IV - Peso na Consciência, pt. 2

A detetive prendeu o ar por alguns segundos, seguindo uma técnica clássica de respiração, que influencia o relaxamento e a redução do estresse. Ela rapidamente juntou os arquivos espalhados pela mesa, pegou sua bolsa e saiu em disparada atrás de Teniak, sem parar para guardar as pastas.

14:07h

Chegando no estacionamento, avistou Teniak próximo de seu carro, caminhando em passos pesados e nitidamente envoltos em raiva reprimida.

-- Teniak, espera! -- gritou Jesse. O detetive virou a cabeça em sua direção. O seu semblante é sério; o olhar é penetrante, profundo e amargo, mesmo as íris sendo de um azul claro amigável. Não respondeu nada ao chamado, apenas girou lentamente o corpo e fitou os olhos de Henderson, como se aguardasse um pedido de desculpas. -- O que você tem em mente? -- indagou num tom levemente ressentido, aceitando que, sem ter um plano melhor, precisaria seguir os dele.

Teniak inspirou profundamente e olhou para cima, decepcionado por não ouvir o que queria, mas aliviado pelo rumo que as coisas estão tomando.

-- Primeiro, vamos falar com o terapeuta e ver se conseguimos algo novo. Depois... -- ele abriu o porta-malas do carro e encarou Jesse com um sorriso despreocupado. --, vamos atrás de Marjorie Lewis.

-- Que tipo de coisa nova você espera conseguir com o terapeuta? -- Henderson entregou a bolsa e as pastas para Teniak, que guardou tudo no porta-malas. -- Com a Marjorie eu até entendo, mas o psicólogo? Se ele realmente atende Kyle Lewis, quanto que ele vai poder falar até ser parado pelo código de ética? -- ela parou em frente à porta do passageiro e cruzou os braços.

-- O bastante. Queremos apenas informações substanciais que possam a reforçar a seriedade do caso, já que precisaremos de recursos e, pra ser bem sincero, não quero esperar 2 semanas de novo. -- Teniak entrou no carro e destrancou a porta para Jesse.

14:22h

-- O Doutor Angionuth está terminando uma sessão no momento, mas logo vai falar com vocês, tá bom? -- calmamente disse a recepcionista da Clínica de Terapia Infanto-Juvenil aos detetives. -- Sentem-se, por favor. Fiquem a vontade. -- apontou sorridente para uma fila de cadeiras ao lado.

-- Obrigado. -- agradeceu Teniak, educadamente. Jesse acenou com a cabeça e sorriu.

Os detetives se sentaram numa distância de 1 cadeira. Teniak esticou a coluna e encostou na parede; inspirou profundamente enquanto olhava para cima; sua perna treme em ansiedade, e a mão direita descansa sobre o joelho. Embora calmo, pragmático e estoico, essa clássica postura de incômodo é natural, e faz parte do repertório emocional humano. Mesmo Teniak não incorporando-a com frequência, sua mente, no momento, é incapaz de ocultar o remorso que surge nas inquietantes lembranças da breve discussão ocorrida na sala de reuniões.

Jesse cruza as pernas e põe as mãos entrelaçadas sobre o joelho. Sua postura não é muito diferente da de Teniak, com exceção da coluna levemente torta. A respiração é um pouco mais errática que o comum; o pé esquerdo balança para cima e para baixo; os polegares mexem e remexem por entre eles; e seu olhar, profundo e quase inerte, está centrado nas mãos.

O silêncio dos detetives perdura. O 'tic tac' do relógio na parede ecoa pelo consultório; o 'blurp' em loop do filtro de água chama, frequentemente, a atenção de Teniak. Jesse abriu a boca e suspirou, prestes a falar alguma coisa.

-- Escuta, eu... -- o silêncio foi rompido. Teniak abandonou o filtro e focou totalmente as atenções em Jesse. A voz dela ecoou suavemente pelo local, mesmo estando carregada de pesar e emoção. --, eu quero pedir desculpas pelas coisas que falei. Acho que ando estressada com tudo que vem acontecendo na minha vida e... acabei descontando um pouco do peso em você. Me desculpe.

Jesse sorriu tristemente e virou a cabeça para frente, voltando a encarar seus dedos. Teniak suspirou, aliviado, abriu um sorriso e acenou com a cabeça.

-- Me desculpe também. -- ele assumiu uma postura despreocupada. A coluna foi para frente e as mãos entrelaçaram. -- É uma situação nova para mim, sabe? Eu nunca trabalhei com o FBI antes e... sempre achei que uma cidade esquecida como Summerdale não seria de grande importância para os federais. E quando algo grave acontece na comunidade, eu não consigo ficar quieto. -- encostou novamente na parede e cruzou os braços, mesclando na voz e na postura, o arrependimento com seu jeito estoico de ser.

-- Eu sei que é um pouco estranho, mas somos parceiros em pé de igualdade agora. -- Jesse inspirou profundamente e fez uma leve expressão séria. -- Vamos precisar superar nossas diferenças, se quisermos resolver esse caso.

-- É, é. Eu sei disso. Vou dar o meu melhor. -- Teniak ergueu o canto do lábio e consentiu várias vezes com a cabeça.

14:30h

Uma porta se abre a uns 14m além do corretor. Um jovem baixo, de uns 9-11 anos, sai da sala enquanto conversa com o Dr. Angionuth, que o acompanha. O papo deles é amigável e calmo, como numa discussão casual entre médico e paciente. O garoto sorri, consente com a cabeça, aperta a mão do terapeuta e caminha em direção à saída da clínica; Angio se despede alegremente e diz que espera vê-lo na próxima semana. Os detetives levantam, arrumam suas roupas formais e se aproximam do doutor. Teniak ergueu seu distintivo e começou a apresentação padrão e profissional de sempre.

-- Doutor Angionuth? Eu sou o detetive Patrick Teniak, Polícia de Summerdale, e esta é...

-- Detetive Jesse Henderson, unidade de Crimes Especiais, FBI. -- interrompeu Jesse. Teniak olhou para ela, confuso com a intromissão, mas aceitando tranquilamente.

-- Ah, sim, claro! Você é bastante conhecido por aqui, detetive Teniak. -- Angio entusiasticamente esticou a mão em cumprimento e admiração ao detetive. -- É uma honra conhecê-lo pessoalmente.

Jesse ergueu a sobrancelha, surpresa, ao presenciar esta cena e perceber que não foi cumprimentada também.

-- Senhor Angionuth, gostaríamos de fazer algumas perguntas. -- disse a detetive com firmeza.

-- O quê? Sobre o quê? -- indagou Angio, não escondendo sua surpresa.

-- Somos parceiros nas investigações do caso Julianne. -- afirmou Teniak, soando profissionalmente. -- Soubemos que Kyle Lewis esteve aqui há 2 dias atrás.

-- O Kyle? Aconteceu alguma coisa com ele? -- o terapeuta cruzou os braços, assumindo uma expressão de preocupação crescente e curiosidade.

-- Não se preocupe, nada aconteceu. Apenas queremos algumas informações que possam atualizar o caso e complementar nas investigações. -- reforçou Teniak. Sua voz, de barítono suave, foi o bastante para acalmar as preocupações de Angio, que consentiu com a cabeça e aceitou a informação do detetive.

-- Certo, vamos pra minha sala. -- ele esticou a mão, indicando o caminho para sua sala. -- Donna, se qualquer pessoa aparecer por aí, diga que fui resolver uma emergência e peça para voltar em uns 30 minutos. -- pediu à recepcionista, que respondeu com um ''Ok'' neutro.

14:32h

-- Doutor Tedros Angionuth, antes de começarmos, queremos ressaltar que esta é uma entrevista oficial com fins de pesquisa. -- alertou Teniak enquanto colocava o gravador de voz em cima da mesa. Ele sentou na poltrona do terapeuta, e Angio, na do paciente. -- A Jesse vai anotar alguns pontos importantes, mas pode relaxar que seu nome não será divulgado em nenhum momento. -- ele apertou o botão de ''Gravar''.

-- O gravador é realmente necessário? -- indagou Angio, nitidamente desconfortável.

-- Sim. Este é o protocolo padrão de toda entrevista oficial. Não podemos mudar nada. -- respondeu Teniak, encostando na poltrona e inspirando profundamente. Olhou para o terapeuta e abriu parcialmente a boca, escolhendo as palavras certas. -- O senhor é terapeuta de Kyle Lewis?

-- Sim. -- Angio respondeu sem hesitar, com rapidez e segurança.

-- Há quanto tempo é terapeuta dele? -- Teniak também é rápido e seguro.

-- 5 semanas.

-- Como o Kyle é nas sessões?

-- O Kyle é um garoto bem introvertido. Desde que o conheço, ele sempre foi muito de viver no próprio mundo. -- Angio ajeitou a posição da coluna na poltrona. -- Não é de falar muito, mas como toda criança dessa idade, ele gosta de se expressar através da brincadeira.

-- 5 semanas, certo? O ataque à Julianne ocorreu há quase 2 semanas. O senhor notou alguma mudança relevante no comportamento dele? Pré e pós-ataque.

Angio lambeu os lábios e bateu a ponta dos dedos no braço da poltrona. Sua expressão mudou um pouco. O semblante é sério; o olhar é de remorso e o sorriso carrega tristeza.

-- Ele... costumava falar mais do dia dele. -- entrelaçou os dedos e colocou as mãos no colo. -- Ele sorria bastante quando contava de uma amizade nova da escola, ou de quando a mãe colocava o sanduíche favorito dele pro café. -- Angio inspirou profundamente e fechou os olhos, tentando não cair aos prantos. -- O Kyle era um garoto feliz, mesmo que gostasse de viver no próprio mundinho, ele era feliz do jeito dele. Não era agressivo, e nem violento. Ele gostava de ajudar as senhorinhas da vizinhança; de brincar com os bonecos que tem aqui na sala. Ele... gostava de brincar com os bonecos, mas...

Angio encarou uma caixa de bonecos do outro lado da sala com um olhar triste e nostálgico. Teniak e Jesse se olharam rapidamente, curiosos. 

-- Mas o quê, senhor Angionuth? -- indagou o detetive.

-- Depois do que aconteceu em Julianne... o Kyle começou a pedir... copos de água para... afogar os bonecos. -- Angio fitou Teniak com um olhar profundo e sério. -- E começou a... dar nomes para eles. Primeiro foi Andrew, depois Mark e por fim... -- suspirou, e uma lágrima desceu. -- Kyle.

-- Ele deu o próprio nome a um boneco que depois afogou? 

-- Sim. -- Angio enxugou a lágrima e se posicionou melhor na poltrona.

-- E você percebeu mais alguma coisa anormal nele? -- Teniak se inclinou para frente, não escondendo sua curiosidade. 

-- Alguns sinais de uma depressão crônica... gerados por um estresse pós-traumático. Apatia, isolamento social, comportamentos autodestrutivos... letargia... pensamentos suicidas. -- engoliu pesado, como se estivesse tentando segurar o vômito.

-- Você o diagnosticou com depressão?

-- Não. Diagnosticar uma doença dessas requer tempo e muita análise.

-- 5 sessões não são o bastante pra isso? -- Teniak o encarou com uma seriedade intimidadora. Angio descansou as mãos nos braços da poltrona, franziu o cenho e sorriu sarcasticamente, questionando o sentido da pergunta.

-- A Marjorie perguntou a mesma coisa, e eu respondi pra ela o que acabei de falar pra vocês: essas coisas levam tempo. -- o seu tom de voz aumentou levemente, e as últimas quatro palavras receberam uma ênfase com pequenos intervalos.

-- E de quanto tempo você precisa, Doutor Angionuth? Soube que Kyle Lewis tentou tirar a própria vida ao lado da sua clínica? -- Teniak também intensificou seu tom, porém, ele não perdeu sua calma. Seu barítono suave personificou uma arma carregada, que mesmo não estando apontada para a cabeça, sua simples presença intimida e enche de medo o coração do outro. 

Jesse olhou para Teniak, preocupada com o clima tenso da conversa. Angio desfez sua expressão indignada e assumiu um rosto intimidado, nervoso e assustado, como se o tom do detetive o acusasse de algum crime.

-- Eu tô cansado de ser subestimado. Apenas fiz o que qualquer outro terapeuta faria. Não quero passar pelo risco de dar o diagnóstico errado e forçar o paciente a procurar por um tratamento que, além de provavelmente ser caro, também pode não funcionar.

-- Então por que não justificou essas suas preocupações para a Marjorie? 

-- Teniak, essa pergunta é irrelevante. -- interrompeu Jesse em tom de alerta, como um superior dando bronca. 

-- Certo, vou reformular. Doutor Tedros Angionuth, o senhor acredita que essas crises depressivas estejam atingindo os outros jovens que também sobreviveram ao tiroteio? -- o detetive encarou profundamente os olhos do terapeuta.

-- Eu não posso saber o que todo mundo tá pensando ou sentindo nesse exato momento, mas posso afirmar uma coisa com toda certeza: é impossível passar por uma situação dessas e não sofrer danos irreversíveis.

-- Você atende outros jovens da Julianne, além do Kyle Lewis? 

-- N-não, senhor. -- os olhos do terapeuta pestanejaram freneticamente por alguns segundos.

Teniak o olhou de cima a baixo e acenou várias vezes com a cabeça. 

-- Certo, acho que podemos terminar por aqui. -- ele desligou o gravador e guardou suas coisas na maleta. Jesse suspirou aliviada e levantou, também pondo seus objetos na bolsa.

-- O quê? Mas já? -- Angio olhou confuso para os detetives. 

-- Sim. O senhor nos deu informações o bastante. Agradecemos pelos seus serviços, doutor Angionuth. -- Teniak estendeu a mão para o terapeuta, que o encarou com receio por alguns segundos antes de cumprimentá-lo. A tremedeira era notável, um visível nervosismo aflorado. -- A propósito, poderia nos passar o endereço dos Lewis?

-- Vocês podem pedir algo assim? 

-- Podemos. -- a seriedade das palavras de Teniak pesou de forma indubitável em Angionuth, que apenas olhou de relance para Jesse e concedeu a informação. -- Tenha um bom dia, doutor. 

14:47h

Dentro do carro, os detetives percorrem o caminho em direção à casa dos Lewis em absoluto silêncio, sem mesmo trocar olhares. Jesse parece profundamente pensativa e Teniak, focado na estrada com uma expressão austera e séria. O clima da tarde em Summerdale é agradável para quem está acostumado com temperaturas de 21° - 26° C, e o ar não apresenta tanta umidade, embora algumas nuvens de chuva estejam começando a se formar ao norte. A detetive olhou para frente e descansou o braço na janela da porta.

-- Assustar ele era mesmo necessário? -- indagou com curiosidade e leve desapontamento na voz.

-- Ele é um terapeuta que não sabe controlar as emoções. Irônico, não? Viu como ele ficou desconfortável com a presença do gravador? -- perguntou, claramente desviando o assunto de Jesse.

-- Você fez uma simples roda de perguntas virar um interrogatório. -- ela insistiu, olhando fixamente para Teniak.

-- Agora que levantamos a hipótese de que pode existir uma organização envolvida, achei que seria melhor enxergar algumas pessoas com suspeita. 

-- E com quem mais você pretende fazer isso? Marjorie Lewis, uma mãe que quase perdeu o filho? -- Jesse cruzou os braços e olhou para Teniak com deboche.

-- Mas é claro que não, né? Eu não sou tão filho da puta assim. E o caso do terapeuta foi diferente! -- ele aumentou um pouco o tom de voz e reforçou a expressão séria.

-- Diferente como? 

-- Diferente porque eu fui diagnosticado com depressão em apenas 2 sessões. -- Jesse, quase que instantaneamente, fez um rosto surpreso que rapidamente alternou para tristeza e arrependimento. Teniak baixou o tom e suspirou. -- Pode ser que ele apenas seja um terapeuta ruim, mas o garoto tá com ele há mais de 5 semanas e na minha experiência e mais sincera opinião: quase se matar é mais que o bastante para dar um diagnóstico, e isso mostra também a ineficácia da terapia dele.

Jesse apenas olhou para frente e inspirou profundamente.

-- Você está bem? -- ela calmamente perguntou.

Teniak balançou a cabeça em afirmação e deu um leve sorriso forçado.

-- Estou sim.

14:53h 

Bakerville St. N° 358. Os detetives estacionam o carro em frente a casa dos Lewis e descem. Na sacada, eles enxergam as costas de uma mulher de cabelos louros e médios, com os braços levemente enrugados estendendo algumas roupas.

-- Senhora Lewis?! -- gritou Jesse, chamando a atenção da mulher, que se virou e encarou a dupla com indiferença. Eles se aproximaram da casa. -- Eu sou a detetive Jesse Henderson, da divisão de Crimes Especiais do FBI. 

-- Detetive Patrick Teniak, da polícia de Summerdale. -- ele acenou e sorriu educadamente.

A mulher desceu os degraus e parou em frente aos detetives.

-- Quê que os federais tão fazendo em Summerdale? -- indagou em tom de desdém. 

-- Senhora Lewis, apenas queremos fazer algumas perguntas para as investigações do Caso Julianne. -- explicou Teniak.

-- Mais perguntas? Como se só o jornal não fosse o bastante! -- Marjorie riu debochadamente e se virou em direção à casa. -- Vão encher o saco do cão, federais. 

Jesse deu um passo à frente.

-- Deve ser frustrante não receber um diagnóstico pro filho, mesmo depois de quase perdê-lo. -- disse a detetive Henderson. Marjorie parou e levemente tornou a cabeça para o lado.

-- Não seja condescendente comigo, dona federal. Não tem como vocês de Washington serem capazes de entender o sofrimento da gente. -- afirmou em baixo tom de voz.

-- Sei que não dá pra medir a dor de perder alguém, muito menos quando essa pessoa quase morre em seus braços. -- calorosamente disse Jesse, entoando equilíbrio entre tristeza e compaixão.

-- O meu filho é tudo pra mim. -- Marjorie se virou. O rosto esboça melancolia, e o olhar demonstra remorso. -- Depois que tirei ele daquela linha de trem, eu só conseguia pensar em tudo que poderia ter feito pra evitar que aquela situação tivesse acontecido. É tipo um peso na consciência. Um puta de um peso na consciência. -- e finalmente, uma lágrima escorreu.

-- Podemos entrar pra conversarmos melhor, senhora Lewis? -- perguntou Jesse.

-- Por favor, chame de Marjorie. -- ela esfregou a mão pelos olhos e assoou o nariz. Fez um sinal de afirmação com a cabeça. -- Claro. Podem sim.

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