira em passos largos. Hoseok, que parecia cada vez mais consciente do que tinha desejado às criaturas, inclinou a cabeça para trás, em um sinal quase cego de submissão e atenção. O rei aproximou os rostos e passou a língua áspera pelos lábios de coração, logo enganchando os braços ao redor do corpo magro de Hoseok, retirando-o da banheira para o quarto com cheiro de ervas e flores.
Na cama, o Rei Consorte os esperava. O humano quase perdeu o fôlego ao ser solto no colchão macio e se deparar com a fada de longas madeixas rosas deitado como uma divindade nos lençois de seda de aranha; com o robe florido aberto, caído nos ombros delicados como uma provocação silenciosa. O Rei longo se juntou a eles, o robe de seda negro se perdendo em meio ao chão polido.
As mãos do Rei subiram para o cabelo de Hoseok, enrolando os dedos na nuca e tomando o humano em um beijo um pouco mais que selvagem. O Jung se inclinou para a frente, encostando o peito na pele de jade do Rei e soltando sons suaves com a força usada em sua boca. As mãos do Rei Consorte alcançaram a cintura delgada e desceram pela bunda firme, agarrando a carne com as unhas afiadas que logo foram substituídas por beijos castos, pelas marcas e uma breve mordida no quadril estreito, que fizeram Hoseok vibrar
Em meio aos toques dos Reis, o humano sentiu o corpo ferver e a mente ruir, perdido em um paraíso distinto.
Horas ou dias depois — ele não faz questão de contar —, estava rolando na cama com o casal de fadas, do crepúsculo até depois do amanhecer, desmaiando de cansaço e acordando com o aroma do vinho de fada e queijo de cabra, dolorido e marcado como uma propriedade desconhecida. Ele não reclamou, apesar de tudo.
O Rei Consorte estava o tempo todo ensinando algo, recitando baladas de fae e beijando seu corpo com uma crueldade faminta. Havia marcas demais em seu nome, mas também existia prazer o suficiente para fazer o humano almejar pelo toque do rosado, enquanto o Rei os observava como uma pintura inédita.
O Rei quase sempre estava em silêncio, as mãos grudadas em seu corpo, os dentes em sua pele e a língua áspera cobrindo as crueldades manchadas feitas pelo Consorte, apenas para abrir outras em seu próprio nome.
Mas apesar disso, Hoseok era aconchegado nos braços crueis quando o cansaço o atingia, tinha seus cabelos trançados e seus machucados cuidados. Era desejado acima de tudo, até poderia pensar em ser amado. Pensar que a terra das fadas era seu lugar.
Isso até a ambição retornar ao seu coração.
Miram foi apresentada alguns dias depois ao humano. Era uma fada robusta, com desenhos de tinta cintilante na pele escura, cabelos brancos como dentes de leão e dentes humanos demais para aquele mundo, que vez ou outra ela o encarava de maneira estranha. Desconfiada.
Encarregada de cuidar do humano dos reis, Miram tinha o alimentado, dado vestes de tecido caro em tons de ouro e passado pasta verde em seus pés, machucados pela dança das fadas. Foi assim durante os dois primeiros dias, no terceiro, Hoseok a convenceu a falar consigo. No quarto dia, Miram trazia notícias sobre os Reis na Corte Baixa.
No quinto e no sexto dia, Miram passou a se referir ao humano como lorde e o seguia pela varanda de pedras cintilantes e congeias rosas.
No sétimo dia, Miram concordou em levar o lorde em um passeio pelo castelo vazio.
Havia muitos quadros, animais empalhados e humanos de sorrisos sonhadores esfregando as pedras cintilantes, enquanto Miram guiava o humano pelos corredores. Hoseok ficou curiosos com os humanos, esticando a cabeça para olhá-los e tentando pequenas saudações que se perdem ao vento, eles sequer olharam para Hoseok ou Miram, apenas continuaram em suas tarefas com sorrisos bêbados e olhos vidrados enfeitando os rostos magros.
— O que aconteceu com eles?
Hoseok questionou ao notar o humano que esfregava o chão do salão principal, com as mãos feridas e rosto prazeroso. O sangue se misturando à água e ao sabão no piso.
Miram o olhou por um relance, como se fosse sujo demais para ter sua atenção
— Apenas pagando um acordo, meu lorde — explicou simplista, virando-se em direção ao humano machucado. — Pare de limpar com essas mãos imundas! Trate disso e volte ao trabalho.
O humano estancou no seu lugar, de joelhos no salão, e se ergueu, dando passos tranquilos até a saída de pedra. Seu rosto sequer se mexia, seu corpo apenas obedeceu a ordem sem hesitar.
Hoseok estremeceu.
Que tipo de encanto era aquele?
Miram guiou o caminho para um jardim de flores exuberante e exóticas. Hoseok não conseguiu ignorar a cena do humano, mas a fada nem pareceu pensar no que acabara de ver, falando sobre como o Rei tinha mandado plantar cada flor daquela em nome do Rei Consorte, enfatizando como eles eram leais um ao outro.
— As Altezas têm um relacionamento especial, eles até mesmo usam as cores do outro em suas vestes — Miram tagarelou, e curioso, Hoseok perguntou o significado das vestes. — União. Fadas não se casam por amor. Usar as cores do seu parceiro é como dizer que se pertencem.
Hoseok absorveu a informação. Os Reis quase nunca apareciam vestidos naqueles últimos dias, mas nas poucas vezes, os trajes eram compostos por tons de verde, rosa e outra cor.
Ciúmes mortal invadiu o coração de Hoseok.
Eles se pertenciam, mas Hoseok não pertencia a eles.
E nunca poderá pertencer.
O véu dos sonhos que cobria sua razão acabou encontrando o fim, e a dama da sorte, aquela que tinha ido encontrar, voltou a orbitar sua mente.
Hoseok não queria mais saber de Miram e o castelo. Ele queria ascender aos Céus.
Com a túnica dourada enrolada nos próprios pulsos, Hoseok correu na direção em que ele acreditava estar sua sorte. Miram gritou pelo lorde, mas ele estava longe o suficiente para que a voz dela não passasse de um eco frio. Ninguém ousou parar o humano. Ele desceu a colina, passou pela multidão de fadas e encontrou a Corte Baixa em fervor.
Hoseok não prestou atenção no pequeno castelo em que era acomodada a corte, tampouco no salão iluminado ou em seus convidados de aparência assustadora, os Reis sentados em um único trono manchado de sangue e enfeitado por trepadeiras eram seu único foco. Assim, como Hoseok era o deles. O Rei Consorte foi o primeiro a notar sua presença, sentado no colo do Rei, que naquela altura, também já tinha o notado.
A Dama da Sorte sorriu em meio aos Reis, e nesse momento, a ambição retornou ao fraco coração humano.
— Saiam. — A voz rouca do Rei serpenteou pelos convidados, fazendo-os parar em alerta. — Agora.
O salão foi rapidamente deixado pelas fadas, trazendo um silêncio ensurdecedor ao humano. Nos últimos dias, sua rotina tinha sido regada a bebidas, músicas e danças na companhia dos Reis, sempre sendo levado de um lado ao outro nas Cortes, e isso foi o suficiente para transformar o silêncio em algo fora do normal para si.
— Meus Reis — Hoseok os cumprimentou de forma doce, aproximando-se ligeiramente do grande trono, mas sem de fato subir os degraus até eles.
— Nosso terno Coré — o Rei Consorte deslizou o apelido sobre os lábios, fazendo o humano olhar para baixo ao ter a mente invadida por memórias indecentes. — O castelo é entediante o suficiente sem nossa presença para que corra corte abaixo?
Zombaria manchou o tom do Rei Consorte, como se ele soubesse que o humano iria procurá-los uma hora ou outra. Hoseok ignorou o tom da fada, também ignorando as pernas reluzentes que entraram em seu campo de visão e o calor corporal do tentador Rei Consorte ao seu redor, recordando-o de momentos recentes.
— Meu Rei... — Jung o chamou de forma suave, quando a mão quente da fada invadiu o tecido dourado das vestes alheias, fazendo um caminho conhecido pelo tronco magro.
A respiração escapou dos pulmões do humano. Como sempre, parecia que um toque dos Reis era o suficiente para deixá-lo bagunçado na própria pele. Era irritante. Prazeroso.
— Meu Rei. — Em um lapso de sanidade, Hoseok agarrou o pulso da fada e a retirou da sua pele, mas tudo ainda parecia queimar por mais. — E-eu... preciso que deem uma graça em meu nome.
O Rei Consorte se afastou de forma brusca. Hoseok pôde jurar ter escutado um rosnado deixar os lábios volumosos.
— Uma graça, humano? — o Rei falou, como se testasse a frase em seus lábios, ainda em contragosto. — O que deseja? Ouro das fadas? A sorte das ninfas? A sabedoria dos centauros ou a sede de vitória dos orcs? Você pode ter tudo isso sem que precise de uma graça, apenas fique na terra das fadas.
A proposta inusitada faz o tolo coração de Hoseok acelerar como um corcel selvagem. Ficar na terra das fadas? Com eles? Ele quase não conseguia acreditar nas palavras do Rei, buscando os olhos dourados e os esverdeados para ter a certeza de que não era um delírio causado pelo pó de fada.
— Ficar?
— Sim, ficar. Você terá ouro de fada, penas de prata e tudo o que quiser, assim como o respeito e a lealdade das cortes. Fique — o Rei recita a proposta, como uma música encantada em busca de alguém para enganar.
Faíscas douradas nasceram no peito humano. Ele poderia ser respeitado e adorado naquelas terras, também não precisaria exigir o mínimo para o próprio clã ou lutar pelo direito de ser reconhecido, de usar as cores dos Jung.
As cores...
Hoseok desceu o olhar para as vestes de tecido caro dos Reis, notando a mistura harmoniosa de rosa, verde e amarelo nas peças — que eram o sinal dos seus sentimentos. O Rei vestia tons escuros de verde naquela ocasião, mas tinha o cabelo trançado com pequenas flores cor-de-rosa e tons dourados espalhados por suas vestes; o Rei Consorte, com a beleza deslumbrante, vestia os tons das cerejeiras, evidenciando os verdes em seus olhos, as joias e pinturas corporais estavam espalhadas pelos braços, no colo exposto, a pintura dourada do Sol o fazia parecer um deus pecaminoso.
Um deus que pertencia a um Rei.
E ele era apenas um humano que pertencia a nada.
Hoseok não podia ficar.
— E se eu quiser voltar após um tempo? — o jovem mestre murmurou, como se falasse consigo mesmo.
— Não volta — O Rei Consorte respondeu de maneira ríspida, algo novo para o humano. — Uma vez no mundo das fadas, o tempo passa devagar. Todos terão morrido, seu corpo não será mais humano como antes, você estará morto no mundo dos homens.
Morto.
Estará morto.
Morto para seu clã, para seu pai e sua adorada irmã.
Esquecido.
— Não... eu não quero, não quero ser fada, não quero estar morto, eu quero uma benção, um acordo.
Os olhos dos Reis brilharam em algo sádico com o pedido de acordo.
Um acordo era diferente de uma benção, era um contrato de carne e sangue, algo que nem a morte poderia desfazer.
O Rei encostou no trono manchado, o rosto, que antes ao menos parecia abertamente rígido, agora era uma máscara de músculos tensos e olhos tenebrosos.
— Diga o que quer, humano tolo.
Aterrorizante. Era como a voz do Rei tinha soado, como a promessa de algo terrível no fim.
— Sorte e prestígio, o nome do meu clã erguido da lama e o meu próprio brilhando em meio à sujeira.
O Rei repuxou os lábios de forma irônica, concordando com a cabeça.
— Um acordo banhado em sorte e ouro, em troca de sete dias da sua vida no solstício de Primavera, em meio ao Carnival, até que seu coração pare e seu corpo passe a pertencer a terra, as fadas.
Hoseok recuou alguns passos do trono, absorvendo as condições do acordo. Sempre voltar até sua morte e depois dela, pertencer as colinas fae, pertencer aos Reis...
O Rei Consorte apoiou o rosto entre as mãos delicadas, enfeitadas por garras afiadas, tingidas de um vermelho diluído.
— No Carnival, serás nosso, e quando sair daqui, ainda pensará apenas em nós — o Consorte ditou de forma firme, seu rosto banhado não mais em uma sedução perigosa ou gentileza ambígua, apenas em irritação e ciúmes sombrio. — E quando retornar, nada mais restará, seremos só nós.
Mesmo diante das palavras dos Reis, o humano não entendia o que sua presença em seus lençois tinha implicado, nem ao menos entendia porque aquele acordo parecia um castigo.
Ele só entenderia anos mais tarde, naquele mesmo salão.
— Eu aceito.
O acordo foi selado com terra e sangue, em uma união que nunca seria dissolvida. A lembrança da ambição humana cresceu em forma de duas pequenas estrelas de cinco pontas em um dourado-celeste no alto das maçãs do rosto, marcando-o para sempre perante o mundo das fadas.
Os Reis o negaram qualquer gentileza após o acordo, e o broche de ouro em formato de sol dos Jung foi deixado em suas mãos, como o primeiro pagamento da dádiva concedida.
Ao cair da sétima noite, Hoseok retornou à superfície junto aos outros, e nas semanas seguintes, em meio aos burburinhos sobre a própria sorte, o clã das águias foi reerguido pelas mãos daquele que um dia foi destituído.
O bem-te-vi se tornou a águia mais feroz do clã e seu nome se ascendeu aos céus, causando inveja e conquistando poder em meio aos humanos pelos meses seguintes.
Até o retorno do carnival.
Onde o lorde era reduzido a nada mais que suas próprias vontades, arrastando-se até a floresta e desaparecendo por sete dias, aparecendo apenas ao cair da noite com pó dourado em seus cabelos e vinho bordô em suas vestes.
Boatos sobre um amante enfeitiçado se espalharam pela cidade e para desmenti-los, um noivado foi selado. Bae Eunsoo era uma mulher gentil e de um clã de renome, que parecia mais que satisfeita com o noivado com o membro do clã das águias.
Só para ser encontrada morta horas mais tarde.
Pobre Lorde, perder a noiva de forma tão precoce! Será que foi veneno? Pode ter sido beladona.
Os cochichos sobre Bae Eunsoo surgiram após sua morte, mas desapareceram na mesma velocidade. Hoseok nunca se casou, e com o tempo, todos aceitaram as excentricidades e os desaparecimentos que envolviam o homem.
Por sete anos, Lorde Jung Hoseok foi a pessoa mais importante e poderosa de toda região, até seu coração parar no último dia de inverno.
Flores de cerejeiras desabrocharam em meio ao funeral inóspito do Lorde e pequenos animais apareceram ao redor, curiosos. Os telespectadores da cidade ficaram surpresos.
Ele era realmente filho de fada! Vindo do pó e do ouro apenas para nos agraciar com sua graça, abençoado tenha sido esse filho de fada!
Bendizeres foram espalhados no nome do Lorde após sua morte, e naquele Carnival, em meio à bebidas coloridas, ogros assustadores e ninfas metidas, Hoseok foi visto em meios aos Reis.
Trajando roupas cor de ouro, flores rosas trançadas no cabelo e esmeraldas fumegantes ao redor dos pulsos, o Lorde era apenas um vislumbre inacessível em meio aos braços possessivos dos Reis que o cercavam.
Os Reis que o castigaram quando ele partiu.
Os mesmos Reis que confessaram seus nomes em meio à noite, após terem que deixá-lo partir uma segunda vez.
Os Reis que o esperaram.
Os Reis que o pertenciam.
Porque o que Hoseok não sabia, era que os Reis já eram seus mesmo antes de qualquer coisa.
Eles fizeram-no o Sol das suas eternas primaveras.
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