Capítulo 53
Para minha surpresa e espanto, havia pulsação. Pouca, mas havia.
— Ele está vivo! — Exclamo, levantando-me em um rompante.
Olho para as enfermeiras e elas compreendem o que precisa ser feito.
— Precisamos ser rápidos! — Digo.
Aisha corre para dentro do abrigo no momento em que Samanta e Lara se aproximam. Théo e Vicente já estão ao meu lado.
— Isso é um verdadeiro milagre! — O doutor se abaixa e começa a analisar os locais que foram atingidos. Com tecidos limpos em mãos, pressiona um dos buracos que jorra grande quantidade do líquido vermelho.
— Aqui! — A líbia nos entrega os materiais.
— Ele está perdendo muito sangue! — Comento.
Faço um torniquete em sua coxa direita. Do jeito que está, provavelmente precisará amputa-la, mas nada digo, apenas faço meu trabalho em silêncio.
— Nunca me senti tão inútil! — Escuto Vicente resmungar ao meu lado.
— Evite fazer esforços, haverá muito mais trabalho em breve. — Digo, pressionando um tecido limpo direto na ferida — Sam, cuide para que o paciente permaneça estabilizado por favor, talvez ele se mova involuntariamente devido as fortes dores.
— Droga! — Théo murmura balançando a cabeça em negação.
O doutor cuidava das feridas do lado esquerdo, sendo auxiliado por Lara.
— Lara, mantenha a perna esquerda elevada acima do tórax. Provavelmente precisará de mais pano até que o sangue coagule.
— É pra já! — Diz, tomando sua posição aos pés do paciente.
Sabendo disso, Aisha nos entrega mais alguns tecidos.
— Habib, onde fica o hospital ou pronto-socorro mais perto daqui? — Escuto Vicente perguntando ao nosso anfitrião.
— Há poucas quadras.
— Precisamos leva-lo até lá. — Diz, e eu preciso concordar com ele.
— O estado dele é gravíssimo. Está perdendo muito sangue. — Lanço um rápido olhar para os dois antes de retornar ao trabalho.
— Não sabemos como estão os órgãos, ossos... Além das balas alojadas em seu corpo, ele foi movido brutalmente até aqui. — Théo se ergue ainda olhando o corpo no chão — Os riscos são altíssimos e não temos recursos suficientes.
— Vamos! Entrem todos na van, precisamos leva-lo daqui! — Habib ordena.
— Mas ainda estamos no meio de um tiroteio. — O filho da vítima diz em desespero.
Habib se aproxima do jovem e toca o seu ombro.
— Filho, prepare-se para ver que há Deus em Israel! E tenha certeza de uma coisa, Ele não se chama Alá! — Dito isto, se vira para os outros e começa a dar instruções.
Théo, Gabriel e Cardoso erguem, com o máximo de cuidado possível, o corpo da vítima para dentro do veículo. Quando todos já estavam, entre aspas, acomodados, o motorista sai com a van.
Habib é o primeiro a erguer a voz proclamando o salmo 91.
— Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. — Em poucos segundos todos estávamos recitando — Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o teu escudo e broquel. Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia, nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia.
A família de líbios se abraça em um ato desesperador. À medida que passávamos pelo fogo cruzado, intensificávamos o nosso clamor. O cenário era triste. Corpos caídos no chão, sem vida. Dezenas de soldados mirando uns nos outros. Janelas estraçalhadas, carros pegando fogo... Uma verdadeira guerra civil.
— Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti. Somente com os teus olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios. Porque tu, ó Senhor, és o meu refúgio. No Altíssimo fizeste a tua habitação. Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos...
As balas cruzam nosso caminho, mas nenhuma nos atinge, pois fizemos do Altíssimo a nossa habitação, e nele encontramos refúgio, livramento, proteção e salvação.
Em menos de cinco minutos a van para em frente ao hospital. Os homens se apressam em levar o paciente para dentro. No início eles não aceitam alegando que estavam fechados... Onde já se viu um hospital estar fechado, ainda mais em meio aquele caos!
Pai, olhe para esta nação com misericórdia e amor, por favor!
Clamo com os olhos cheios de água. Nunca em toda minha vida presenciara algo assim. Um verdadeiro desamor; Um descaso absurdo; A ganância e o egoísmo que não têm fim; O ódio por motivos banais. As pessoas estavam completamente cegas... Só de pensar que as coisas só irão pior, meu coração dói. Mesmo sabendo que tudo isso é necessário para que a palavra se cumpra.
Nosso Salvador está voltando!
Após serem incansáveis em sua insistência, o hospital recebe o paciente, não só o que estava conosco. Tinham outros que também insistiram para que pudessem entrar, mas apenas eles. Os familiares não conseguiram entrar.
— Podem ficar conosco se quiserem. — Habib oferece.
— Não queremos morrer, senhor! — A senhora volta a chorar.
— Mãe, não temos escolha! — A filha mais nova abraça a mulher.
— Precisamos ir com eles! — O jovem diz. Seu tom me deixa em alerta. Ele estava sofrendo pelo estado do pai, mas havia algo mais por trás de sua concordância.
Por fim, eles seguem conosco rumo ao casarão. Não fazíamos ideia do que encontraríamos, porém não tínhamos muitas escolhas.
— Como está o seu braço? — Pergunto ao Vicente.
— Latejando. E a sua cabeça? — Rebate.
— Não sinto nada. — Dou de ombros.
Ele me envolve com o braço bom e deposita um beijo em minha testa.
— Tenho muito orgulho da mulher que você se tornou! — Sussurra.
***
Após alguns homens inspecionarem o casarão, que ficou vazio por pouco menos de uma semana, e não encontrarem ninguém, entramos e nos acomodamos. Desta vez homens e mulheres ficaram juntos, não estaremos em desvantagem caso algum ataque surpresa ocorra.
— Como senti falta desse lugar... — Aisha comenta com nostalgia.
— Vocês poderão ficar em um destes quartos conosco. — Habib diz para a família líbia.
Mais uma vez os meus olhos caem sobre o jovem, e um sentimento de angustia cresce em meu coração.
Por que sinto isso, Senhor? Pergunto em pensamento, mas não obtenho respostas.
Avisto Gabriel conversando com a esposa. Sigo até eles.
— Posso falar com você por um minuto? — Questiono.
— Claro! — Responde.
Olho mais uma vez em direção à família antes de falar baixo.
— Meu coração está apertado, Gabriel. Não sei se foi uma boa ideia trazer essa família para cá.
— Águi, estávamos conversando exatamente sobre isso! — Suspira — Mas infelizmente a casa não é nossa. Não podemos simplesmente expulsá-los.
— Eu entendo, mas precisamos permanecer atentos. Principalmente no menino.
— Concordo! — Samantha se pronuncia.
— Se puderem avisar aos outros... Bom, vou deixar que se ajeitem, nos falamos mais tarde! — Sorrio e volto para perto dos outros.
— Precisa de algo? — Vin, como sempre preocupado com o meu bem-estar, pergunta.
— Não, mas obrigada! — Agradeço.
— Certo. Vou tomar um banho e refazer o curativo. — Diz caminhando para o quarto, e eu o sigo.
— Quer ajuda com o curativo?
Ele se vira com um lindo sorriso no rosto. Acaricia o meu rosto e diz com carinho.
— Não, Gatha, consigo me virar. Você está precisando descansar. — Beija o alto da minha testa e parte para o banho.
Decido tomar um copo de água, minha boca estava seca e há horas não me hidratava.
Assim que entro no cômodo, pego um copo e o encho com o líquido transparente. Enquanto bebo, observo o jardim da área externa. Uma figura masculina chama minha atenção.
O mesmo jovem que me deixou em estado de alerta, está em uma parte afastada e escura do jardim, falando ao telefone. Cogito em ir até lá, mas a voz do doutor me impede.
— Como está Águi? — Pulo com o susto e ele ri — Perdão, não foi minha intenção te assustara.
— Tudo bem! — Dou uma pequena risada — Estava distraída.
Um silêncio invade o ambiente enquanto Théo faz a mesma coisa que eu fiz há poucos minutos.
Sento-me em uma das cadeiras e fico observando seus movimentos.
— O que está pensando? — Pergunta ao se sentar ao meu lado.
— Estava me fazendo uma pergunta, mas acho que só você poderá responde-la...
— Se estiver ao meu alcance, responderei. — Responde, com um pouco mais de interesse no assunto.
— Então, desde a nossa última conversa, ainda no CEM, quando você descobriu que eu era...
— O grande amor do meu melhor amigo? — Pergunta com um sorriso lateral.
— Isso... — Rio de nervoso, mas continuo — Desde então não conversamos mais sobre... — Encontro dificuldades para achar as palavras certas — você sabe! Seus sentimentos em relação a mim. — Digo de uma vez, desviando o olhar.
Ele digere minhas palavras por alguns segundos antes de voltar a rir.
Franzo o cenho, sentindo-me uma completa idiota.
— Disse alguma besteira? — Questiono incerta.
— Não, não! Me perdoe! — Controla a risada — É que eu nunca vi a doutora Agatha Tavares ficar embaraçada como agora.
Ergo as sobrancelhas.
— Mas eu já fiquei embaraçada algumas vezes sim! — Tento protestar em minha defesa.
— Quando o assunto é Vicente Ferraço, sim! — Abre o enorme sorriso que me fazia querer sorrir também — Mas voltando a sua pergunta. Você quer saber se eu ainda nutro sentimentos pela senhorita, certo? — Pergunta de forma descontraída.
Confirmo com um aceno de cabeça.
— Pois bem, a resposta é não! — Ele encara as mãos cruzadas sobre a mesa e sorri — Sabe, doutora, quando um sentimento não vem da parte de Deus, com a ajuda do próprio, ele se dissolve. — Continuo o encarando — Você é uma mulher especial! Digna de admiração — Olha para mim — E isso pode impressionar qualquer camarada... — Seu comentário me faz sorrir.
— Obrigada!
— Por nada! — Diz — Mas o maior problema com a admiração, é que se não tomarmos cuidado, ela pode acabar virando algo mais, enganando nosso pobre coração. — Faz aspas ao falar a palavra pobre — E nós temos conhecimento que o coração do homem é enganoso, mais do que todas as coisas.
— Jeremias diz isso! — Concordo.
— Sim! Ainda bem que o Senhor esquadrinha nossos corações e prova os pensamentos. — Complementa — A questão é que eu acabei sendo levado pelos sentimentos do meu enganoso coração. Eu realmente a admiro, Agatha, não só como uma mulher cristã, mas como profissional, ser humano, amiga... Tudo isso chamou minha atenção. E gostaria de te pedir perdão por ter dito ou feito coisas que te constrangeram. Eu sou um ser humano, e sou falho como qualquer um.
— Está tudo bem, Théo! — Toco seu ombro — Não há motivos para pedir perdão, você não fez nada de mais, apenas se deixou levar pelo coração. Quantos de nós fazemos isso?! — Dou risada — Ainda bem que Deus abre os nossos olhos, mas precisamos estar atentos para ouvir sua voz e obedecermos ao seu querer.
— Exatamente, doutora! — Sorri mais uma vez — Aliás, estou muito feliz por finalmente estarem se acertando! Quero ir nesse casamento, não apenas como convidado, mas como padrinho!
Seu comentário me deixa envergonhada, pois a ficha ainda não tinha caído.
— Como soube?
— Além de ter notado a proximidade de vocês nesses últimos dias, eu continuo sendo o melhor amigo do seu amado. — Pisca para mim.
— Pois é, como pude me esquecer desse detalhe?
Rimos juntos.
— Sabe, doutor, você é um amigo muito querido e especial para mim! Sou extremamente grata a Deus por estar vivendo todas essas coisas ao lado de vocês. Espero que nossa amizade permaneça até a eternidade! — Toco sua mão — E eu também sei que em breve Deus colocará uma pessoal especial em sua vida!
— Amém, Agatha! Assim espero, pois a recíproca é totalmente verdadeira! — Percebo a sinceridade em suas palavras e sinto uma certa emoção e um aperto no coração — E amém para a última parte! Eu recebo! — Solta uma pequena risada, que me faz querer acompanhá-lo.
— Bom, preciso ir na van, meu celular deve estar caído em algum lugar por lá. — Digo me levantando — Se o Vicente descer, diga por gentileza que já já estarei de volta.
— Pode deixar, doutora! — Responde em tom brincalhão.
E ao som de sua risada contagiante, sigo para a garagem. A noite estava gélida e o silêncio perturbador. Olho ao redor e não vejo mais o tal jovem que antes falava ao telefone.
Entro na van e começo a procurar pelo aparelho. Sorrio assim que o encontro. Quando desvio dos bancos, para sair do veículo, meus pés congelam no lugar. Alguns homens de preto entram na propriedade, em um completo silêncio, carregando armas de pequeno porte em suas mãos.
Graças ao Espírito Santo do Deus vivo, meus membros inferiores voltam a funcionar e eu corro para dentro do casarão.
Théo, que ainda está na cozinha, olha para mim com preocupação.
— Eles estão aqui! — Digo aflita.
Ele pega minha mão e começa a correr para a sala, que permanecia escura, pois a maior parte das pessoas estavam descansando em seus quartos.
— Avise ao pessoal desse quarto enquanto eu conto para os outros. — Aponta para um dos cômodos.
— Ok!
— Por favor, fique bem! — Fita-me com seriedade, e mais uma vez eu concordo, antes de entrar no quarto.
— Estão invadindo a propriedade! — Chamo a atenção de todos — Habib se levanta com os olhos arregalados — Precisamos nos esconder!
— Por favor, sigam-me! — O anfitrião diz e logo saímos do quarto em silêncio.
Olho ao redor e não encontro uma pessoa que deveria estar naquele cômodo: Lara.
— Gio! — Agarro o braço da italiana — Onde está Lara?
— Não sei, ela tinha ido atrás de você, amiga!
— Não acredito! — Meu coração dispara no peito — De novo não!
Sem pensar duas vezes, dou as costas para os outros e retorno pelo caminho que fizera a pouco. Seria questão de minutos para eles me encontrarem, se eu permanecer no corredor.
Para o meu alívio, a morena vem correndo em minha direção, com os olhos arregalados.
— Tem gente invadindo a casa, Águi! — Sussurra.
— Eu sei! Precisamos nos esconder! — Puxo ela pela mão e entro em um dos vários quartos, sem ligar a luz.
— Eles nos encontrarão aqui! — Ela diz.
— Talvez... — Fecho a porta do quarto, sem trancá-la, pois isso seria um motivo maior para desconfiança. Em seguida abro o armário e destravo o fundo falso — Entre!
Ordeno e Lara corre para o pequeno espaço — Não saia daí!
— E você? — Segura o meu braço.
— Eu me viro! — Tento fechar o fundo, mas ela me impede mais uma vez.
— Águi, eles te encontrarão e poderão te matar!
— Eu não me importo! — Sou firme e fito seus olhos com intensidade — Eu prometi ao Caio que cuidaria de você, e estou cumprindo a minha promessa!
— Você é louca! — Sua voz começa a embargar — Não pode fazer isso!
— Eu amo você! E isso não é uma opção! — Digo com os olhos lacrimejando.
— Se você me ama, por favor não faça uma loucura dessas, Águi! — Se joga em meus braços.
Engulo em seco antes de recitar 1 João 3.16
— Conhecemos o amor nisto: que ele deu a sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos. — A aperto em meus braços antes de colocá-la dentro do armário novamente — Fique viva!
Ela assente e eu fecho o fundo.
Saio do armário, e no momento em que termino de fechar as portas externas, ouço uma voz que faz os cabelos do meu corpo se arrepiarem.
— Olha só o que temos aqui!
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