𝟮𝟲 : SAINTS AND SINNERS

☆ ☆ ☆

CAPÍTULO VINTE E SEIS :
SANTOS E PECADORES
black out days, I don't
recognize you anymore ❞


"Muito cedo na minha vida
já era tarde demais "
── Marguerite Duras






OUTONO⠀─ ⠀ SETEMBRO 27, 2003
01:00 ; New Haven, Connecticut
⠀⠀⠀⠀⠀

TUDO COMEÇA COM FOGO. Sangue. Gritos de horror. O cheiro inebriante estava no ar, fluindo ao redor tão azedo ao ponto de fazer seu estômago revirar, mesmo enquanto estava inconsciente. Ao acordar, Riley vislumbra, através de uma visão distorcida e nebulosa, o caos que está por toda a parte. Seus olhos se arregalaram, ela está ofegante, sua respiração fica descompensada no momento em que ela se desespera.

O carro saiu da estrada e bateu em uma casa ainda em construção, fumaça sai do capor, fogo crepita ao redor, sangue escorre do ferimento em sua testa e os cidadãos de New Haven ainda soam desesperados, gritando, implorando, fugindo dos terrores noturnos que açoitam a cidade.

Riley olha para o lado e sua respiração engata no momento em que vê o estado em que seu pai está. John apresenta vários pequenos cortes em seu rosto, causados pela batida e pelos estilhaços de vidro da janela. Mais sangue, vermelho escuro e viscoso, escorre de seu ferimento causado por Piper tempos atrás. A viga do caminhão que eles desviaram, uma que havia soltado da parte de trás, atravessou o vídeo e perfurou o ombro dele.

Era uma cena horrível de se ver, a deixava agoniada, perdida em meio aos pensamentos em pânico que estavam em sua mente agora. Desespero. Riley sentia o desespero. Sentia seu corpo tremer, sentia-se assustada. Ela luta para tirar seu próprio cinto, mãos errantes e trêmulas ficando agitadas conforme ela se frustrava em seu objetivo ínfimo, sentindo lágrimas inoportunas rolando por suas bochechas.

── Pai... ── Riley arfa em meio a fala, após conseguir retirar o cinto de segurança e voltar-se para o homem ao seu lado. ── P-Pai, acorda... Por favor. ── Adams soluça. Ela tenta levar aos mãos até os ombros de John, mas se retrai quando mau o toca. O medo de machuca-lo, de piorar a situação, paira ao redor. Riley não sabe o que fazer.

Quando John começou a acordar, ela prendeu a respiração em surpresa, observando a forma como ele se mexia e tossia curvado sobre si mesmo. Sangue escorreu sobre os lábios do homem e respingou em suas roupas.

── Riley ── John expira o nome dela, seu olhar turvo a encontrando. O rosto dele estava pálido, lábios ressecados e os olhos distantes. Riley percebia que John estava fazendo um grande esforço. ── Riley... Você... Está bem?

── Eu 'to. ── Ela assente em meio as lágrimas. ── Eu 'to, pai.

── Bom... ── John se esforça para respirar. ── A sua irmã... Como ela está?

Em meio ao pânico, Riley havia se esquecido de checar Sally nos bancos de trás. Ao olhar para o fundo do carro, ela o encontra vazio e a porta do lado esquerdo está aberta. Os olhos da Adams se arregalam, o pânico e a preocupação de antes retornam.

── Ela não tá aqui. A Sally não está aqui. ── Riley encara o pai, alarmada.

── Você precisa encontrar ela. ── John tosse as palavras. ── Sai daqui, encontra a sua irmã e vai para a saída da cidade. ── Riley nega com a cabeça.

── Eu não vou deixar você. Você precisa de cuidados médicos, precisa de ajuda, eu não posso- não posso te abandonar.

Ele puxa sobre o pescoço a corrente dourada que mantém debaixo da camisa. Um colar com um pingente que quase tem um formato de esfera.

── Riley. ── John a cala segurando a mão dela, envolvendo o colar entre os dedos e tentando apertar, manchando mais ainda o sangue que há entre em eles. Ele não tem forças para dar um aperto forte, mas é suficiente para conter um pouco do tremor que ela sente. ── Esse é o fim da linha pro seu velho, querida. ── John repousa a cabeça no encosto do banco, adornando um pequeno sorriso em seus lábios.

── Não... Por favor. ── Riley chora ao negar. ── Não posso fazer isso sem você.

── Você pode. Eu sei que sim. Só precisa... ser forte por nós dois agora. ── Disse John. ── Ninguém vai cuidar da Sally melhor do que você e ela precisa da irmã mais velha mais do que tudo. ── Ele tosse sangue mais uma vez. ── Promete q-que... vai cuidar dela. Por mim e pela... sua mãe.

── Pai...

── Me promete, filha. ── John aperta a mão de Riley.

Riley inspira, comprimindo os lábios em uma linha fina para tentar conter as lágrimas. Se passa um momento breve, onde tudo que eles podem escutar é o chiar das sirenes, das árvores e o crepitar do fogo.

── Eu prometo. ── Ela responde, assentindo o melhor que pode e John a encara com um olhar que não emana tristeza. Riley poderia arriscar que os olhos dele brilhavam com certa felicidade, talvez orgulho pela filha que tinha.

── Me desculpe por... não ser o pai que vocês mereciam. ── Ele murmura.

As palavras ficaram engasgadas na garganta de Riley, as desculpas que ela nunca conseguiu dar a ele, conforme John apertou a mão dela uma última vez e seus olhos se fecharam. Adams soluçou enquanto a mão dele deslizava da dela e caía ao lado do corpo do homem, imóvel e sem vida. Riley levou as duas mãos aos lábios enquanto se direcionava para o volante e chorava sem parar. Seus gritos de dor e angustia a faziam sufocar em meio ao choro, sua garganta ficando dolorida durante o processo e sua visão turva.

Riley passou poucos minutos naquele estado, apertando o colar entre os dedos, se despedaçando por inteiro e sem conseguir encarar o próprio pai ao lado. Quando Riley sai do carro, ela tropeça sobre os próprio pés e cai na grama com os joelhos e as mãos no chão. O colar dourado desliza de seus dedos e ela o encara, enquanto ainda soluça baixinho. Ao pegá-lo, sentada sobre as pernas e ainda de joelhos, Riley abre o pingente e encontra duas fotos. Em uma delas, toda a sua família está reunida. Sua mãe, seu pai, ela com 13 anos e Sally ainda um bebê no colo de Laurie. Uma das poucas fotos em família que eles tiraram no final do ano.

A segunda foto era apenas as irmãs. Uma foto tirada no mesmo dia, na frente da mesma cortina vermelha. Riley tinha um sorriso suave no rosto, a cabeça inclinada sobre a de uma Sally ainda pequena e com olhos tão grandes. Ela estava dando um quase sorriso com suas bochechas enormes e rosadas, vestindo um vestido rosa que combinava com a blusa de Riley, mas que não ficava a mostra na imagem que apenas focava no rosto das duas.

Apertando o colar entre as mãos, Riley fechou os olhos e se lembrou da promessa que fez ao seu pai. Ela precisava encontrar sua irmã, precisava protegê-la. Elas só tinham uma a outra agora e, por mais que sentisse muito medo, ── medo de ter perdido a única família que lhe restava, medo de não ser forte o suficiente ── Riley não poderia se deixar cegar. Ela tinha que continuar.

Ela se levanta e dá alguns passos a frente, olhando a floresta ao seu redor e notando os passos pequenos na lama, sentindo o calor do fogo próximo se esvair quando passa a se afastar dele e seguindo as marcas deixadas por Sally. Mais um avião militar passa rapidamente pelo céu, quase tão próximo das árvores, e logo em seguida mais um bombardeio acontece. Adams estremece com o som, seu corpo treme e ela abraça a si mesma enquanto continua. Balança a cabeça afastando os temores que ricocheteiam em sua mente.

Riley perde as pegadas de Sally perto da estrada e seu coração se aperta mais uma vez ao perceber que a cidade está ainda pior do que ela imagina. Há vários carros parados na pista, vazios e largados a esmo. Ao olhar a distância, nota-se as casas pegando fogo, os gritos desesperados que ainda ocorrem e o som que havia se tornado familiar daqueles que haviam se transformado.

Atrás dela, Adams escuta um movimento e se assusta. Dá poucos passos para trás, quando para e nota a luz de uma lanterna que logo se direciona para ela. Um homem vestindo um uniforme do exército surge, suas mãos segurando uma arma com uma lanterna acoplada.

── Você! ── Ele exclama. A voz do homem soa nervosa, porém firme. ── Parada ai!

── Espera! E-eu preciso de ajuda... ── Riley gagueja, erguendo as mãos em rendição. ── Minha irmã... Ela sumiu. Preciso encontra-la, ela está sozinha e eu-

── Você foi mordida?! ── O soldado a ignora, ainda apontando a arma para ela.

── O que? Não! ── Riley olha para si mesma e nota o sangue que manche suas roupas. ── Não fui mordida. Eu não vou me transformar em uma daquelas coisa. Por favor, eu só quero encontrar a minha irmã.

O soldado aperta a arma, balancando-se sobre os próprios pés, pupilas dilatadas. Ele parecia aflito, desesperado. O suor se acumulava em seu rosto, suas mãos estavam inquieta. Riley poderia notar que ele estava em conflito.

── Meu tio disse que tem ônibus levando as pessoas para fora da cidade. ── Riley fala após engolir o seco. ── Tenho que levar a minha irmã até lá, a gente tem que sair daqui. Você pode ajudar a gente.

── Eu não posso. ── Ele respondeu. ── Não posso deixar você sair daqui. Fica de joelhos.

── O que?

── Fica de joelhos! ── Ele ordena mais uma vez, a voz mais alta e fazendo Riley tremer.

Ela se abaixa devagar, pondo-se de joelhos.

── Mãos atrás da cabeça.

Seguindo o que ele a manda fazer, Adams ergue o olhar devagar. Encarando-o com olhos grandes, sua respiração um tanto curta.

── Por que está fazendo isso? ── Ela o questiona. ── Eu já disse que não fui mordida. Por favor, me deixa ir.

── Eu não posso fazer isso! ── Respondeu o homem, soando mais desesperado do que raivoso. ── Eles me mandaram abater o máximo de pessoas possiveis. Não temos espaço pra todo mundo nos ônibus e não podemos correr riscos. Eu sinto muito.

── Então, eu vou pra outro lugar, encontro outra saída. ── Adams implora com a voz chorosa, o desespero se apossando de todo o seu corpo. ── Por favor, não faz isso. Por favor, não me mata. Por favor. ── Ela repete aquelas palavras como um mantra, as mãos do soldado tremendo.

── Cala a boca! ── Ele esbraveja e Riley se cala. ── Não posso correr nenhum risco. Não posso. ── Diz o soldado. A garganta da jovem se aperta. ── Fecha os olhos.

O militar profere aquelas palavras lentamente e em um tom mais calmo. Riley está a mercê dele naquele momento e tudo o que pode fazer é seguir o que o homem diz. Ela fecha os olhos fortemente e espera. Escuta poucos passos dele sobre a grama, amassando os cascalhos sobre a bota de combate. O vento frio da noite sopra sobre ela, grudando sua blusa nas partes molhadas de sangue em seu corpo. Riley respira fundo, resignada a aceitar que aquele é o seu fim e aguarda o som dos disparos.

Ela escuta três tiros, porém não sente nada.

Não há aquela queimação de um tiro a queima roupa, ou o cheiro inebriante de pólvora no ar. Há apenas um breve engasgo de alguém a sua frente, sons de tropeços. Riley abre os olhos no momento em que o soldado cai no chão com os olhos arregalados. Uma poça se forma ao redo dele, sangue escuro vazando de seus ferimentos ── dois na cabeça e um no peito. Todos foram feitos por trás, por alguém que Riley só identifica quando se aproxima dela segurando uma AK-47 na mãos.

── Richard? ── Ela murmura aquela indagação surpresa abaixando as mãos lentamente. O homem mais velho, com poucos cabelos grisalhos no meio de seus fios castanhos e sem barba em seu rosto, veste uma camiseta regata branca suja de sangue e sujeira e uma calça jeans.

── Riley. Graças a Deus. ── Ele exclama, parecendo aliviado ao abaixar a arma. Richard tinha uma voz grave e rouca, suor se acumulava em seu rosto aparentando que ele havia corrido bastante em meio ao inferno que New Haven havia se tornado. ── Eu estava procurando por você, garota.

── Procurando por mim? ── Indagou a jovem, ficando de pé com a ajuda de Richard.

Richard Linz conhecia Riley desde criança. Ele serviu no exército com o pai dela, até ser mandado embora anos atrás. Richard voltou para a cidade de New Haven e começou a trabalhar como mecânico depois disso, chegando até a entrar para a igreja local e se tornando pastor. Ele e a esposa, Barbara, moravam alguns quarteirões depois da casa dos Adams.

Quando o pai de Riley se tornou ausente, os Linz sempre tentavam estar por perto para ajudar. Richard dizia sempre dar puxões de orelha em John pelo telefone quando conseguia falar com ele, tentava fazer o velho amigo deixar de ser um covarde. Ele conversava bastante com Riley naquela época. Quando tudo estava demais, ela batia na porta deles para conselhos. Bebia refrigerante sentada nas escadas da casa do casal, comia os muffins que Barbara fazia com tanto capricho e escutava as velhas histórias que Richard tinha para contar.

Parte do motivo pelo qual Riley continuou por tanto tempo naquela casa, além de sua mãe doente, é claro, também foi por conta deles. Ela nunca abandonaria Laurie, mas também era apenas uma criança e, as vezes, não sabia o que fazer. Alguém para seguir, alguém para ouvir, era apenas o que ela precisava. Naquele exato momento, por exemplo, Adams encontrou alivio em finalmente ver um rosto amigo.

── Sim. Nós encontramos a Sally. Quer dizer, na verdade ela encontrou a gente. ── Richard riu fracamente. Os olhos dela se arregalaram.

── Sally está com vocês?

── Ela está. Barbara está com ela agora, próximo as docas. Temos um barco para sair desse lugar. Os militares estão atirando em todo mundo que se aproxima das saídas. Infectado ou não. ── Richard solta um suspiro decepcionado.

── Minha irmã... Ela está bem?

── Sim, ela está bem. ── Richard aperta o antebraço dela que ainda segura, após ajuda-la a por se de pé. Riley suspira aliviada. ── Estava preocupada com você e com seu pai. Disse que vocês sofreram um acidente enquanto tentavam chegar as saídas. Onde está o John agora?

Riley abriu os lábios para responder, porém as lembranças do acontecimento de minutos atrás a desestabilizaram. Ela olhou para o lado, para onde o fogo ainda queimava intensamente no ponto da floresta de onde havia saído. O peso da morte de John sobre seus ombros, fazendo com que seus olhos se enchessem de lágrimas.

Richard não precisou de muito mais para entender o que aconteceu. A puxou para perto pela nuca, fazendo com Riley enterra-se o rosto no peito dele e começasse a chorar.

── Está tudo bem, garota. Está tudo bem. Não foi sua culpa. ── Ele tentou tranquiliza-la, esfregando as costas dela de cima para baixo, enquanto Riley se agarrava a camisa dele e chorava. ── Seu pai está em um lugar melhor agora.

Riley não responde, apenas deixa as lágrimas correrem por um tempo, até conseguir ter forças para se afastar. Linz se separa da jovem e olha nos olhos.

── Precisamos ir agora. Os outros já esperaram demais. ── Richard diz. ── Consegue me acompanhar? Não podemos parar por nada. Os infectados estão concentrados no centro da cidade, mas é questão de tempo até estarem por aqui também, por isso temos que ser rápidos.

── Tudo bem. E-eu... Eu acho que consigo. ── Riley assentiu.

── Ótimo. ── Richard posicionou a arma em seus braços. ── Vamos, então.

Riley seguiu Richard até as docas. Ela fez o possível para permanecer perto dele, tentando acompanhar os passos do homem que eram apressados e mais rápidos que os dela. Linz olhava para trás sempre que podia, conferindo se Riley ainda estava atrás dele ou se havia alguém os seguindo.

Para alívio dos dois, o percurso foi seguro e eles não demoraram a chegar até o barco. No momento em que estavam saindo da mata para pisar na areia da praia que banhava a costa, Sally avistou os dois primeiro e arregalou os olhos. Ela se desvencilhou de Bárbara, que a segurava perto antes, para poder ficar de pé.

── Riley! ── Sally exclamou o nome da irmã e saiu do barco, enquanto a mais velha corria até ela e a abraçava.

── Você está bem? ── Riley se afastou um pouco para analisar a irmã, segurando-a pelos ombros. ── Eu fiquei tão preocupada quando acordei e você não estava lá. O que passou pela sua cabeça, Sally?!

── Eu fui buscar ajuda. Você e o papai não estavam respondendo, eu estava com medo. Achei que vocês... Eu pensei... ── Sally hiperventilou. Riley a puxou para um abraço novamente.

── Tudo bem, tudo bem. Você fez certo. ── Riley murmurou para ela, acalmando-a. Ela percebeu que não adiantaria nada ficar brava com Sally por ter saído, ainda mais quando a situação não era agradável para eles. ── Estamos bem agora.

── Cadê o papai, Riley? ── Sally a questionou, assim que se afastaram novamente.

── Ele... Ele não resistiu. ── Ela respondeu, suavemente. O rosto da mais nova se contorceu, o choro retornou. Riley não conseguiu dizer mais nada, apenas a abraçou mais uma vez.

Todos dentro do barco lançaram olhares pesarosos para as meninas. Além de Barbara Linz, havia também Robbie Vaughan, quem as irmãs Adams carinhosamente chamava de tio Robbie, e Esther Finley, uma mulher que Riley conhecia por ser uma frequentadora assídua da igreja de Richard.

O segundo barco, ao lado do deles, havia mais 6 pessoas que Riley conhecia vagamente. Alguns que também frequentavam a igreja, outros que viviam pela cidade. Ninguém que ela realmente se importava de lembrar o nome.

── Estamos com tudo pronto para partir. ── Robbie Vaughan disse, direcionado para Richard.

── Certo. Vamos meninas. ── Linz as chamou, conduzindo-as para dentro da embarcação. ── Entrem no barco. Hora de ir embora.

Riley guiou Sally, que estava abraçada com sua cintura, para dentro do barco. Richard ficou atrás, controlando o motor do barco, enquanto Robbie ficou na frente e deu um rápido aperto de consolação no ombro das duas, que se sentaram logo atrás dele. Barbara e Esther ficaram no último assento, nervosas e orando de maneira silenciosa.

Quando o barco começou a se mover na água, o segundo barco fez o mesmo e eles seguiram para longe de uma New Haven em chamas. Riley confortava uma Sally que ainda chorava baixinho, alisando o braço dela enquanto a menina estava inclinada na direção dela, a cabeça deitada próximo ao peito da irmã. A mais velha apoiou o queixo na cabeça da mais nova, olhando para trás ao fazê-lo, observando enquanto a cidade que conheceu tão bem ficava cada vez mais distante.

Ela também observou Barbara acariciando sua barriga de grávida, ainda um pouco nervosa. O vestido vinho que ela usava estava um pouco sujo, alguns respingos de sangue na barra e a jaqueta de Richard em volta de seus ombros. Barbara fitava o chão do barco sem desviar o olhar, piscando os olhos algumas vezes, perdida em pensamentos.

Riley olhou para Richard em seguida e o homem também olhou para ela. Os dois se encaram por poucos segundos, Linz acenando uma única vez com a cabeça e Adams acenando de volta em um cumprimento breve entre eles. Uma forma de dizer sem palavras que estavam bem, que, pelo menos por um tempo, o perigo havia passado. Riley abaixou a cabeça, deitando-a sobre a de Sally e fechou seus olhos fortemente, apertando sua irmã mais perto dela.

Pelo menos por aquela noite, Riley disse a si mesma durante todo o percurso até algum lugar seguro, o pior havia passado. Ela não sabia como a vida seria dali em diante, mas tinha certeza que faria o possível para cumprir a promessa que fez ao pai naquela madrugada. Cuidaria de sua irmã e a protegeria.


OUTONO⠀─ ⠀ NOVEMBRO 28, 2003
⠀ ⠀17:45; Hartford, Connecticut
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Dias se tornaram semanas, semanas se tornaram 2 meses e logo o tempo havia passado. O pequeno grupo vagou pelo estado de Connecticut em busca de abrigo por um longo período. Eles viviam como nômades, parando apenas para passar a noite, sem realmente um plano para seguir. Evitavam as rotas onde os militares estavam e se escondiam em estabelecimentos abandonados e sem infectados. Richard agia como um líder para o grupo, fazendo o possível para tranquilizar a todos e os guiando em meio ao caos que aquela terra havia se tornado.

No fim do segundo mês, eles estavam em uma casa grande em Hartford, sendo apenas 6 pessoas vivendo naquele lugar, revezando-se na hora de buscar por alimentos e proteger a casa dos infectados que vagavam até áreas próximas ── um trabalho que normalmente ficava sobre as costas de Richard e Robbie. Não havia rádios por perto, qualquer meio de receber informações, tudo o que tinham era o silêncio.

Parecia que haviam sido abandonados, que o último resquício de civilização que existia havia se esvaido. O mundo estava dominado pelos infectados que sempre pareciam estar a espreita. O governo também parecia ter caído, ou deixado de se importar. Pelo menos era o que todos dentro daquela casa pensavam.

Riley passava muito tempo tentando ajudar os outros, sempre tentando ser útil de alguma forma e tirar sua própria mente dos pensamentos ruins, das lembranças dolorosas que ainda a assombravam. A maior parte do tempo ela era forte por Sally, fazia o que podia para estar perto da irmã e também ajuda-la a esquecer tudo de ruim que havia visto, porém não era algo fácil.

Em alguns momentos, Riley buscava ficar sozinha. Ela dividia um quarto com Sally, Esther e uma mulher loira chamada Carol, praticamente não tinha privacidade. O único lugar que poderia encontrar para pensar era próximo ao lago, onde ela se escondia pela manhã, depois do café. Hoje, porém, foi após o entardecer. Sentou-se no cáis e observou a água em silêncio.

Uma vez ou outra ela pescava com Robbie ali, quando eles tinham tempo. Os dois sentavam lado a lado e as vezes não conversavam sobre nada. As vezes, Robbie compartilhava algumas lembranças que tinha sobre John.

── Ei! O que está fazendo ai? ── O questionamento partiu de um lugar atrás dela, a voz de Richard fazendo com que Riley observa-se por cima do outro.

── Apenas observando o lago. ── Ela respondeu com os pés quase tocando na água, enquanto estava sentada no cáis.

── Falei para não se afastar muito. ── Disse o homem ao se aproximar dela. Ele estava com dois rifles, um em cada ombro. ── Não é seguro fora da casa.

── Eu só precisava de um tempo. Esther estava perturbando todo mundo de novo. ── Retrucou Riley.

── Ela é difícil, mas quer manter todos nós organizados. ── Richard respondeu. ── Vai aprender a se acostumar com isso.

── Eu preciso?

── Se quiser sobreviver e continuar com a gente, sim. ── Disse ele. Retirando um dos rifles do ombro em seguida, Linz o entregou para Riley. ── Vamos caçar.

── Pensei que você fosse caçar com o Robbie hoje. ── Adam segurou o objeto com uma mão e levantou a outra, recebendo ajuda de Richard.

── Não. Robbie decidiu dar no pé. ── Richard falou, casualmente. Riley franziu o cenho.

── Como assim?

── Ele ficou de vigia ontem a noite, aproveitou para fugir com alguns dos nossos mantimentos. ── Explicou ele. ── Quando acordei de manhã para patrulhar, vi que ele não estava em lugar nenhum e que algumas latas sumiram. Tentei ir atrás dele, mas... Acho que o bastardo já está longe.

── Por que ele faria isso?

── Por que ele não faria? Já tem dias que ele discutia comigo por qualquer coisa, totalmente insatisfeito com a minha liderança. ── Richard deu as costas para Riley, caminhando sobre o cáis em direção a terra. A garota o seguiu. ── Até demorou pra ele decidir sumir.

── Não acredito que ele fez isso. ── Murmurou Riley, pensativa.

── Não se preocupa, a gente vai se virar melhor sem ele. ── Disse Richard, buscando tranquiliza-la. ── Vai ser menos uma boca para alimentar. Menos um problema.

Richard está de costas quando diz aquelas palavras, então Riley não vê o rosto dele. Ela o segue por dentre das árvores, caminhando pelo caminho de cascalho. A área é silenciosa naquele momento da manhã, quase tarde. Robbie e Richard haviam levantado uma velha cerca que havia em torno da região, que deixava a maior parte dos infectados do outro lado.

As caçadas eram necessárias principalmente para conferir se eles estavam realmente longe o suficiente e se não haviam atravessado a cerca. Os mantimentos também eram necessários, mas a quantidade de comida enlatada que tinham parecia ser suficiente para os próximos dias.

Riley também aproveitava aquele tempo para conversar com Richard sobre estratégias. Ele fazia algumas perguntas sobre como ela construiria sua própria comunidade, agora que eles estavam no fim do mundo. Parecia um pouco estranho falar sobre isso, Riley não se via como uma líder de grupo, mas gostava de tirar sua mente de suas preocupações dessa forma.

Contava para Linz tudo o que achava válido, todas as coisas utópicas que poderia pensar. Ele também opinava, compartilhava com a Adams seus pensamentos sobre como liderar um grupo, sobre como mante-los unidos. Richard era bom nisso. Quando ele falava, fazia você ter esperança. Era fácil ser encorajado por ele. Era fácil querer segui-lo.

── Estamos nos afastando demais da casa. ── Ela comentou. ── E a cerca não fica para essa direção. Para onde estamos indo, Richard?

── Eu só quero te mostrar uma coisa, Riley. ── Ele respondeu, segurando seu próprio rifle com a duas mãos.

── Pensei que fossemos caçar.

── Nós vamos, mas primeiro temos uma coisa mais importante para fazer. ── Disse Richard. ── Uma garantia para deixar o grupo mais unido.

── O que você quer dizer com isso? ── Adams franziu o cenho.

── Vai entender quando chegarmos lá.

Riley não fez mais questionamentos após isso, ela confiou em Richard e o seguiu em silêncio, observando as árvores e a floresta ao seu redor. Uma parte dela ainda tinha medo, uma preocupação crescente de um infectado aparecer a qualquer momento, de não ser rápida o suficiente para se defender.

Tudo o que sabia sobre eles foi o que aprendeu sobre Richard e Robbie. O tempo estudando aquelas pessoas infectados, os fez perceber que a transformação ficava completa após 12 horas da infecção. Todos que se transformavam ficavam incontroláveis, correndo na direção de qualquer um que avista-sem, por isso era importante que ficassem em silêncio.

No momento, a maior parte ainda ficava nas cidades. Mesmo que encontrassem andarilhos pelas florestas, não eram muitos. Eles sempre ficavam no centro, nas casas e nos velhos estabelecimentos. Algumas cidades foram bombardeadas na tentativa de conter a propagação da infecção, mas não foi o suficiente. Para a Riley e para os outros, não havia mais um governo para coordenar um ataque.

Ela não sabia o que havia acontecido com as pessoas que saíram da cidade de ônibus, porém Richard dizia a eles que foram todas mortas pelos militares. Não havia mais para onde ir ou para onde correr. Aqueles que haviam sobrado deveriam estar escondidos, assim como eles. Linz sempre prometia tentar entrar em contato com outras pessoas assim que eles encontrassem um rádio utilizável.

Depois de alguns poucos minutos de caminhada, Riley avistou uma pequena cabana na floresta. Seu cenho franziu enquanto acompanhava Richard, curiosa para saber o porque de estarem ali. Porém, ela se manteve em silêncio. Não fez mais nenhuma pergunta e deixou que o homem chegasse até a porta primeiro. Riley parou nos degraus atrás dele.

Linz abriu a porta com uma chave, destrancando-a. Em seguida, ele fez sinal para que Riley o acompanha-se. Ela fez o que ele pediu.

── Onde estamos? ── Adams perguntou, sem conseguir ver o interior da cabana, pois Richard ainda estava na frente.

Quando ela entrou, ele fechou a porta atrás deles, mas não a trancou. A respiração de Riley engatou assim que ela terminou de observar a velha cabana de caça e avistou, no cômodo a frente deles, uma pessoa amarrada em uma cadeira. Não havia porta dividindo o quarto da cozinha, então ela poderia ver tudo do outro lado. Incluindo um homem amarrado e com um saco cobrindo seu rosto.

── O que é isso? ── Ela questionou, olhando para Richard. ── O que está acontecendo?

── Estamos cortando algumas pontas soltas. ── Linz respondeu, caminhando até aquela pessoa. ── Como você disse que deveríamos fazer.

── Como eu disse?

── Sim, Riley. Como você disse. ── Ele assentiu. O homem na cadeira gemeu, acordando aos poucos. Richard retirou o saco que o cobria o rosto, expondo para ela quem ele era.

── Oh, meu Deus! ── Adams exclamou, levando as mãos a boca, surpresa ao ver o rosto de Robbie completame espancado. Seu olho direito estava inchado, sangue escorrida de seu nariz e de vários outros cortes em seu rosto. Richard o segurou pelo o cabelo para que seu rosto continuasse levantado.

── Quando te perguntei o que fazer para um grupo se manter unido. Sua resposta foi que era sempre necessário haver confiança, ninguém poderia duvidar da liderança. ── Ele explicou. ── Uma ovelha rebelde as vezes é o suficiente fazer com as outras comecem a se debandar.

── Foi de maneira hipotética. Eu não estava falando sério, nada do que eu disse foi sério! ── Ela deu um passo a frente, sentindo-se desesperada.

Richard balançou a cabeça de um lado ao outro.

── Nós temos muito potencial aqui, Riley. Podemos fazer algo grande. Encontrar mais pessoas, criar nossa próprio grupo de sobreviventes. ── Respondeu Linz. ── Eles me escutariam, me seguiriam. Sei que fui feito para isso. É o que Deus quer que eu faça, que eu os guie. Mas não posso fazer isso tendo pessoas como Robbie ao meu lado.

── Você só pode estar louco. Isso é... Isso é loucura. ── Riley entrou em negação.

── Você sabe que é verdade. Sabe que deve ficar ao meu lado. ── Richard soltou a cabeça de Robbie e ele gemeu com a brutalidade. Linz caminhou na direção dela e Adams deu um passo para trás. ── Nós dois juntos podemos mudar o mundo. Podemos dar a verdadeira esperança a essas pessoas. Mostrar a elas que o cordycerps não veio para o mal e sim para faze-los mudar para melhor.

── Cordycerps? Esse é o nome do vírus?

── Não é um vírus, é um fungo. Ele se adaptou a nós.

── Como sabe disso?

── Ele... Ele tinha um rádio. ── Robbie arfou por ar ao falar, Richard e Riley se voltaram para ele. ── T-Tinha um rádio que escondeu de nós. Há zonas de quarentena, s-sobreviventes...

Richard caminhou até ele rapidamente e o socou no rosto uma vez, fazendo que o cala-se.

── Isso é verdade? ── Ela murmurou com a voz trêmula. ── Você tem um rádio? Zonas de quarentena existem? Você... Você esteve esse tempo todo privando a gente disso, nos manipulando?

── Você precisa entender que fiz para o bem de todos vocês, Riley. Está tudo na bíblia, isso iria acontecer. Deus falou comigo, ele me deu um chamado. ── Richard se voltou para ela. ── Fiz isso porque o governo não se importa mais com nenhum de nós. Eles podem matar aquelas pessoas dentro das zonas de quarentena a qualquer momento se desejarem, são apenas porcos para o abate. Elas precisam ser libertadas. Não sabem que estão aprisionadas.

Riley não sabia o que fazer ou o que dizer. Ela sempre confiou em Richard, ele sempre se mostrou alguém que se importava com ela e com Sally. Não as deixava sozinhas, apaziguava as brigas com Esther, eles as protegeu. Sem John, elas não tinham mais ninguém além dele.

O corpo de Riley tremeu. Seus olhos se desviaram para Robbie na cadeira, machucado e espancado. Ele também era um bom homem, também se preocupou com elas. Mas não era tão presente.

── Sabe que nunca farei mal a você, Riley. E nem a Sally. ── Richard ficou na frente de Riley, cobrindo sua visão e a impedindo de encarar Robbie. Ela ergueu o olhar para o homem, vendo seus olhos azuis focados nela. ── Vou sempre manter vocês duas em segurança, tudo o que eu peço é sua lealdade em troca.

Linz levou a mão a arma que Riley segurava, o rifle de caça que estava em seu ombro, e a fez segurar com as duas mãos.

── Robbie nos coloca em risco, ele é uma ameaça. É uma ameaça a mim, a você e a sua irmã. ── Ele faz com que os dedos dela se fechem em torno do rifle, contendo a forma que eles tremem. Sua voz é calma e ele deixa que Riley tome seu próprio tempo. ── Não estou pedindo muito, Riley. Eu já fiz tanto por vocês duas, o mínimo que pode fazer é retribuir isso. Uma forma de garantir que todo mundo sobreviva.

Virando-se na direção de Robbie, ele a guia para que Riley dê passos a frente e fique exatamente alguns passos a frente do homem. Adams não sabe o que fazer. Ela pensa em recuar, em fugir, mas não consegue. Seu corpo inteiro treme. Riley nunca havia matado uma pessoa antes.

── Não posso fazer isso. ── Riley balança a cabeça de um lado ao outro, lágrimas caindo do canto de seus olhos e manchando sua pele suada.

── Sim, você pode, filha. Você pode. ── Ele a encoraja, fazendo com que Riley posicione a arma de forma adequada. ── Só assim vai conseguir proteger a Sally.

── Por que? Por que não podemos apenas deixar ele ir? ── Riley pergunta, com a voz quebrada. ── Ele não fez nada.

── Ele é perigoso. Robbie é uma farsa, Riley. Ele voltaria, entregaria a gente para os oficiais. Eles viriam até onde estamos e matariam todos. Robbie precisa morrer. ── Insistiu Richard. ── Faça isso. Faça por mim. Faça isso e vou saber que está do meu lado, que realmente está disposta a tudo para sobreviver e para salvar sua irmã. Faça isso, Riley. Ou o sangue da Sally vai estar nas suas mãos.

Richard continuava falando, continuava a pressionando, repetindo aquelas palavras que reverberavam na mente de Riley sem parar. Ela estava nervosa, estava tremendo e ele não se afastava. Continuava vendo as imagens de seu pai morto naquele carro em sua mente, em seguida via Sally. Imagina tudo o que Richard dizia acontecendo.

Ela tinha que fazer tudo o que era necessário para proteger sua irmã, ela disse que faria. E se Robbie realmente fosse uma ameaça? E se confiar nele acarreta-se a morte de todos? Se ela se volta-se contra Richard, estaria completamente sozinha. Ela não podia proteger Sally sem ele.

Riley estava em uma espiral. Não queria ver Richard como seu inimigo, ele nunca foi. Ele fez tanto por ela nos últimos anos, ele a ajudou. Riley deveria ser grata, certo?

A cada segundo que passava ficava pior, o coração de Riley estava batendo tão forte que poderia escutar em seus próprios ouvidos. Ela queria que tudo parasse, que aquela sensação cessasse. Era horrível, porém Riley sabia o que deveria fazer para aquilo tudo parar.

── Faça agora, Riley! ── Ele exclamou, e Riley atirou.

INVERNO⠀─ ⠀ NOVEMBRO 12, 17:30
⠀ ⠀Cheyenne / Jerico, Wyoming
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Não importava quanto tempo havia se passado, encarar Richard Linz ainda era um grande desafio. Um que Riley precisava enfrentar.

Ela pensou que tudo havia acabado em Hartford. Pensou que poderia deixar o que aconteceu na cidade do passado. Riley fez Sally prometer que nunca contaria para ninguém o que aconteceu durante aquele período em que estiveram vagando com o grupo. Caso alguém perguntasse, ela deveria dizer que as duas saíram da cidade após o começo do surto junto com as outras pessoas dentro dos ônibus. Depois elas foram para uma zona de quarentena em Boston, pois New Haven não era mais habitável.

Por ainda ser no começo de tudo, foi fácil conseguir esconder os fatos. Ninguém estava realmente preocupado em checar se aquela informação era falsa ou não, ou se ela realmente estavam ali desde o princípio. 20 anos se passaram, aquele detalhe foi esquecido. Tão esquecido ao ponto de, em alguns momentos, até Riley acreditar que era real. Era o que ela dizia para todo mundo, foi o que disse para Ellie no hotel em Boston e era a história que contou para Joel quando se conheceram em um bar na zona de quarentena anos atrás. Aquela resposta estava sempre na ponta de sua língua e nunca precisou provar nada para ninguém.

Os dias passaram e Riley nunca se esqueceu. Ela ainda sonhava com a morte de Robbie, as vezes ele a visitava em seus sonhos. Ainda sentia o peso da morte da primeira pessoa que matou. Recordações pareciam armas, cortavam profundamente como facas afiadas. Riley nunca se esqueceria do que aconteceu em seguida, do que veio após a morte de Robbie, do que se seguiu após Hartford, das pessoas que continuou matando com o passar do tempo. Cada um deles a julgava em seus sonhos, eles a culpavam.

A bebida foi sua aliada para tentar calar seus demônios, porém não foi o único meio que Riley encontrou. Com o tempo, quando a situação começou a apertar, ela também fez alguns trabalhos ilegais nas zonas de quarentena, que incluíram principalmente matar pessoas.

Ela saía com um grupo de sobreviventes mais velhos e eles caçavam e saqueavam do lado de fora. Adams já não tinha mais nada a perder, assim como aquelas pessoas. Ela aceitou não apenas a violência que tinha dentro de si, mas também o fato de que o mundo nunca mais voltaria a ser como antes.

Em determinado momento no tempo, quando os Jericos enfim surgiram e Riley percebeu que Richard era o padre Matthias, esperou que ele encontrasse seu caminho até ela. Sempre aguardou que ele viesse atrás dela, mas isso nunca aconteceu. A vingança nunca bateu a sua porta. Então, Riley foi até ela. E as consequências daquela noite em Hartford voltavam a tona mais uma vez.

── Quem é essa? ── Indagou Matthias, ainda sem ter conseguido reconhece-la. Ele semicerra os olhos, tentando analisar o rosto da mulher e encontrar em sua memória alguma recordação.

── Riley Adams. Nossa amiga em comum. ── Dwayne profere o nome dela lentamente. As feições de Matthias mudam passando de questionadora para surpresa. Ele se reclina para trás em seu assento parecendo satisfeito.

Algo o está satisfazendo, Riley pode ver. Há um brilho no olhar, uma satisfação mórbida que está sendo coletada depois de ter sido plantada a muito tempo. Richard esperou muito tempo por isso.

── Riley. Há tanto tempo não escuto esse nome. ── Comenta o padre. ── Então... o filho pródigo a casa torna.

── Não sou sua filha e esse lugar nunca foi minha casa. ── Ela responde.

── Mas você está aqui agora. Depois de... tanto tempo. ── Disse ele. ── Eu sabia que viria até mim. Por isso nunca fui atrás de você. Sabia que retornaria. ── Riley fecha as mãos em punhos, cravando as unhas sobre a pele. ── Sabia que voltaria para mim. De uma forma ou de outra.

Riley sorri amargamente.

── Esperou muito por isso, né? Devo ter te assombrado em seus sonhos durante os últimos anos, viu meu rosto em todos os lugares. ── Ao indagar, ela deixa que o peso de suas palavras flutuem, sendo levadas até ele com toda a raiva que ela transborda. ── O que é isso? Remorso, culpa ou apenas rancor?

── Você me julga com pesar, minha filha. Não acho que seja eu a pessoa a carregar tanta bagagem como remorso, culpa ou rancor. ── Ele retruca. ── Acredite em mim quando digo que estou deixando o passado no passado, Riley. Minha visão se estende para o futuro.

── O que? Vai me dizer que me vê no seu futuro? ── Soltando uma risada de escárnio. ── Não sei qual é o seu problema ou da onde vem essa obsessão por mim, mas eu não me importo com nada que você diga. Pra mim, você pode se foder!

Riley recebe um golpe no estômago vindo de Dwayne, que a acerta com o joelho. A dor a faz se curvar e tossir, enquanto sente as lágrimas involuntárias arderem em seus olhos. Ele finalmente a solta e deixa que fique de joelhos novamente.

── Tenha respeito pelo nosso senhor, sua vadia. ── Dallas profere aquelas palavras próximo ao rosto de Riley, dizendo todas com os dentes cerrados. ── Não seremos tão misericordiosos com você se continuar assim.

── Isso tudo é emocionante, um reencontro digno, eu diria. ── Intrometeu-se Dyani, dando um passo a frente. ── Mas não estamos aqui para isso. Estamos aqui para uma negociação.

── Fofo como você acha que pode fazer exigências. ── Ironizou Dwayne, olhando para Dyani por cima do ombro. ── Você deveria estar grata por ter conseguido entrar na nossa cidade sem ter sido estripada, herege.

── Essa cidade nunca foi de vocês. ── Dyani dá mais um passo a frente, mantendo seu punho cerrado e fuzilando Dwayne com os olhos. Kai precisa segurar o braço dela para impedi-la de continuar. Os outros guardas também ficam em alerta, voltando-se para a mulher.

── Dwayne. ── o chama Matthias. ── Não seja rude com nossos convidados. Eles nos trouxeram um presente. ── O homem tem seus olhos sobre Riley enquanto fala. ── Deixem que falem e, dependendo do que pedirem em troca, veremos se podemos- ── Ele começa a tossir no meio da fala, leva a mão a boca para cobri-la e em seguida a limpa em suas próprias vestes. ── Veremos se podemos ajuda-los. Primeiro, me digam como a encontraram.

Richard se escondia atrás de uma falsa bondade. Ele nunca se exaltava, mesmo quando estava esfaqueando uma pessoa até a morte. Mantinha a fachada da calma por baixo de seu sadismo. Era assim que ele agia. Fingindo ser um apaziguador. Riley demorou a perceber que era assim que ele era. Manipulador e sujo. Porém os pequenos detalhes sempre estiveram lá, ela apenas os deixou passar, também enganando a si mesma.

Quando se lembrava de anos atrás, de quando os Jericos se tornaram uma força presente no mundo e a voz do padre Matthias se tornou mais frequente, ela demorou a perceber que Matthias era na verdade Richard. Começou quando ela passou a analisar a forma como os Jericós agiam. Tudo o que eles faziam, lembrava tudo o que Riley havia discutido com Richard no passar dos meses. Eles seguiam um padrão em seus ataques, um padrão que ela havia ajudado ele a criar. Porém Adams esteve em negação no inicio, dizendo a si mesma que tudo era uma grande coincidência.

As dúvidas apenas caíram por terra quando ela encontrou um acampamento de Jericós com outros sobreviventes e, depois de matar todos eles, durante a busca por suprimentos, ela achou um cartaz que dizia "Padre Matthias nos guiará para a salvação eterna." Nele havia um desenho de Matthias e ele era tão familiar.

Naquele momento ele chamava-se de padre e guiava um grupo de extremista religiosos no meio do fim do mundo. Depois de anos sem vê-lo pessoalmente, apenas escutando a voz dele pelo rádio, muitas vezes ela se perguntou se ele havia mudado. Agora, enquanto o encarava, ele poderia ser apenas um velho frágil e quase senil para qualquer um outro, mas não a enganava. Não mais.

── Foi abandonada na neve por um dos seus homens. ── Explicou a mulher. ── Três deles a arrastavam em trenó. Ela poderia ter morrido se não a tivéssemos encontrado.

── Engraçado você dizer isso. ── Comentou Dwayne. ── Jonah voltou para o acampamento dizendo que foi atacado por um grupo de sobreviventes pelo caminho, por isso deixou a mulher que trazia para trás. Tem alguma coisa haver com isso?

── É a palavra dele contra a nossa. ── Dyani deu de ombros, sem olhar para Dwayne.

── Eu prefiro acreditar em um dos meus. ── Disse Dallas, entre dentes.

── Isso já é problema seu. ── Rebateu a mulher. ── Nós salvamos a vida dela, pois eles nem se deram ao trabalho de medica-la corretamente. Ela teria morrido antes de chegar aos portões da cidade e tudo teria sido em vão. E eu sei que ela é importante para vocês por algum motivo, então não seria ruim se agradecesem pelo menos uma vez na vida.

Dwayne soltou uma risada de escárnio, prestes a liberar um comentário maldoso, quando foi impedido por Matthias.

── Você está certa, jovem. ── Disse o padre. Dallas pareceu incrédulo por um momento, depois respondeu com um "tsk" desdenhoso, sendo ignorado por Matthias. ── Tem os meus agradecimentos por seu feito e por vir até aqui, mesmo após nosso desentendimento passado. Diga-me, então. O que você deseja?

── Queremos suprimentos. Sabemos que vocês tem um estoque. ── Depois de se recompor, Dyani parece mais concentrada. Riley não pode ver o rosto dela de onde está, pois Dwayne ainda a segura fortemente pelo braço. Ele faz questão de manter seus dedos firmemente ao redor, apertando ao ponto de machucar. ── Também queremos alguns cavalos. Depois disso, nunca mais ouvirão falar de qualquer um de nós.

── É só isso que desejam? Comida e cavalos? ── Questionou Matthias.

── É só isso que ela vale. ── Respondeu Dyani. ── E eu sei que nada que eu der para vocês, vai fazer com que me deem o que realmente quero.

── Eu poderia fazer melhor. Poderia recebe-los aqui. Viveríamos todos juntos e em perfeita harmonia. ── Disse o homem. ── Tudo o que vocês precisam fazer é se render a palavra do senhor. Aceitar a palavra verdadeira que parte de mim e a salvação eterna juntando-se ao Novo Mundo. Teriam tudo o que querem e mais um pouco.

── Me juntar ao homem que matou o meu pai? ── Dyani desdenhou. ── Não mesmo.

── O seu pai, infelizmente, foi fraco. Ele poderia ter salvado o povo dele, mas não o salvou. Ele foi egoísta. Isso condenou alguns de vocês. ── Respondeu Matthias. ── Mas vocês podem encontrar uma nova familia em mim. Assim como Riley um dia encontrou. Podem ser meus filhos. Nunca deixaria que nada lhes falta-se.

Riley se mexeu nas mãos de Dwayne, mantendo seus olhos diretamente em Matthias. Ela odiava a forma como ele a via, como ele a enxergava como uma filha. Na mente dele, os dois eram iguais. Richard realmente achava que Riley pertencia a ele e ela sentia uma raiva se revirar em seu ser, uma necessidade de encerrar com aquilo o quanto antes.

── Tudo o que queremos fazer é partir. ── Ao que Dyani se manteve calada, fervendo internamente com raiva, Kai continuou. ── É muito generosa a forma como o senhor age, mas não há mais nada aqui para nós.

Matthias manteve-se em silêncio por um tempo, até que soltou um suspiro profundo, tentando soar decepcionado, porém Riley não achava que ele estava surpreso.

── Bem, eu entendo. É triste, tenho que ressaltar. Mas vocês tem o direito de escolher não ficar. ── Respondeu ele. ── De qualquer forma, receberam o que querem. Um agradecimento farto pelo o que fizeram por mim hoje. O retorno de minha filha que se perdeu nesse mundo cruel, é realmente algo que me alegra muito. ── Matthias sorriu. Riley queria mata-lo.

── Nós agradecemos por isso. ── Kai disse, dando um breve aceno com a cabeça. Um sorriso debochado cresceu nos lábios de Dwayne, ele não parecia convencido, muito menos tinha credulidade na bondade de Matthias.

── E o que fazemos com ela, senhor? ── Dallas questionou, referenciando Riley. Havia certa ansiedade no tom de voz dele, quase como se estivesse excitado para pôr algo em prática.

── Riley e eu... Temos muito o que conversar. ── Ele respondeu. ── Não é, minha filha?

── Não imagina o quão ansiosa eu estou por isso. ── Riley debochou, encarando Matthias com um falso sorriso e um olhar furioso. Em troca, ele sorriu minimamente para ela.

── Levem-na para a prisão. Quando eu terminar a negociação dos suprimentos com esses dois, lidarei com ela. ── Afirmou.

Dwayne apenas assentiu e chamou um segundo homem para acompanhá-lo. Ele empurrou Riley para frente, forçando-a a andar, porém sem desfazer seu aperto no braço dela para que pudesse guiá-la pelo corredor. Eles saíram pelos fundos, pelo mesmo caminho que Matthias havia entrado. Antes de atravessar a porta, Riley olhou para Dyani por cima do ombro. Elas trocaram um olhar conhecedor uma última vez, antes de Adams sumir atrás da porta que foi fechada.

Sozinha com Dwayne e o segundo homem, Riley sabia que, a partir daquele momento, a segunda parte do plano estava sendo posta em prática. Ela sabia que Dallas não resistiria a chance de permanecer perto dela, sabia que ele a seguiria, sabia que, mesmo que ele não a matasse, gostaria de tortura-la pelo menos um pouco. Mesmo que Matthias impedisse, ele não se importava.

── É ótimo ter você aqui, sabia? ── Dwayne estava próximo ao ouvido dela. Seu peito encostado nas costas de Riley, enquanto ele fazia questão de manter a proximidade entre os dois. Riley sentia-se enojada. ── Tão próximo de mim, tão à minha mercê. Sei que Matthias não se importaria se eu brincasse com você um pouquinho.

── Ele te mataria. ── Murmurou Riley, entre dentes. Dwayne sorriu, sádico.

── Se ele tentasse, eu rasgaria sua garganta antes. ── Retrucou o homem. ── E o velho precisa de mim. Você não viu como ele está parecendo uma múmia? É questão de tempo até ele cair duro. Então, eu vou assumir o lugar dele.

── Por que não o matou? Você poderia, já que ele está tão frágil, como você diz. Poderia ter sido o líder a muito tempo. Por que não o fez? ── Ela indagou, arfando uma única vez, enquanto a mão livre de Dallas a segurava pelos cabelos.

Enquanto Dwayne estava ocupado guiando-a pelo corredor e o outro soldado andando mais a frente, absorto da conversa dos dois, Riley retirou o canivete da manga lentamente para poder cortar as amarras.

── Porque eu precisava dele, assim como ele precisa de mim. ── Disse Dwayne. ── E esses lunáticos o respeitam demais. São fanáticos por esse líder. Essa figura religiosa fingida que criaram para seguir e a adorar durante a porra do fim do mundo. ── Ele riu. ── Não é tão fácil assim desbancar uma figura como essa. É como se ele fizesse uma lavagem cerebral nas pessoas. Todo mundo drogado demais pra se importar se o que ele diz é verdade ou mentira.

── Então você nunca acreditou nele? ── Indagou a Adams.

── Não. Eu só sei fingir muito bem. ── Respondeu Dwayne. ── Mas agora, acho que já deu o tempo dele. Tenho tudo pronto para tira-lo do poder. Uma morte trágica pelas mãos da filha querida que foi arrastada de volta para casa. Imagina como todos eles vão reagir? Aqueles Jericós vão vir para cima de você como doidos, você vai desejar ter sido morta pelos infectados. ── Havia tamanha excitação no tom de voz dele. ── E eu vou assistir tudo de camarote, Riley. Você me entregou isso de bandeja!

── Eu sabia que você não ia ter coragem de me enfrentar, seu escroto do caralho. ── Ela respondeu, seus dentes cerrados enquanto sorria. ── Vai fugir como da última vez. Sempre soube que você não era homem o suficiente. ── Riley o provoca, sabendo exatamente o que dizer para deixa-lo irritado.

Dwayne inclina a cabeça de Riley para trás pelos cabelos, fazendo a cerrar os dentes mais fortemente. Os passos dele param em meio corredor do Tribunal, próximo a saída. Riley está muito perto de cortar as amarras, faltando apenas mais alguns deslizes do canivete.

── Não me provoque, pois eu posso te mostrar aqui mesmo que sou muito mais homem do que você imagina. ── Disse ele, próximo demais do rosto dele. Riley cuspiu no rosto dele.

Irritado, Dwayne limpou o rosto com a mão que antes a segurava pelo braço. Ele levantou o braço para bater nela, quando houve um estourou. Uma explosão ecoou por toda a cidade de Cheyenne, em seguida fazendo com que as luzes se apagassem, deixando apenas a luz da lua que entrava pelas janelas para iluminar o lugar.

── Mas que porra é essa?! ── Exclamou Dwayne, nervoso. Eles ainda estavam no escuro, olhando ao redor com desconfiança.

Estava tudo silencioso do lado de fora, até que os gritos começaram, seguidos por mais explosões e os sons característicos de tiros disparados.

Quando Dwayne abriu a boca para falar algo, Riley cortou o último fio da amarra. Com o objeto em mãos, Adams o levou diretamente para o rosto de Dwayne e enfiou a faca no olho dele. O homem gritou de dor, alertando o outro guarda, que virou na direção deles já com a arma em mãos.

Ao acertar Dallas, ele a soltou no processo, dando a chance que ela precisa para escapar. Riley passou pelos bancos de espera, sentindo as balas quase chegarem perto de seu corpo. Entrou em uma das portas e puxou uma estante que estava no corredor para bloquear a passagem.

Riley toma alguns poucos segundos para respirar fundo e pensar no que precisa fazer em seguida. Ela não tem mais nenhuma arma consigo para se defender, está totalmente desprotegida, e sabe que isso precisa se tornar sua prioridade. Os gritos de horror do lado de fora estão abafadas e, por um tempo, ela está no escuro. Até que as luzes de emergência do Tribunal sejam acionadas e agora todo o corredor esteja iluminado em vermelho.

Ela segue por ele até a porta que está no final, andando com o máximo de cuidado que pode até finalmente estar do lado de fora. A saída dos fundos a deixa de frente para um estacionamento abandonado, onde há uma velha casinha de vigia e alguns trincheiras feitas pelos Jericós. Riley está livre de Dwayne, encarando uma Cheyenne que passou a adentrar no caos. Naquele instante, ela não vê, apenas escuta a movimentação, sente o cheiro do fogo e da pólvora que permeia no ar. É um caos generalizado, da forma que eles haviam planejado.

Talvez não durasse muito, levando em conta que eles tinham muito menos homens comparados aos Jericos, porém Riley faria com que todo o esforço valesse a pena.

Andando pela lateral do prédio, ela se esconde atrás de uma caçamba de lixo azul. O prédio é voltado para o centro da luta, onde Riley pode ver alguns guardas correndo para direção de onde o pessoal de Dyani havia entrado. Não havia energia na cidade naquele momento, apenas a luz do fogo que se alastrava pelas casas iluminava o lugar.

Riley escuta o som alto das portas sendo abertas. Olhando por cima da lixeira, ela vê enquanto padre Matthias é guiado para fora por outros Jericos. Ela os acompanham com o olhar, observando o caminho que fazem para longe do caos, buscando um lugar onde pudessem mantê-lo em segurança. Há uma casa grande, quase como uma mansão, que está longe o suficiente do fogo e dos invasores. A residência é antiga, porém está conservada.

A paredes brancas estão sujas em várias partes, pintadas com os símbolos dos Jericos, frases escritas na parede, simbolos religiosos feitos a mão com madeira pendurados na entrada e eles construíram cercas com arames farpados em torno do lugar, porém ela ainda permanece de pé, sem qualquer parte estar destruída.

Quando dois homens atiram em um Jericó, ele cai no chão sem vida logo em seguida. Uma arma cai das mãos dele, enquanto o sangue se amontoa ao seu redor. Ele está no caminho dela, a passos de distância, e Riley aproveita toda a distração para chegar até ele e pegar a arma. É uma submetralhadora 9mm. Adams checa as balas, confere quantas tem na arma e depois procura mais no corpo do homem. Ela encontra mais um pente e o guarda. Não é muito, mas deve ser o suficiente para o que precisa fazer.

Seus olhos focam na casa, na porta que foi fechada. Um único pensamento passa pela cabeça dela naquele momento, ecoando como um mantra, uma ordem que precisava seguir: estava na hora de por um fim naquilo que havia começado.

INVERNO⠀─ ⠀ NOVEMBRO 12, 18:00
⠀ ⠀Cheyenne / Jerico, Wyoming
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O anoitecer acontecia no horizonte quando o pequeno grupo de Joel chegou ao acampamento dos sobreviventes de Cheyenne. Sally acompanhava o homem, mantendo Jude a trotes calmos, enquanto eles estudavam as redondezas e tinham cuidado ao se aproximar do lugar indicado. Após o contato de Riley pelo rádio, eles não demoraram a se localizar e a evitar o referido "Vale da Morte" que agora era apenas uma memória vaga no passado. Sally não estava curiosa para descobrir o que havia nele e foi um alívio saber que não teriam que percorre-lo.

A tensão retornou quando Joel compartilhou sua desconfiança com o grupo, alertando-os para tomar cuidado. Ele chegou a formular um plano com Simon, dizendo que, caso fosse necessário, a única função dele seria tirar Sally e Ellie de lá o quanto antes. Nenhuma das duas gostou da ideia de abandona-lo, porém Miller era teimoso demais e estava decidido a não mudar de ideia.

Ele lideraria o caminho, seguiria a frente deles e conversaria com aquelas pessoas primeiro, os três ficariam alguns passos atrás dele e não interfeririam em nada. Não valia a pena lutar, eles tinham apenas que correr para o mais longe o possível.

Lembranças das palavras de Joel açoitavam a mente de Sally, fazendo que apertasse as rédeas do cavalo com força. Seus nós dos dedos ficando brancos dentro das luvas, sentindo uma pressão excruciante em seu coração. Sally queria Riley de volta. Queria estar com a irmã novamente e poder dizer que se arrependia de muitas coisas nos últimos anos, mas nunca de ter ficado ao lado dela. Ficaria mais 20, 30 anos se pudesse. A preocupação causada pela distância não valia a pena. Sally queria pode abraça-la novamente.

Os pensamentos dela foram cortados quando encontraram um homem na estrada. Ele estava vestindo um casaco de couro marrom e segurava um rifle. Com o chapéu em sua cabeça, ele parecia um típico pistoleiro. Sua pele era de um tom de marrom claro e havia traços indígenas em suas feições, enquanto mantinha o rosto sério.

Houve uma troca de olhares entre Joel, Sally e Simon e os dois pararam seus cavalos atrás, deixando que o homem mais velho continuasse. As mãos de Ellie em torno da cintura de Sally ficaram mais apertadas. Joel parou a uma boa distância do homem, analisando-o.

── Você é o Joel? ── Indagou ele, quebrando o silêncio antes que Miller pudesse dizer alguma coisa. Sally percebeu que Joel ficou um pouco tenso. Mesmo que Riley tivesse garantido que estava com boas pessoas, ele não havia deixado a desconfiança de lado.

── Sou eu. ── Respondeu Miller. ── E quem é você?

── Malcom. Estou aqui pra acompanhar vocês até nosso acampamento, a pedido de Dyani. ── O homem explicou. ── Vocês podem me seguir, não estamos longe.

Malcom deu as costas para eles, dando alguns passos quando percebeu que nenhum dos três o seguiu. Ele olhou por cima do ombro, observando o grupo por um momento e deixando que seu olhar repousasse em Joel no final.

── Vocês vem ou não? Eu não tenho a noite toda.

Joel suspirou profundamente e assentiu. Ele fez sinal para que Simon e Sally os acompanha-se, os três cavalos dando trotes calmos pelo caminho coberto de neve. Eles ainda mantinham uma distância segura de Joel, deixando que ele estivesse mais próximo de Malcom.

── Onde está a Riley? ── Miller indagou.

── Você vai encontrar com ela em breve, não se preocupe. ── Malcom afirmou, sem olhar para Joel.

── Essa não foi a minha pergunta. Quero saber onde ela está, se ela está bem. Estamos aqui por ela, apenas. ── Joel retrucou um tanto rude, odiando a resposta vaga que Malcom havia lhe dado.

── Ela está bem. ── Foi tudo o que Malcom disse, pensando que aquilo seria o suficiente para acalmar a inquietação e a raiva que estava começando a crescer em Joel.

Joel grunhiu, mas não teve tempo de dar uma resposta. Eles avistaram uma fumaça mais a frente e uma bifurcação na mata que levava por um caminho semi coberto pela neve. Podiam ver as pequenas marcas espreitando pela fina camada branca no chão e uma placa de madeira quebrada que deveria ter o nome do lugar.

Quando estavam de frente para o caminho, conseguiram ver melhor o lugar um pouco escondido pelas árvores e arbustos. Sally viu uma velha igreja no fundo e algumas pequenas casas próximas, todas queimadas e meio destruídas.

Perto do fogo havia algumas pessoas, crianças, mulheres e idosos. Outras estavam dentro das casas ou na igreja, olhando para eles das janelas. Não haviam muitas pessoas ali, Sally chutaria em torno de 10 pessoas no máximo. Todas com o rosto sujo e olhares tristes.

Malcom indicou onde eles poderiam prender os cavalos e Sally percebeu que o amarradouro estava praticamente vazio de cavalos. Havia apenas um, porém algumas pegadas distantes entregavam que ele não era o único que ficava ali. Adams percebeu que Joel também notou isso.

── Essas pessoas parecem bem abatidas. ── Ellie comenta, curiosa demais para desviar o olhar dos habitantes. Algumas crianças também a encaram com curiosidade.

── Parecem desabrigados. ── Sally a responde, mantendo um tom baixo para que apenas ela e Simon escutem. ── Aqui deve ter sido o único lugar que conseguiram achar pra ficar, mas não aparenta ser muito bom.

── Acha que eles vão durar o inverno todo? ── Perguntou Simon.

── Se tiverem comida o suficiente, sim. ── Ela respondeu.

── Mas e os infectados? ── Questionou a Williams, olhando para ela. ── Eles não vão ser um problema? Sei que eles estão escondidos, mas os Estaladores escutam muito bem.

── O maior problema deles nesse momento deve ser a fome, não os infectados. Pode ter certeza disso. ── Garantiu a Adams. ── É difícil que eles apareceram tanto no frio. Você notou isso durante nosso trajeto pro Wyoming.

── Sim, mas a gente não passou tanto tempo no mesmo lugar. Eles parecem estar vivendo aqui por muito tempo e sem muita proteção.

── É o risco que qualquer um tem que correr hoje em dia, Ellie. ── Comentou Simon, olhando para a garota.

── Onde estão os outros do grupo de vocês? ── Joel se volta para Malcom, notando-o perto de outro homem. Haviam mais outros dois na porta onde ficava o que Sally achava ser um refeitório improvisado. ── Não vão me dizer que são só vocês aqui. O restante não aparenta saber se proteger sozinhos.

Houve uma troca de olhares entre Malcom e rapaz ao lado dele. Os dois tinham praticamente a mesma altura.

── Eles foram caçar.

── É meio tarde pra isso. Um péssimo horário para caçar, ainda mais em um lugar como esse. ── Retrucou Joel. ── Digam a verdade. Onde a Riley está? ── Ele não é sutil quando leva a mão a arma que mantém no coldre que está em sua cintura. O movimento não passa despercebido pelos outros que também se agitam.

O homem ao lado de Malcom também segura a pistola que mantém em seu próprio coldre. Sally percebe que eles estão passando a entrar em um impasse, o ânimos ficando exaltados.

── Eu fiz uma pergunta.

── E vamos responder quando você se acalmar, cara. ── Respondeu Malcom. ── Não queremos brigar com vocês, estamos apenas seguindo ordens.

── De quem? Dá líder de vocês? ── Indagou Joel, sacando a arma. ── Eu quero respostas.

── Você vai ter suas respostas, assim que eles voltarem. ── Malcom segurou a mão do amigo ao lado, impedindo que ele apontasse a arma para Joel.

── Voltarem da onde? ── Sally deu um passo a frente. Seu cenho estava franzido quando o questionou, aguardando uma resposta de Malcom que pudesse explicar o que realmente estava acontecendo.

Antes que ele pudesse proferir qualquer palavra, eles escutaram uma explosão. Todos se assustaram, olhando na direção de onde aquele som havia vindo, observando enquanto uma fumaça negra subia no céu.

── O que está acontecendo? ── Questionou Sally, voltando-se para os homens. Ela notou como, por mais que eles estivessem surpresos, não estava assustados. Talvez receosos, mas não com medo. Eles sabiam o que estava acontecendo.

── Cheyenne é a cidade mais próxima. ── Simon comentou. ── Nós vimos no mapa. Ela fica exatamente naquela direção. Riley havia dito no rádio que eles eram sobreviventes de uma cidade próxima, que perderam o lugar que moravam para os...

── Jericos. ── Joel completou. A mão que segurava a arma apertou com mais força. ── Ela está lá, não está? ── Perguntou Joel, olhando para aqueles homens que pareciam como crianças pegas em flagrante. ── Ela foi até Cheyenne.

── Sua mulher disse para nossa líder que nos ajudaria a recuperar a cidade dos Jericos. ── Responde um rapaz de cabelos castanhos atrás de Malcom.

── Jack! ── Malcom soou indignado.

── O que? Eles já perceberam o que está acontecendo, não adianta mais tentar mentir, Mal. ── Alegou Jack. ── Eles também merecem saber a verdade, são a família dela e está escondendo isso deles.

── Ela pediu para que vocês mentissem? ── Sally perguntou. Jack assentiu.

── Ela e a Dyani pediram para que ficássemos aqui no acampamento cuidando dos outros e aguardando vocês. Disseram que não podíamos dizer que ela foi para a invasão, só tínhamos que manter vocês aqui até que eles voltassem.

── Então essa era a ajuda que ela ia dar para eles. ── Joel disse, praguejando baixinho e dando as costas para aqueles homens. ── Droga, Riley.

Ele passou por Sally, Simon e Ellie, andando apressadamente na direção dos cavalos e subindo no seu próprio.

── Joel, o que você vai fazer? ── Aproximando-se dele, Sally o questionou.

── Vou atrás da sua irmã. Vocês três fiquem aqui. ── Ele ordenou, segurando as rédeas do cavalo.

── Não pode fazer isso, é arriscado demais.

── Sua irmã está em perigo, Sally. Eu sei que ela não foi para lá a toa, não é apenas uma pequena base, é onde eles residem agora. ── Joel respondeu. A garganta de Sally fechou, sentindo o peso da gravidade daquela situação. Seu coração errou algumas batidas quando acelerou. Miller se voltou para Simon. ── Seu único trabalho aqui é mantê-las segura, entendeu?

── Sim. ── Ele assentiu. ── Dou a minha palavra que vou mantê-las em segurança.

── Se nem eu e nem a Riley voltarmos até o amanhecer, tire-as daqui e as leve para Jackson.

── Mas, Joel- ── Ellie tentou intervir, mas Joel a ignorou.

── Estamos entendidos, Simon?

── Sim, senhor. ── Tenso, Kline assentiu. Sally não sabia dizer se ele respeitava ou ainda temia Joel.

Joel aceitou a resposta de Simon, respirou profundamente, segurou as rédeas com força e partiu. Ninguém presente ousou tentar impedi-lo ou segui-lo. Pelo menos não durante aquele momento, não enquanto o cheiro da fumaça era apenas um incomodo distante.

Sally seguiu Joel com o olhar até que ele se tornou um ponto distante no horizonte e desapareceu além das árvores. Seu coração estava apertado em seu peito, milhares de pensamentos correndo em sua mente conforme seu estômago revirava por consequência de tudo que a perturbava. Ela sentiu Ellie ao lado dela, apertando sua mão menor na dela, talvez buscando um conforto que Sally não poderia dar para ela naquele momento.

Ela não seria capaz de ficar ali pela garota naquele momento, não poderia ser o alicerce que Ellie procurava. Por mais doloroso que fosse, Sally não estava disposta a entregar a sobrevivência de sua irmã apenas nas mãos de Joel. Sentiu que deveria fazer algo mais do que apenas ficar para trás e esperar. Talvez estivesse cavando sua própria cova naquele momento, mas não hesitou ao passar por Simon de forma apressada e tirar Jude do amarradouro.

Não escutou as palavras que ele disse e esquivou todas as vezes que ele tentou para-la, o som de seu coração batendo rápido estava tão alto que poderia jurar estar escutando-o em seus ouvidos. Ela guiou Jude para a trilha, quase esmagando Kline no processo e bateu as rédeas com força contra a égua fazendo com que o animal cavalgasse mais rapidamente.

Sally não olhou para trás em nenhum momento, pois sabia que, caso o fizesse, desistiria. Engoliu o próprio medo e continuou, deixando que o vento e os pequenos flocos de neve fossem capaz de lavar tudo que estava pesando em sua mente.

AUTHOR'S NOTE. 𓏲࣪ ☄︎˖ ࣪

I. Sei que demorei bastante para atualizar essa fic, foram meses bem complicados pra mim. Meu plano era terminar UATW meses atrás também, mas tive muitos imprevistos, principalmente relacionados a falta de inspiração. Por conta disso, acho que esse capítulo também não saiu como o esperado.

II. A ideia era que todo o flashback ficasse aqui, mas chegamos a 11k de palavras e eu achei que escrevi o suficiente. A continuação do flashback entre Riley e Richard estará no inicio do próximo cap, em seguida o fim (temporário) do arco de Jericó.

III. Peço que interajam nesse cap e não sejam leitores fantasmas. Estamos muito perto do final da fic e não os comentários de vocês me desanima um pouco, então façam esse esforço por mim e pela fic. Não quero ter que recorrer a meta de comentários.

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