6. UMA VISITA DESAGRADÁVEL

O dia amanheceu nublado. Cristina acordou sentindo um peso sobre seu quadril e um travesseiro macio sob seu rosto. Em algum momento da noite, enquanto ainda dormia, ela saiu de cima do peito de Gustavo e rolou até ficar de costas para ele, que a abraçou de conchinha e jogou uma perna por cima do quadril dela, talvez em um gesto instintivo para que ela não fugisse.

A morena suspirou, tirando o cabelo revolto da cara. Estreitou os olhos para tentar enxergar a hora no relógio digital em cima da escrivaninha. Sentiu o braço de Gustavo a puxar pela cintura contra ele, e um beijo em seu  pescoço a deixou arrepiada.

— São seis e dez. Que horas você precisa estar no consultório?

— Tenho uma paciente às nove e outro às dez e meia. E você? Que horas entra na empresa?

— Normalmente às oito, mas estou tentado a ficar um pouquinho mais com você hoje.

Cristina se virou para ele com uma sobrancelha arqueada.

— Você não deveria levar o Vitor na escola? O Juliano entra pouco antes de sete e meia, preciso ir em casa pra ele se arrumar e pegar os materiais escolares.

Gustavo suspirou, frustrado.

— É o Gabriel que leva o Vitor, eu costumo ir buscar para almoçarmos juntos, porque nem sempre dá pra jantar com ele.

— Entendo. Bem, eu não tenho um motorista particular, então esse trabalho é todo meu. Preciso ir, querido. Nos vemos outro dia?

— É claro, Cris! Agora que te encontrei e você me aceitou, não vou te deixar fugir. Lembra que o Vitor queria chamar o Juliano pra tomar banho de piscina amanhã? Quero que vocês venham passar o fim de semana com a gente.

Ela deu um selinho no moreno e se levantou para vestir sua roupa a fim de ir acordar o filho.

— Tav, eu já disse que vamos acabar enjoando um do outro se ficarmos o tempo todo juntos. Além disso, o Juliano vai ficar mal-acostumado e não vai mais querer ir embora.

— E eu já falei que nunca vou enjoar de você. Deixa os meninos se divertirem com água e videogame enquanto nós nos divertimos de outras formas. Vai, não seja teimosa, amor. Não quer passar mais tempo comigo? Eu já estou com saudade e você ainda nem foi embora.

Cristina o encarou por cima dos ombros, rindo com aquela cara de pidão que ele fazia. Algumas coisas nunca mudam.

— Tudo bem, estaremos aqui amanhã. Às dez?

— A hora que estiver melhor pra vocês. Traz roupa pra passear no shopping à noite com os meninos, e eu pensei em levar vocês para um passeio no Barquário domingo. Se vocês não gostarem de mergulho no oceano com snorkel, podemos ir ao aquário, fica aqui perto.

Ela terminou de se vestir e calçou os sapatos.

— Parece que você tem tudo planejado, então vou só aproveitar com vocês e ver meu filho se divertindo. Ele precisa, faz muito tempo que não fazemos atividades assim. Na verdade, isso era algo que fazíamos raramente em família, então acho que vai ser uma experiência diferente pra ele ter um amigo junto.

— E você acha que ele vai aceitar bem o nosso namoro?

— Estamos namorando? Eu não sabia disso — ela brincou, dando um sorriso zombeteiro.

Gustavo se levantou, completamente nu e sem nenhuma vergonha de seu corpo exposto ao olhar admirado de Cristina. Aproximou-se e segurou o rosto dela entre as mãos, tomando seus lábios em um beijo doce.

— Você precisa de um pedido oficial? Talvez um pedido público, até um anel de compromisso, eu faço o que você quiser, Cristina. Basta me pedir.

— Eu só quero seguir o fluxo da vida, Gustavo. Não precisamos ter pressa, vamos levar tudo com calma e naturalidade. Temos nossas vidas e rotinas para seguir, eu quero me permitir viver um bom relacionamento, sem pressão, está bem? Preciso de espaço e simplicidade, apenas isso.

Ele assentiu seriamente. Entendia a reserva dela e, apesar de ficar incomodado com isso, iria respeitar o tempo necessário para ela estar confortável, não queria pôr tudo a perder.

Com outro beijo carinhoso, ele foi tomar uma ducha enquanto ela ia acordar seu filho. Com jeitinho, o fez levantar e tomar um banho para despertar totalmente. Juliano vestiu a mesma roupa da noite passada, já estava pronto quando Vitor entrou no banheiro.

Seu pai apareceu à porta do quarto para convidar Juliano e sua mãe para o café da manhã. Juliano ficou empolgado ao ver a mesa da sala de jantar com bolos quentinhos e pães, geleias de fruta, manteiga e queijo, além de frutas diversas. Cristina serviu o filho com suco natural de laranja, pão com queijo e uma fatia de bolo de chocolate com geleia de morango. Ele pegou manga e começou a comer antes de qualquer outra coisa.

Gustavo serviu para si uma xícara de café puro e o degustou, observando sua namorada colocar leite e açúcar no café dela e tomar com uma fatia de bolo. Ao terminar a bebida, ele pegou um copo com suco de laranja e um pão com manteiga. Quando Vitor chegou à mesa, já uniformizado para a escola, o homem sorriu ao notar que ele pegou exatamente as mesmas coisas que Juliano comeu. Manga era sua fruta favorita.

Guardando para si o pensamento de que eles pareciam uma família de comercial de margarina cremosa, Cristina finalizou seu desjejum com alguns morangos e se levantou. Com um beijo na bochecha, pois eles decidiram que só contariam aos garotos sobre o namoro no dia seguinte, o casal se despediu, anunciando aos filhos que passariam o sábado juntos na piscina.

Cristina dirigiu daquele bairro, que era o mais nobre da cidade, para seu pequeno apartamento a vinte minutos dali. Eram sete horas, Juliano iria chegar atrasado. Ela o fez se arrumar enquanto olhava a mochila dele para ver se estava tudo certo. Meia hora depois, ele estava entrando na escola, já nos dez minutos de tolerância para os atrasados.

Ela voltou para casa e tomou um bom banho antes de se arrumar para o trabalho. Lá fora, uma fina chuva começava, o céu nublado sinalizando que o dia seria úmido.

Com os cachos presos no alto da cabeça, ela vestiu um conjunto de calça e blusa azul-marinho, fez uma leve maquiagem e pegou sua bolsa e um jaleco para trabalhar. Estava com uma botina impermeável para não molhar os pés e pegou um guarda-chuva antes de sair.

Sentiu que era observada ao sair da garagem do prédio, porém, ao olhar ao redor, não viu ninguém, e nenhum carro começou a segui-la, então achou que estava sendo paranoica.

Pouco tempo depois, ela adentrava a clínica particular de múltiplas áreas da saúde onde trabalhava, cumprimentando a todos com um sorriso. Apesar de ter apenas 1,60m de altura, a postura de Cristina não deixava dúvidas sobre o tipo de profissional que era.

Tinha três pós-graduações distintas na área de Fisioterapia, incluindo Fisioterapia Traumato-Ortopédica, por isso era comum em seu dia-a-dia tratar pacientes com lesões graves causadas em esportes ou acidentes diversos.

Sua primeira paciente era uma amazona que sofreu um grave acidente em uma competição de hipismo. Seu cavalo caiu em um dos últimos obstáculos da pista, e o impacto foi tão forte que ela foi arremessada a muitos metros de distância, caiu em cima de uma viga e fraturou o quadril. Já levava bastante tempo se recuperando e agora fazia diversos tratamentos para voltar a montar, entre eles, a fisioterapia.

Seu outro paciente era um ciclista que foi atropelado por um motorista bêbado enquanto treinava para uma competição. Ele teve todo o lado esquerdo do corpo esmagado e por sorte não ficou paraplégico. Agora fazia tratamento para voltar a andar normalmente.

Ambos os pacientes apresentavam quadro clínico grave quando começaram a fazer acompanhamento com Cristina, e as sessões que eles faziam eram longas, por isso ela só tinha os dois agendados para aquela manhã.

Às onze e quarenta foi buscar Juliano na escola para deixar na casa de sua irmã, que tomava conta dele todas as tardes. Voltou à clínica e foi almoçar com dois de seus colegas: uma dermatologista gaúcha e um cirurgião-plástico paulista que eram seus colegas mais chegados. Tiveram uma refeição agradável, entretanto, Cristina teve novamente a sensação de estar sendo observada.

Olhou ao redor, tentando captar algo fora do normal, em vão. Era frustrante.

De volta à clínica, teve uma tarde cheia, com seis pacientes. No fim do expediente, Cristina estava exausta, só queria um bom banho e cama. Ainda teria que buscar Juliano na casa da Carol, sua irmã, e preparar a janta dele.

Estava perto de seu carro quando percebeu um vulto se aproximando. Tentou correr de volta para a clínica, no entanto, duas mãos fortes a seguraram com brutalidade. Cristina se preparou para gritar quando viu o rosto do seu agressor.

— Para com o escândalo, eu só quero conversar.

— Me solta, Jonas!

— Eu quero conversar, Cristina!

— Não tenho nada pra falar! Você nem devia chegar perto de mim.

— Nós temos um filho. Quero passar mais tempo com ele. Duas horas por semana não é justo.

— Procura o teu advogado e recorre da decisão do juiz, mas não me toca nem fala comigo, maldito! Me solta!

— É mais fácil resolver com você.

— Tá reclamando de ter duas horas com ele, mas cancelou o encontro de vocês três vezes. Você nunca foi a um jogo de futebol ou apresentação dele nos festivais da escola, agora quer dar uma de pai preocupado? Me poupe.

— Sua cadela! Ele é meu filho também!

— Que você abandonou! Desrespeitou a casa onde ele morava, no sofá onde ele brincava e com a professora que ele mais gostava! Você machucou a mãe do teu filho, Jonas! Foi o Juliano que me segurou e cuidou de mim depois que você destruiu nossa família, e você o magoa todas as vezes com as tuas atitudes. Agora me deixa em paz.

Um homem grandalhão com uniforme azul veio da direção da clínica até a vaga habitual de Cristina no estacionamento dos funcionários. Jonas imediatamente soltou os braços dela.

— Algum problema aqui?

— Nenhum, é uma conversa particular, dá o fora — respondeu Jonas.

— Eu falei com a Dra. Cristina — retrucou o segurança.

— Não está nada bem, Roberto. Eu tenho uma medida protetiva contra ele. Por favor, chame a polícia.

— Desgraçada! — Jonas rosnou e levantou a mão para ela, porém Roberto segurou seu braço e socou sua barriga.

— Vá, doutora, eu cuido desse lixo.

Sem esperar para ver o que aconteceria, Cristina correu para o carro e entrou. Deu partida e estava dando a ré quando viu Jonas empurrar Roberto para cima do carro. Freou bem a tempo de evitar o atropelamento e deu um pulo quando Jonas bateu no vidro da porta do motorista.

— ISSO NÃO VAI FICAR ASSIM! EU VOU PEGAR MEU FILHO, SUA PUTA!

Assustada, ela acelerou e saiu do estacionamento, quase batendo num HB20 preto que estava perto do seu carro.

Seus olhos embaçaram com as lágrimas que vieram sem ser convidadas. Suas mãos trêmulas apertavam com força o volante e seu coração estava frenético em seu peito. O medo ameaçava sufocá-la.

Jonas iria bater nela se não fosse por Roberto. Depois de treze anos de relacionamento sem nunca ter levantado a mão para ela, seu ex-marido iria agredi-la pela segunda vez em seis meses.

Estremeceu. Aquele homem era um monstro. Como nunca percebeu isso?

Dirigiu direto para uma delegacia, onde ligou para sua irmã, avisando que demoraria um pouco para ir buscar Juliano, depois prestou queixa contra Jonas por ameaça e quebra da ordem de restrição. Como sempre, perguntaram se havia alguma testemunha da infração e ela deu o nome do segurança Roberto, então foi levada para ser examinada quanto à acusação de que ele a machucou nos braços.

Terminados os trâmites necessários, ela saiu da delegacia para buscar seu filho e o levou para casa, onde pediu uma pizza, pois estava exausta demais para ainda cozinhar.

Revisou os deveres escolares de Juliano, como fazia toda noite, aliviada por estarem no fim de semana e o menino ter feito todas as atividades que precisaria entregar na segunda-feira.

Arrumou a mochila dele com as roupas necessárias para passar sábado e domingo na casa de Gustavo, e permitiu que Juliano lesse um capítulo de “A História Sem Fim”, um clássico infanto-juvenil da década de 1980 que teve diversas edições ao longo das últimas quatro décadas, e pelo menos três adaptações para o cinema.

Esse era um hábito que Cristina ensinou para Juliano desde que ele aprendeu a ler. Todas as noites, antes de dormir, ele lia pelo menos um capítulo de algum livro que ela julgasse adequado. O garoto já tinha lido toda a coleção das Crônicas de Nárnia, Percy Jackson e os Olimpianos, Os Heróis do Olimpo e As Crônicas dos Kane, agora queria ler a série Magnus Chase e depois Harry Potter, mas primeiro precisava terminar sua leitura da vez.

Por volta das nove e meia, Juliano já estava deitado para dormir e, finalmente, Cristina se deitou e fechou os olhos.

Sentia seu corpo em frangalhos, contudo, sua mente ficava dando voltas pelos acontecimentos recentes. Primeiro reencontrou Gustavo e descobriu que ele a deixou para protegê-la da ameaça de seu padrasto. Fez as pazes com ele e agora estavam namorando de novo.

Então a imagem de Jonas olhando para ela com tanto desprezo e ódio tomou sua mente. Não se lembrava de sentir tanto medo dele como naquela noite, ainda mais do que quando ele a agrediu antes de ser preso. Jonas tinha um olhar louco, parecia capaz de qualquer coisa. De fato, ele até mesmo tentou bater nela em local público.

Não podia permitir que esse canalha influenciasse seu filho. Não importava que eles tivessem o mesmo sangue, Juliano não se tornaria um homem sem escrúpulos e covarde como o pai no futuro. Por mais que sentisse pena de seu filho, que vivia triste quando o assunto era seu pai, ela tinha o dever de zelar pela educação dele. Tomaria todo cuidado necessário para que jamais tivesse que lidar com uma notícia de seu filho agredindo uma mulher.

Quando finalmente dormiu, sonhos confusos, com monstros grotescos e horripilantes invadiram seu subconsciente.

Cristina não sabia, mas seus instintos diziam que aquele era só o início da maior tormenta de sua vida.

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