II - Se as Aves Voam Assustadas...

Todos sentem o medo delas. Quando o ar esfria e as correntes de vento se transformam em presságios de chuva, corremos para casa, abraçamos os nossos filhos e fechamos as janelas. O pressentimento é algo estranho. Uma sensação funcional como um alerta para tempestades que nos leva a, instintivamente, fazer algo a respeito. Alguns ignoram, outros se protegem e uma minoria tenta ajudar quem se recusa a crer; se mais pessoas fizessem parte deste pequeno grupo de esforçados que tentam trazer a diferença, aposto que muitas tragédias poderiam ser evitadas -- como a que ocorreu em Julianne.

No dia 12 de Setembro de 1991, às 9:01h, a Escola Elementar Eleanor Julianne, em Summerdale, no Missouri, foi invadida por três adolescentes armados que dispararam contra centenas de crianças e pré-adolescentes, matando 17 e ferindo outras 33. Logo após o massacre, às 10:01h, os assassinos se suicidaram simultaneamente. Cerca de 2 horas depois, as autoridades locais descobriram escritos com sangue na parede de uma das salas de aula que formavam a seguinte mensagem: "That's our Real Side" (este é o nosso verdadeiro lado). O caso rapidamente ganhou notoriedade e impacto tanto em território nacional, quanto na pequena cidade de Summerdale. A população local permanece em profundo choque, numa emocionante e constante luta pela rigidez burocrática nas políticas armamentistas do porte legal de armas. O ar de mistério e indignação paira sobre as residências de Summerdale e o caso continua em aberto, pois aqui, há uma pergunta cuja resposta tem de ser encontrada: Se as aves voam assustadas, é apenas por que o inverno dá as caras? Ou por quê um tornado avassalador prestes a varrer casas e florestas inteiras para fora do mapa está a caminho?
De qualquer forma, quando nossos pressentimentos ruins se manifestam em tragédias, aprendemos a jamais subestimar o potencial da vida quando o assunto é virar as coisas de ponta-cabeça. Naquela fatídica manhã sombria de 12 de Setembro, a cidade de Summerdale aprendeu a não ignorar as aves.

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23 de Setembro de 1991, 11:14h.

O ar apresenta baixa umidade, os termômetros batem 24° C neste outono e não há nuvens no céu. O clima perfeito para ir ao cinema, almoçar com os colegas e tomar um bom café -- é o que o psicólogo infantil, Dr. Angionuth, adoraria estar fazendo neste momento, mas o desafio o chama, e este tem o nome de Kyle Lewis, um garoto introvertido e traumatizado de 8 anos que presenciou e sobreviveu à maior tragédia ocorrida em 4 anos na cidade de Summerdale: o Massacre de Julianne.
Angio está sentado na poltrona de sua sala, olhando o pequeno Kyle brincar de afogar bonecos masculinos. O olhar do doutor é focado e transmite alguns sinais sutis de tristeza e dó, ao mesmo passo que o rosto da criança não tem um sorriso ou uma expressão sequer de felicidade, o que é estranho para alguém nessa fase de tantas brincadeiras e amizades. Angio cruza as mãos e se inclina um pouco para frente.
-- Do que está brincando, Kyle? -- perguntou num tom suave e calmo. O pequeno lança um olhar vazio e quebradiço, como se fosse chorar no momento exato em que falasse. -- A água tá meio morna, não acha? -- apontou para o copo d'água sobre mesa.
-- Um pouco. -- respondeu Kyle, afundando ainda mais o corpo de um boneco.
-- Ele consegue respirar embaixo d'água?
-- Não.
-- Então... -- Angio parou e refletiu, procurando as palavras certas --, o que ele está fazendo?
-- Tá morrendo. -- afirmou Kyle, ainda vazio e quebradiço.
-- Por quê?
-- Porque sim.
O psicólogo abriu parcialmente a boca, claramente dividido entre preocupação e indignação. A saliva descia pela sua garganta como um peso, e a perna tremia em ansiedade.
-- E qual que é o nome dele? -- questionou tentando esconder sua apreensão para conseguir soar naturalmente.
-- O nome dele é Kyle. -- o pequeno nem hesitou. Suas palavras já tinham um som vazio antes, mas, neste momento em específico, elas soaram como uma certeza inquestionável e o Dr. Angionuth sabia disso.
-- Kyle Lewis?
-- Só Kyle.
O psicólogo inspirou profundamente e se encostou na poltrona, tentando aliviar a ansiedade. Sua expressão foi, aos poucos, se tornando mais branda, e seus intensos batimentos acalmaram. Fixou o olhar para o relógio e percebeu que já haviam passado 7 minutos após o fim da sessão.

12:14h

-- Senhora, eu vou pedir para que você preste o máximo de atenção possível no Kyle. -- disse Angio à mãe de Kyle, Marjorie, que está parada frente à porta do consultório.
-- O quê? Mas por quê? -- ela cruzou os braços e formou uma expressão confusa.
-- Não posso falar sobre as coisas que acontecem durante as sessões, mas... -- Angio baixou a cabeça rapidamente --, o seu filho apresenta alguns sinais de depressão crônica.
Marjorie abriu a boca e elevou sua postura, nitidamente impactada.
-- Depressão?! Isso é sério? Já é a quinta sessão dele aqui, e você demorou 5 semanas pra me contar isso?
-- Essas coisas levam tempo, senhora Marjorie.
-- Tempo o bastante para uma tragédia acontecer com ele. -- Angio colocou as mãos no bolso do paletó e mordeu suavemente os lábios.
-- Vamos cuidar muito bem do Kyle, tá bom? Eu prometo.
-- Quero ver essa sua psicologia funcionando, entendeu? -- a mulher olhou Angio de cima a baixo com desprezo, e então saiu do consultório emanando impacto a cada passo.
Marjorie fez todo o trajeto pelo estacionamento até o carro mantendo a expressão irritada, que debandou para desespero alguns segundos depois de perceber que seu filho não lhe esperava no banco de trás.
-- KYLE?! -- ela olhou e girou o corpo para todos os lados, em aflição. Seus gritos repetidos clamando pelo filho chamaram a atenção do Dr. Angionuth, que saiu do consultório às pressas para ajudar.
-- O que aconteceu?!
-- O KYLE SUMIU!
Angio aproximou e se inclinou para pôr a cabeça dentro carro.
-- Merda. -- ele se afastou e saiu correndo em direção ao consultório --, eu vou chamar ajuda!
Marjorie correu até a calçada e girou a cabeça novamente, analisando desesperadamente todos as direções possíveis, quando parou, fixou o olhar, abriu a boca e começou a tremer, como se o coração estivesse prestes a sofrer um ataque ao encontrar seu filho parado nos trilhos do trem a uma centena de metros dali. Naquele momento, todo o tempo congelou para Marjorie; os pensamentos conflitantes cessaram, os demônios causadores do desespero simplesmente calaram a boca, e o corpo da mulher se moveu automaticamente ao ouvir a chaminé do trem ecoar como um grito ensurdecedor demoníaco.
-- Kyle! Kyle! -- e ela correu. Correu enquanto ignorava o fato de que sua vida estava prestes a desmoronar. Correu tendo ciência de que nada mais neste mundo importava tanto quanto seu filho. Sua mão esticou em sincronia com os ponteiros da morte, e os pulmões quase pararam ao puxar o garoto para fora dos trilhos.
-- Kyle! Meu Deus! Meu filho...
Marjorie abraçou seu pequeno com toda força do mundo e desabou em lágrimas que representam alívio e desespero. Angionuth, juntamente com todos do consultório, observam imóveis e ofegantes a situação. Kyle demorou para retribuir o abraço, então começou a chorar desenfreadamente. Para ele, aquele momento não representava os efeitos de uma crise depressiva, mas sim, a revelação de algo maior e profundo que reside em seu ser.

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