Geladeira Vazia e a Falta Que Você Me Faz.

Do livro: Pedro (retratos de uma vida quase comum). De Lolaharik

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Era a terceira vez que abria a geladeira somente naquela última hora. Não conseguia lembrar o que exatamente estava procurando por ali. Talvez a sua mente, que com certeza não estava no lugar onde deveria. Observou frustrado o parco conteúdo presente no eletrodoméstico que também já não estava lá essas coisas. A lâmpada não funcionava direito, mas ele não tinha ânimo para troca-la. Ou seria porque até aquele objeto lhe trazia lembranças agridoces de uma certa presença que parecia se recusar a ir embora?

Negava-se a pensar nisso, e quanto mais se negava, mais pensava.

Fechou de uma vez a porta da geladeira, só pra constatar sem surpresa que teria que usar mais um pouco de força. A borracha estava muito gasta, ele sabia de antemão, mas não seria trocada por ele tão cedo. Ela ainda era capaz de manter os alimentos refrigerados e sua vida mais ou menos estruturada. Era estranho como em certos momentos nos agarramos até às coisas mais corriqueiras como forma de simplesmente continuar vivendo. A verdade é que ele precisava sentir que as coisas continuavam iguais, embora soubesse que não estavam. Jamais estariam novamente. E a maldita geladeira não seria capaz de manter a farsa por muito mais tempo.

Era por isso que estava indo embora. As malas já estavam prontas há dias em seu quarto. Partiria para longe, longe das lembranças e do vazio que o acometia a cada vez em que acordava naquela casa que já abrigara tantas esperanças e sonhos vãos. Ele iria e a geladeira ficaria, vazia, abandonada, trocada por outra em outro lugar, não muito diferente de como ele estava agora. Nem mesmo se dera ao trabalho de ir ao mercado nos últimos dias, preferindo viver à base de comidas estranhas de lugares duvidosos onde quer que fosse mais barato e à mão.

Virou-se para ir até a sala, mas novamente sentiu seu corpo dirigir-se à geladeira. E ele sabia, embora fingisse não perceber, que não se tratava do que havia ou não dentro dela. O que o fizera voltar ali tantas e tantas vezes nos últimos dias era aquela maldita lista. O objeto perdido que encontrara por acaso no último domingo em cima do eletrodoméstico quando fora fazer uma limpeza emergencial, daquelas que só são feitas quando se espera a visita de alguém a quem se queira impressionar.

No final das contas a faxina fora cancelada, o encontro fora cancelada e a dor reativada, tudo por causa daquele pedaço de papel.

Era apenas uma simples e banal lista de supermercado escrita pelo menos dois meses atrás e que fora largada ali de maneira automática. Mas agora parecia carregar todos os significados do mundo.

Desistiu de lutar contra e pegou o papel nas mãos. Deixou o olhar vagar para os poucos itens listados ali, em uma sequência que já sabia de cor:

-1 lata de nescau

-1 lata de leite condensado

-Margarina

-Chocolate granulado

Logo ao final, a facada sutil:

"Se você trazer tudo direitinho, a gente come o brigadeiro na cama, daquele jeito que você adora.

Te amo."

Poderia ter sido ontem, mas não era. E nunca mais seria. Não haveria mais brigadeiro na cama para os dois, e nem no sofá, e nem vendo filme de terror, e nem na varanda enquanto se lambuzavam rindo só pra depois se devorarem mais uma vez em cada canto daquele pequeno apartamento que em breve pertenceria a alguma outra alma perdida e talvez mais sortuda.

"Maldito Pedro!"

O garoto que tinha tudo para ser o cara da sua vida, mas que no final das contas se tornara apenas mais um na lista dos canalhas que quebraram o seu coração. E mesmo assim tudo o que ele mais queria era ir ao mercado, comprar os ingredientes, preparar um brigadeiro e levar até ele. Mas qualquer chance que a história de ambos tivesse morrera naquele dia quando ele voltara da loja de conveniências e não encontrara ninguém. O recado fora dado. E ele sabia que o consolo que Pedro precisava não viria de seus braços. Era uma escolha que teria que respeitar, assim como o outro respeitara seu afastamento depois daquele fatídico aniversário.

Enquanto amassava aquela lista inútil Maurício se permitiu pela última vez extravasar toda a dor, a raiva, a mágoa e até a estranha culpa que sentia. Deixou vir toda a confusão que havia em sua cabeça ao pensar em Pedro. Chorou a saudade, o vazio e a falta. Rememorou o sabor agridoce das lembranças e ao final de tudo se permitiu abraçar a certeza de que conseguiria seguir em frente, mesmo que jamais esquecesse o que viveram naqueles breves e intensos meses juntos.

Fora marcante e forte demais, mas constatou com surpresa de que não fora fatal.

Jogou a lista na lata de lixo e abriu mais uma vez a geladeira. Pegou a caixa de leite e constatou que estava vazia. Era hora de uma rápida ida ao supermercado. Estava com vontade de biju com leite, algo que fazia anos que não comia. E já que ia pra lá, poderia aproveitar pra comprar também uns miojos, talvez um iogurte, sorvete de chocolate, salgadinhos, algumas frutas e quem sabe um pouco de verdura também pra equilibrar. Uma cervejinha também não iria nada mal. Ainda faltavam uns dias para a viagem e até lá ele precisava viver.

***

E nós pensando que iam ser coisas engraçadinhas. Snif. Snif.

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