A silenciosa colecionadora de cores

Uma tela em branco, o vazio infinito, o vácuo, o nada esbranquiçado e triste. Imagino que era assim antes de o universo existir, exatamente igual a essa tela apoiada em um cavalete que estou encarando nesse exato momento.

Usando um lápis prendo meu cabelo num coque, pego um pincel, uma paleta, e tintas em bisnagas de várias cores. Mãos à obra, é o que penso.

O pincel desliza suavemente sob controle de minhas mãos, misturando os diferentes tons de tinta e formando cores agradáveis na paleta. Agora é hora de criar algo no meio desse nada, e a primeira coisa a surgir quase que magicamente é um lindo céu azul-celeste.

Continuo pintando, minhas mãos criam um campo com um belo gramado esverdeado e delicadas flores amarelas e laranjas esparramadas aqui e ali. Um clima primaveril, um lugar que trás a sensação de liberdade, a vida floresce, tudo é perfeito. Abro um leve sorriso, esse sentimento de que tenho o poder para criar coisas incríveis é algo muito agradável.

Enquanto admirava minha pintura, senti algo tapando minha visão, comecei a rir, eu sabia que era ele. Tirei suas mãos de cima dos meus olhos, deixei o pincel e a paleta numa mesinha do lado e **sinalizei:

Papai, eu sei que sempre é você quem faz isso. Então sempre irei acertar quem é, assim perde a graça de adivinhar a pessoa

Ele olhou para mim com um sorriso no rosto, sinalizando:

Sua mãe também costumava dizer isso

Sim, eu sabia disso. Papai busca fazer aquilo que mamãe gostava de fazer, ela adorava piqueniques no parque, então fazemos isso todos os finais de semana. Ela amava ler e isso levou papai a querer ficar sempre lendo algum livro. Eu só queria que ele fizesse algo por escolha própria e não porque minha mãe faria daquele jeito, mas isso raramente acontece.

Papai começou a acariciar meus cabelos ruivos, depois olhou para a pintura que estava atrás de mim, se afastou e sinalizou:

Acho que você quer terminar de pintar, então vou continuar lendo um livro

Dei um abraço e logo depois ele saiu, deixando a porta aberta. Tinha certeza que meu pai estava por perto, sempre alerta para qualquer possível perigo. Decidi ignorar isso e continuar meu trabalho.

Agora deslizava em tons marrons, cores amadeiradas e comumente associadas ao clima outonal, e assim havia formado das minhas próprias mãos um balanço de madeira, desses que eu costumava brincar quando ia no parque.

Ah, um quadro tão lindo, que com certeza faria outras pessoas relembrarem a infância e sorrirem. Mas eu encarei aquele balanço com um olhar de ódio, a raiva se acumulava em mim.

Deixei as emoções me guiarem, e isso levou a tons mais quentes, alaranjados com vermelho e amarelo. O balanço logo ficou em chamas, fiz uma fumaça cinzenta que subia na direção do azul-celeste e agora o céu já não estava mais tão agradável. Umas poucas flores foram alvo de algumas faíscas do fogo ardente, e uma parte do gramado logo abaixo do balanço também foi queimado.

Aquele momento estaria ali, eternamente imortalizado para todo o sempre, parado no tempo, a não ser que a pintura seja destruída. Ao olhar para minha obra as lágrimas escorreram.

Ás vezes criar algo pode ser doloroso e difícil, ainda mais quando você coloca um pouco de si ali.

Já é de manhã, acordei com os primeiros raios de sol que penetravam pela janela, fui ao banheiro lavar o rosto e olhei para meu reflexo no espelho.

Feliz aniversário Bianca

Foi o que sinalizei para mim mesma, sorrindo. Peguei meus cabelos, fazendo penteados engraçados, ri e mais uma vez sinalizei:

Você é linda, amo esses cabelos vermelhos

Beijei o espelho, e para minha completa vergonha, papai havia aparecido ali na porta. Ele estava rindo, começou a arrumar meus cabelos num penteado fazendo tranças do lado e deixando o restante solto, depois sinalizou de modo que eu pudesse ver suas mãos pelo espelho:

Filha, você é linda igualzinha sua mãe. Feliz aniversário

Troquei meu pijama por um vestido verde-claro de tecido leve, e peguei um chapéu porque sabia que iria ficar um tempo no sol. Meu aniversário significa passeio no cemitério, bolo de baunilha com morango e buquê de rosas na cor branca.

Entro no carro, estou animada mesmo sabendo que será um aniversário como outro qualquer. Papai começa a dirigir, olho as paisagens ao redor, vejo vacas pastando, árvores, flores, depois chegamos na zona urbana e começaram a surgir lojas, casas uma do lado da outra, até que finalmente chegamos ao cemitério.

Andamos entre vários túmulos, alguns com os jazigos envelhecidos, meio quebrados e tomados pelo musgo, outros com jazigos novos de mármore trabalhado e com detalhes extravagantes. Com exceção dos mortos que descansam eternamente, papai e eu éramos os únicos vivos ali.

Paramos no túmulo de mamãe, sentamos no gramado em um espaço vago ao lado, e começamos a comer os bolos de baunilha com morangos, bolos esses que mamãe adorava comer e que papai costumava fazer em ocasiões especiais para ela.

Pegamos o buquê de rosas brancas, muito semelhante ao que mamãe usou em seu casamento e colocamos em cima de seu jazigo. Olhei para papai, ele estava chorando, abracei-o e não sinalizei nada, nem mesmo algum consolo. Um abraço já diz o suficiente.

Hoje completei quinze anos de idade. Oito longos anos desde que mamãe morreu.

Papai olhou para mim, eu sabia que ele se esforçava para controlar as lágrimas, pois ele deu um sorriso forçado e sinalizou:

Filha, posso dançar com você?

Assenti levemente com a cabeça, mamãe adorava dançar e papai finge que dança com ela desde sua partida. Eu girava e sentia o vento balançar meus cabelos, as folhas das árvores caírem em minha cabeça, o sol aquecendo minha pele, uma sensação de paz e tranquilidade.

Até que a dança acabou e eu sabia que era hora de ir para casa, como acontece em todos os meus aniversários. Olhei para papai, sinalizando tranquilamente:

Papai, a mamãe estava conosco, eu senti a presença dela. Não chore, ela deve ter ficado feliz com nossa visita.

Ele sorriu para mim, arrumou o chapéu que estava meio torto em minha cabeça, e mexeu a boca devagar. Eu sabia o que ele havia dito, mesmo sem ouvir som algum. Ele disse:

_ Eu te amo, querida.

Saímos do cemitério, achei que iria para casa, mas o carro havia seguido para outra direção e não tinha como sinalizar perguntando para onde estávamos indo.

Até que paramos na frente de uma papelaria, fiquei pensando se precisava de mais materiais para minhas pinturas, mas até onde eu sei já tenho mais do que o suficiente. Papai falou algo com uma atendente, alguns minutos depois ela entrou por uma porta e voltou segurando uma caixa de presente, com embrulho em papel brilhante e fita colorida.

Papai me entregou a caixa de presente. Isso é estranho, meu aniversário já não está igual ao que acostumei, ele não sinalizou nada, só entrou no carro.

Eu não abri a caixa, apenas fiquei esperando suas ordens, alguma explicação, estava tão confusa.

Algum tempo depois chegamos em nossa casa, papai sentou na poltrona da sala e sinalizou:

Filha, lembra que eu falei ontem que ia no mercado e deixei você com a professora?

Olhei, aguardando que sinalizasse algo mais, até que ele continuou:

Fui à papelaria e comprei isso pra você. Sabe, vai precisar disso agora que as coisas vão mudar

As coisas vão mudar? Depois de oito anos vivendo nessa vida monótona e chata, presa numa gaiola confortável e sem conhecer o mundo como ele realmente é, mudança parece algo praticamente impossível de ocorrer.

Abri o embrulho. Era difícil acreditar. Isso é pra mim? Onde eu iria usar aquilo?

Mochila, muitos livros, um caderno enorme, estojo. Gesticulei rapidamente:

Papai, eu vou para a escola?

Ele sorriu e confirmou com a cabeça, a confirmação de que um sonho de anos finalmente se realizaria. Pulei de alegria, abracei, beijei seu rosto, levei os presentes para meu quarto.

Sim, eu estava muito contente, minha alegria era imensa.

Mas deitei na minha cama e comecei a pensar, olhando para o teto. Parece bom demais para ser verdade, mesmo que eu vá para uma escola, papai vai dar um jeito de ficar de olho em mim e me proteger, isso é uma certeza.

Sentei, e olhei para a pintura que havia feito há alguns dias atrás. Eu só quero ter uma vida normal como qualquer outra garota de quinze anos. Isso é pedir muito? Para o destino, parece que é pedir demais.

Cansei de estudar em casa com professores particulares, de nunca ter privacidade, de ter que deixar cada porta aberta com exceção da porta do banheiro, de estar sempre sob os olhos vigilantes e cuidadosos do papai, e principalmente dessa neura de fazer tudo do jeito que a mamãe gostava. Cansei de ser apenas uma criança. Cansei de tudo isso.

Mamãe partiu, ela não está mais aqui, foi embora há oito anos atrás, evaporou, deixou de existir, foi pro céu, virou estrela, morreu, faleceu, bateu as botas, caiu na tumba, dormiu eternamente. Enfim, qualquer coisa que lembre a palavra "morte".

E eu queria poder queimar todas essas coisas que estou cansada e que não quero mais, exatamente como o balanço da pintura é queimado. Mas não dá.

Peguei o quadro e o escondi no vão embaixo do guarda-roupa, não quero ficar olhando mas também não tenho coragem de destruir minha obra.

Mal podia esperar para ir à escola. Alô mundo, aqui estou eu.

A silenciosa colecionadora de cores finalmente sairá do seu esconderijo, e está muito satisfeita com isso. Abro um sorriso, no final das contas pensar positivo pode ser a melhor coisa a se fazer.

****GLOSSÁRIO****

* Bianca é surda nível severo e não oraliza, por esse motivo ela se comunica em Libras com seu pai.

* Estrutura das frases em Libras é diferente do português em relação ao modo de organizar as palavras, e os verbos sempre estão no infinitivo. Mas para melhor entendimento de todos, escrevo igual ao português.

Oiii, viajantes espaciais!

Depois de meses, essa escritora está de volta. Sim, eu sei que desapareci.

Parece que fui abduzida por um OVNI, sumi, e depois do nada os extraterrestres me trouxeram de volta, mas estou bem, fiquem calmos.

Vamos ao que interessa, interagir sobre esse capítulo, claro.

Gostaram de conhecer a colecionadora de cores?

O que acharam do pai dela?

Teorias a respeito da morte da mãe?

Como acham que será na escola?

Esse pai está precisando superar, concordam?

Bianca é mais sonhadora e divertida do que imaginam, com o passar do tempo vão conhecê-la melhor.

Espero que estejam gostando de ler Universos Diferentes, é um livro muito especial para mim. Para quem leu a primeira versão, percebeu uma mudança na personalidade de Bianca, achei que a personagem ficou bem mais evoluída e complexa.

Bem, é isso.

Beijinhos astronômicos e até logo.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top