Jogando xadrez

— Rigel, você já tem dez anos, preciso te ensinar uma coisa importante. A vida é um jogo de xadrez, os melhores estrategistas são os que vencem o jogo, e você precisa aprender as estratégias com um bom jogador, como eu — disse meu pai.

Ele trabalha num enorme prédio espelhado na cidade vizinha, já fui lá um dia, é bem grande. Ele tem uma sala maneira, com uma cadeira de couro confortável, e tudo o que faz é digitar coisas importantes e mandar nas pessoas pelo telefone, eu adoraria ligar para a secretária pedindo que trouxesse meus rocamboles preferidos, mas meu pai pediu café. Ele disse que trabalhou muito para conseguir tudo o que temos, todo o dinheiro vem da empresa que construiu.

Esse homem falando comigo deve ser um dos melhores estrategistas para conseguir tantas conquistas, por isso ouço atentamente.

— Filho, primeira regra de um bom estrategista. Não confie em ninguém além de sua família, as outras pessoas podem te manipular, enganar e te levar para uma armadilha que fará com que perca tudo — essa foi uma das regras ditadas por ele.

Registro aquilo em minha mente, depois escreveria em um caderno, para usar essas regras valiosas depois. Mas surge uma dúvida, e pergunto:

— Pai, não posso confiar em ninguém? Nem mesmo em Gustavo?

Ele responde:

— As pessoas são falsas, filho. Amizade e amor não existem de verdade, apenas sua família te ama. Talvez seu amigo esteja te manipulando, então não confie nele. Segunda regra, pareça ser amigável e bondoso sempre, assim irão confiar em você, e terá uma oportunidade de usar essa confiança a seu favor.

Fiquei triste em saber que amizades não são reais, pelo menos aprendi isso antes que fosse tarde demais. Ele continua:

— Terceira regra, jamais comece a manipulação por alguém acima de você, identifique pessoas inferiores e manipule elas. Conforme for melhorando, pode tentar fazer com outras pessoas.

Fiquei ainda mais curioso, aquelas dicas eram interessantes e me fariam ser um homem incrível como meu pai.

— Pai, como faço essa tal manipulação? É parecido com movimentar as peças do xadrez? — Perguntei.

Meu pai sorri e diz:

— Sim, é parecido. Você derruba peças menores, os pontos fracos mais fáceis de dominar, aí vai avançando até derrubar o rei, que é a peça mais importante. Logo te ensinarei mais sobre isso. Precisa dormir agora.

Essa lembrança é um pequeno trecho do meu passado, desde então evoluí muito na arte de fingir ser algo que não sou, tanto que me tornei um dos melhores alunos de teatro. Aprendi que o amor e a confiança não existem de verdade, são armadilhas que servem para nos capturar, pessoas usam essas manipulações sentimentais para escravizar os outros e conseguir conquistar seus próprios objetivos sem trabalhar tanto. A famosa *síndrome de Estocolmo, em que a vítima se apega ao agressor, existe com um propósito. Sua existência serve para que a classe dominante continue no poder, enquanto o resto, os inferiores, concordam em ser dominados, porque amam os líderes, apesar deles não serem tão bons assim.

É melhor parecer amigável e confiável para seus inimigos, porque a amizade é uma fraqueza, quando um inimigo se torna seu "amigo", fica mais fácil destruí-lo, só precisa esperar o momento certo para puxar a corda da armadilha e prendê-lo de forma que fique impossível sair.

Costumo refletir bastante em meio a um silêncio concentrado, às vezes ando por aí com livros de filosofia ou cadernos de anotações. Não sou exatamente um aluno popular, me acham estranhamente quieto e calado, não entendem que falar demais dá permissão para te manipularem usando suas próprias palavras, eu falo o necessário, e isso me parece suficiente.

Estou pronto para o primeiro dia de aula no início do ensino médio, nunca entenderei o motivo de ficarem preocupados com primeiros dias, pois para mim é uma oportunidade de causar uma boa primeira impressão. Vesti uma blusa estilo polo branca, uma calça jeans e sapatênis, meus cabelos loiros estão perfeitamente alinhados, dentes brancos escovados, mochila organizada.

Não conheço os professores do ensino médio, e ser um aluno exemplar é um excelente meio de conseguir confiança, assim tenho mais chances de manipular peças nesse jogo da vida e conquistar meus objetivos. Desço as escadas, na sala de jantar minha família está ao redor da mesa, minha mãe me abraça e diz:

*Guten morgen, sohn!

Eu respondo:

— Bom dia, mãe. Cuidado pra não bagunçar meu cabelo, não acho que os professores vão confiar em um aluno mal arrumado.

— Você se concentra muito nisso, tente relaxar um pouco. As pessoas gostam de você, não se preocupe — ela diz com um sorriso no rosto.

Ah, se ela soubesse a verdade, ficaria decepcionada. As pessoas não gostam de mim, apenas os professores, coordenadores e direção gostam, isso não significa que sou popular. Me despeço de todos os avós e pais, entro no carro e o motorista me leva à escola.

Assim que chego à escola, vejo Nicolly vendendo bolo para arrecadar dinheiro para um de seus projetos. Garota tola, sabe que aqui não é uma dessas escolas que parecem lixão do governo, é proibido vender coisas no Colégio Elite. Quando estou indo falar com ela, aparece um garoto que me faz pensar em outro plano.

Ele era perfeito para manipular, um inferior, uma presa indefesa prestes a ser caçada por um predador. Identifiquei o peão, peça fraca, que anda sempre em frente, seus movimentos são limitados, apenas uma casa de cada vez no xadrez. Seria fácil derrubá-lo. Hora da primeira parte do plano, fazer amizade com o inválido até ele confiar totalmente em mim.

— Ei! Você é novato? Nunca te vi por aqui — eu disse.

O garoto olhou para baixo e sussurrou algo, tão baixinho que nem ouvi. O que custa responder direito? Eu estava sendo educado justamente com alguém que não merece esse tipo de tratamento, e ele parece nem se importar, tem um péssimo comportamento. Mas decidi continuar a atuação, perguntei:

— Você está bem? Posso ajudar em alguma coisa?

Ele estava com uma expressão confusa no rosto, como se não tivesse entendido o que eu disse. Mas parece ter me ouvido perfeitamente bem, pois respondeu:

 — Não tô a fim de conversar, então me deixe em paz.

Sua *voz era meio diferente, como se falasse um sotaque de algum lugar estrangeiro, embora parecesse ser brasileiro. Mesmo com o seu pedido de paz, decidi continuar:

— Por que não quer conversar? Eu posso te mostrar melhor a escola, apresentar umas pessoas legais, podemos ser amigos.

O garoto parou sua cadeira de rodas e disse:

— Tem certeza que quer falar comigo? Olha, eu sou um cadeirante, nerd, esquisito e considerado maluco. Você nem sabe o que me trouxe até aqui. Acho que não vai querer estragar sua reputação, só estou avisando.

Ele tinha razão, eu não queria destruir minha reputação. Queria apenas usá-lo, assim que o vi, já estava planejando meios de humilhá-lo e me sair melhor. Só que dizer o que eu realmente pensava traria problemas, então menti:

— Não me importo com reputação, tudo o que quero é fazer amizade com alguém diferente como você. Odeio preconceitos, todos deveriam ser tratados igualmente. Se formos amigos, irei te defender. Qual é o seu nome?

Ele olhou para mim, parecia estar me analisando, fiquei com medo que descobrisse minha real intenção. Mas sua resposta trouxe um sentimento de alívio:

— Meu nome é Miguel. Pode me mostrar a escola depois, faltam poucos minutos para começar a aula. Sabe onde fica a sala 105?

Apontei para uma porta na ponta do corredor, ficaríamos na mesma sala. Disse a ele:

— Prazer, Miguel. Estamos na mesma sala, e meu nome é Rigel.

As aulas acabaram, acho que Miguel confia em mim, emprestei uma caneta, sorri, fui amigável, a armadilha estava quase pronta, só precisava ter paciência, atraí-lo para o local certo, enganá-lo, e assim mais uma peça cairia. Ainda vai demorar uns dias, talvez meses para conquistar o objetivo final, mas meu pai ensinou a não desistir e ser firme.

Na saída encontrei Gustavo, não estudamos na mesma sala pois ele é dois anos mais velho, está no último ano do ensino médio. Como as amizades de verdade são destrutivas, apesar de chamá-lo de amigo, não existe qualquer sentimento ali, na verdade eu o considero meu servo fiel. Ele era útil, servia muito bem como distração para aqueles momentos de tédio, além de ajudar com minhas tarefas escolares e sempre concordar com meus pensamentos. Se aproximou, dizendo:

— Hoje à noite tem reunião na sua casa, trouxe uns jogos aqui na mochila, podemos jogar por horas, e se tiver lição de casa, eu passo as respostas. Peraí, você sorriu para aquele *inválido?

— Não, você me conhece. Sabe que acho pessoas defeituosas nojentas, jamais sorriria para aquele cara — respondi.

De repente surge Nicolly, uma garota baixinha, com seus cabelos lisos castanhos, olhos puxados, testa grande, vestidinho florido infantil demais para sua idade, e galochas vermelhas que com certeza não combinam com a roupa que está usando. Ela sorri para mim, segurando uma bandeja com pedaços de bolo de chocolate. Maldita inválida! A *saumench insistente que nunca desiste, não importa o que eu faça.

Reviro os olhos e digo de maneira rude, esperando que vá embora:

— Já falei que não vou comprar isso! Aliás, deve estar com um gosto horrível, já que foi você quem fez. Vou contar para o diretor que você continua vendendo coisas na escola.

Ela parou de sorrir, me encarou com os olhos semicerrados e lábios franzidos, dizendo:

— Agora você não pode reclamar mais, eu pedi autorização para o diretor. Ele adorou a ideia de vender coisas para arrecadar dinheiro para o projeto "Amigos Peludos" e ainda comprou dois pedaços de bolo. Aliás, você não é um cara muito legal, Rigel. É horrível da sua parte não doar dinheiro para ajudar esses pobres animaizinhos abandonados! E eu sei que você tem muito dinheiro, isso é muito egoísta!

Sua voz é insuportável, e ela vive corrigindo as pessoas, dizendo o que é legal e o que não é, além de ser uma fofoqueira muito chata. Mas não é apenas isso que me dá ânsias. O que realmente me faz odiá-la é o fato de ser uma garota com síndrome de down.

— É horrível da minha parte, né? Muito egoísta? Pouco me importa a opinião de uma garota como você, pode dizer o que quiser de mim — respondi.

Lágrimas se formaram no canto dos seus olhos, talvez eu tenha sido rude demais, porque ela saiu correndo e as lágrimas escorreram por seu rosto, também deixou uns pedaços de bolo cair da bandeja no meio do caminho. Mas esse era o meu objetivo, por isso dei um sorrisinho satisfeito com o que acabou de acontecer.

O motorista havia chegado, então eu e Gustavo entramos no carro.

Logo estávamos em casa, uma mansão branca de quatro andares, com enormes janelas envidraçadas que dão vista para o jardim. A mansão é decorada com um majestoso jardim de flores coloridas que se destacam em meio à branquidão da estrutura, uma fonte de mármore branco jorra água. Por conta do dia ensolarado, vejo um arco-íris se formar por conta da reflexão da luz na água transparente. No fundo tem uma piscina, e mais para trás tem um labirinto feito de plantas. Eu adorava brincar naquele labirinto quando criança, fazíamos caça ao tesouro pirata todos os meus aniversários, caça aos ovos de chocolate na páscoa, caça aos doces no dia das bruxas e caça ao papai Noel no Natal. Sinto saudades daquele labirinto, mesmo não sendo mais um garotinho.

Fui para meu quarto, com Gustavo logo atrás. Joguei os livros escolares em cima da escrivaninha, liguei o videogame e falei:

— Vamos jogar. Que jogos você trouxe? Depois me passa as respostas das tarefas, não esquece.

Depois de uma tarde inteira de jogos, conversas, e uma guerra de travesseiros, além das tarefas para casa, o alarme do meu celular tocou. Havia acabado de dar o horário de se preparar para a reunião noturna, então fui vestir meu uniforme. 

Uma camisa branca com calça preta, um broche e uma braçadeira vermelha, ambos com a suástica. Ah, como seria maravilhoso se todos os arianos se levantassem e tomassem o que é seu de direito! O símbolo da superioridade ariana não deveria ficar escondido apenas em nossos broches e braçadeiras, deveria ser espalhado por todos os cantos do mundo.

Mas meu pai me ensinou que seremos vistos como vilões, monstros, apenas por dizer a verdade. Existem superiores e inferiores, só que muitos não aceitam isso. A natureza é assim, os mais fortes sobrevivem, passam as características adiante e evoluem, a teoria da evolução tá aí pra comprovar isso. Pena que muitos negam a realidade e levam nós a ter que esconder isso em um maldito porão.

Desço as escadas, hoje não teremos reunião da juventude hitlerista porque muitos jovens saíram, suas famílias achavam perigoso demais. Bando de covardes, parece que não valia a pena defender esses ideais que trazem nossos direitos! Um dia irão se arrepender.

Assim, no meio de um pequeno grupo de pessoas com uniformes semelhantes, digo orgulhosamente:

— Heil, Hitler!

Pena que um homem tão nobre está morto, mas fazemos o cumprimento em respeito à memória dele. Adolf Hitler, o nosso *führer, o herói que morreu tentando nos salvar.

****GLOSSÁRIO****

* síndrome de Estocolmo é o nome dado a um fenômeno comportamental, caracterizado por simpatia, apego, sentimento de amizade ou amor da vítima para com o agressor, assaltante, ou estuprador. O nome da síndrome veio após um caso famoso de assalto a um banco em Estocolmo, na Suécia, durante o julgamento dos criminosos, as vítimas defenderam os assaltantes porque ficaram horas no banco e chegaram a conversar amigavelmente.

* Guten morgen, sohn! ("bom dia, filho!" em alemão)

* Miguel tem paralisia cerebral, dificuldades de fala é comum nessa condição, tratamentos fonológicos auxiliam para uma dicção mais compreensível, mas é muito difícil ter uma recuperação 100%.

* Inválido foi um termo utilizado no passado para se referir a qualquer pessoa com deficiência, mas hoje é considerado preconceituoso, e não deve ser usado mais.

* Saumench ("porca imunda" em alemão, termo usado para humilhar uma pessoa do sexo feminino, na Alemanha nazista era utilizado para se referir às mulheres negras, judias, deficientes, comunistas ou ciganas)

* Führer ("líder" em alemão, termo muito utilizado para se referir a Hitler, ou figuras de autoridade)

Oiii, meus viajantes espaciais!

Parece que Rigel não é tão confiável assim, né?

E aí? Como alertar Miguel?

Gostaram da Nicolly? Logo vão conhecer ela melhor!

Neonazismo? Como assim? Que loucura! Isso existe no Brasil?

Uma coisa que aprendi é que nesse gigantesco Brasil tem louco pra tudo, incluindo grupos neonazistas escondidos por aí. Já imaginou que talvez aquele seu professor da escola ou o colega de trabalho que sempre te cumprimentou educadamente pode estar participando de reuniões clandestinas noturnas?

Na mente complicada de Rigel, ele está certo em agir assim. Para ele, Hitler realmente é um herói. Isso o torna um personagem complexo, o fato de fazer coisas erradas acreditando estar correto. 

Rigel é diferente dos outros adolescentes de quinze anos porque costuma pensar muito em estratégias e refletir sobre assuntos filosóficos, então se preparem para viajar nessas reflexões malucas de um personagem que não sabe que é um vilão.

Cada personagem é de um universo diferente, com suas próprias experiências.

Vocês acabaram de conhecer o universo de Rigel. Preparados para viajar por outros universos e conhecer novos personagens? Se sim, entrem logo no foguete!

Atenção! Neonazismo é crime! Denunciem!

Beijinhos astronômicos a todos!

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