II

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LÚCIA estava sentada numa confortável poltrona na varanda, contemplando aereamente o jardim à sua frente. Era uma bela morena de olhos negros e cabelos castanhos, e que, tal qual o marido, também parecia ter congelado no tempo aos vinte anos.

– Oi, Lúcia – disse Dante amavelmente, agachando-se diante da advogada. Ela o olhou, parecendo despertar.

– Dante! Eu devia imaginar que Éder te chamaria.

– Sinto muito pelo que estão passando!

– Obrigado. Mas não sinta por mim. Eu não mereço.

– Por que não?

Fez-se silêncio. Ouvia-se apenas o vento balançando as flores do jardim, além dos latidos solitários de um outro cachorro vindos da rua, de outra forma, silenciosa lá fora. A cidade inteira parecia de luto aquela manhã.

– Porque todos sabemos que fui eu quem, ontem, preparou o chocolate quente.

– Foi? Em que horário?

– No intervalo do jogo.

– E você fez... chocolate quente com amendoim? De propósito?

– "De propósito?" – ela riu, amarga. – Está perguntando se esqueci que minha sogra e meu marido são alérgicos a amendoim?

– Éder também é alérgico a amendoim? – Dante ergueu as sobrancelhas.

– Sim – respondeu Éder. – Herdei isso de mamãe.

– Ah sim. Então, Lúcia, você sabia que...

– Eles são alérgicos? Claro que sim!

– Mas você não sabia que Tina era alérgica à ração – disse Dante, sério.

Nesse momento os olhos dela pareceram girar:

– Mas Tom sempre foi o alérgico. Sempre foi assim. Agora todo mundo diz que Tina era quem tinha alergia, e que eu a matei...

Dante e Éder trocaram um olhar significativo.

– Lúcia – disse o detetive, amavelmente. – Não pode ter acontecido esse mesmo tipo de confusão ontem?

– Não. Sei que minha sogra, assim como meu marido, não podem com amendoim.

– Então por que o preparou?

– Não sei. Eu sequer me lembro de ter feito chocolate quente com amendoim. Pensei ter feito achocolatado puro mesmo.

– O que ela trouxe para mim não tinha amendoim – explicou Éder. – Bebi tudo. Estou aqui ainda. Só o da minha mãe era diferente.

– E você se lembra de ter preparado dois tipos de chocolate, Lúcia?

– Não.

– Alguém entrou na cozinha enquanto você preparava?

– Éder entrou pra tomar uma água, minha sogra entrou pra provar um pouco de leite, e teve um ou dois momentos em que fui ao banheiro ou ao meu quarto.

– Entendo. Você não se lembra, então, de ter colocado amendoim.

– Não. Mas não muda o fato de que fui eu quem fiz, não é?

Dante sorriu.

– Não. Foi você quem levou o copo pra ela?

– Sim. Levei primeiro o dela e, depois, voltei pra sala levando o de Éder.

– Em que momento vocês acharam... o corpo?

– Perto do fim do jogo – explicou Éder. – A Argentina tinha acabado de fazer o gol da vitória, quando pensei ter ouvido um gemido. Fui até o jardim e encontrei mamãe já sem vida.

– Eu sinto muito – tornou a repetir Dante. – Agora, Éder... Posso ver as xícaras em que cada um bebeu o chocolate?

– Vou buscar.

– Use luvas.

Éder deixou o jardim, e Dante se viu a sós com a desvairada Lúcia.


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DANTE então tocou no ombro dela:

– Lúcia, minha amiga, me perdoe pelo que vou lhe pedir agora, mas preciso que faça algo doloroso por mim.

Ela deu de ombros.

– Quero que reviva aquela noite, duas semanas atrás, em que você encontrou... o pequeno Álisson na biblioteca.

Lúcia soltou um grito de dor. Então, enxugando os olhos, disse:

– Está tentando traçar o caminho da minha loucura até o início? Pois bem, se estou louca, de fato foi naquele dia que fiquei.

– Conte-me o que aconteceu.

– Bom, naquela noite, eu estava em minha escrivaninha, terminando de redigir uma petição. Éder estava no jardim, regando as plantas. Álisson estava no quarto ao lado do meu, conversando com a vó. Pouco tempo depois, ouvi os roncos de Dona Neuza e os passinhos de Álisson deixando o quarto. Ah, se eu soubesse que era a última vez que escutaria seus passos! – ela desatou a chorar. Então, se recuperando:

– Dez minutos depois, ouvi um estrondo na biblioteca. E eu senti na hora o que tinha acabado de acontecer, pois meu coração explodiu. Antes de entrar lá, e ver o corpo dele, eu soube...

Mais alguns instantes de comoção. Foguetes e cantorias continuavam a se ouvir na rua, insensíveis à dor daquela mãe.

– Lúcia... que livro Álisson estava procurando lá em cima?

– Não sei. Ele sequer gostava de ler... Gostava mesmo de videogames.

Ah.

Naquele momento, Éder retornou à varanda, segurando, com as mãos enluvadas, uma bandeja com duas xícaras dispostas lado a lado. Eram muito parecidas, ambas brancas com detalhes em azul, embora as tonalidades de azul fossem ligeiramente diferentes. Uma era de um azul fosco, outro de azul mais vívido. No escuro, passariam por iguais.

– Em qual dessas estava o chocolate que Dona Neuza bebeu?

– Nesta – Éder apontou para a xícara de azul fosco. Ela ainda tinha uma pequena rachadura na asinha.

– Essa rachadura é de ontem?

– Não, tem tempo já – explicou Lúcia, sonhadora. – É dum dia em que Éder e Dona Neuza se esbarraram num corredor, os dois muito distraídos. A pobre senhora derramou o café na mão e soltou a xícara.

– Na verdade, meu amor, foi o contrário – disse Éder, complacente. – Eu que queimei a mão e derrubei minha xícara.

Lúcia balançou a cabeça e tornou a olhar o jardim.

– Então quem geralmente bebe nesta xícara é você? – perguntou Dante ao amigo.

– Acho que sim...

– Lúcia – chamou Dante. – Quando você serve alguma bebida, você diferencia xícaras?

– É... Sim, é instintivo. Sei, por exemplo, que essa xícara quebrada é de Dona Neuza, então sempre lhe dou dessa.

– Ah. Bom, preciso saber só mais uma coisa. Éder, pode me levar de volta à biblioteca? Ao lugar de onde Álisson caiu?

Lúcia desatou a chorar. Éder deu beijo na testa da esposa e, então, deixando-a na varanda, conduziu Dante até a biblioteca.


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ENQUANTO caminhavam, Éder perguntou, ansioso:

– Dante, já tem alguma ideia do que aconteceu?

– Sim. Preciso ver a biblioteca primeiro antes de ter certeza. Então saberei.

– E essa história das xícaras, que importância tem?

– Bom, a xícara em que sua mãe bebeu era a de asinha perfeita, não era?

– Sim.

– Isso porque Lúcia achava que a de asinha quebrada era sua. E a azul vívido, perfeita, de sua mãe.

– Sim, sim. Mas como eu disse agora mesmo, foi minha pobre mãe quem se queimou e deixou a xícara quebrar, e não eu.

– Mas assim como na história dos gatos, Lúcia parece se lembrar de forma diferente. Por isso, ontem, ela deu chocolate para sua mãe na xícara em que você usualmente bebe.

Éder congelou no mesmo instante.

– Está dizendo que... Era eu quem deveria ter bebido?

– Sim. Se houve uma tentativa de assassinato, você era o alvo. Não sua mãe.

– Meu Deus... Assassinato? Eu?

– Vamos, me leve de volta à biblioteca.

Éder obedeceu e, instantes depois, estavam no recinto. Caminharam, entre as estantes, até o local onde o pobre Álisson subira para pegar o livro.

Primeiramente, Dante olhou a escada. Subiu então as vistas até a última fileira, onde enxergou alguns livros de receitas. Por fim, perscrutou o chão e, agachando-se, passou um dedo sobre ele. O dedo deslizou suavemente.

– Bingo.

Então foi a vez de Dante esconder as mãos entre a cabeça e dizer, num murmúrio:

– Ah, que tragédia! A que ponto o humano pode chegar?

Depois disso, pediu que Éder chamasse Lúcia e a levasse para a sala de estar, onde falaria com eles.

Quando o amigo saiu, deu uma última olhada pela janela aberta. Lá fora, a cidade estava triste, e o ânimo geral, mórbido, notava-se nas lufadas frias de ar.

E pensar que a tristeza do povo, naquele instante, não era por causa da tragédia que acontecera naquele lar. Era porque o país inteiro vira o sonho do hexacampeonato mundial de futebol ser adiado... logo pela Argentina.


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1.298 palavras

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