Capítulo 9 : Boris, the dog
Fernanda resmungava consigo mesma, quando Davi retornou de seu almoço com Keko - o dono de uma Mecânica que ele costumava frequentar quando estava na cidade. A professora não tinha como saber que era a sua chance de recordar os tempos de moleque... Quando um garoto de oito anos - joelhos ralados e mãos de pulsos finos - enfiava-se debaixo dos carros dos ricaços que apareciam na oficina do pai... O pequeno Davi ficava maravilhado diante daquelas possantes, que aceleravam de zero a cem em questão de segundos... E foi lá embaixo, enfiado sob as máquinas, que ele aprendeu a montar e a desmontar as peças por pura curiosidade.
Hoje, depois de fazer sua bateria de exercícios físicos na praia, ele correu até a Mecânica e vestiu o macacão dos funcionários, para não ser reconhecido pelos clientes. Os funcionários de Keko sabiam que não deveriam falar com ninguém sobre ele... E depois de duas horas trabalhando nas peças de um Porche amarelo-canário, ele saiu de lá sujo de graxa e feliz como um pinto no lixo.
Riu de si mesmo, ao se imaginar um pinto no lixo. Mas, então, deparou-se com sua hóspede. Que, aliás, não era bem uma hóspede, já que estava cuidando da casa. Ele deveria encará-la como uma funcionária...? Prestadora de serviços...? Troca de favores...? Inquilina...? Governanta...? Fez uma careta. Que confusão! Atravessou a sala a tempo de ver Fernanda com um olhar carregado. Pelo jeito, a papelada em suas mãos eram a causa do mau humor. Assim que o avistou, a expressão da moça mudou de irritada para intrigada.
Ele imaginou como ela o estava enxergando naquele exato momento... Afinal, Davi saiu para correr e voltou todo sujo de graxa. O trapo que usou para se limpar não ajudou muito. Mas ele não estava nem aí. Com um meio sorriso, murmurou "boa tarde" e deixou os óculos e o boné sobre o balcão.
-Não tem mais aula hoje? – perguntou.
-Consegui uma folga – ela respondeu. – Clélia, a professora de Biologia, precisava das minhas aulas. Trocamos e o Bataglin não pode fazer nada.
-Bataglin?
-É o diretor – ela gesticulou, franzindo o narizinho perfeito, o que quase o distraiu. - Um mala sem alça que me colocou numa escala horrorosa. Fico com os piores horários, supostamente porque os professores mais antigos escolhem as aulas na frente. Eu sou a novata da escola. Mas ele não segue essa lógica. O diretor monta a escala conforme as simpatias e antipatias.
-Certo... E ao invés de ficar contente com a troca, está aí, olhando feio para os seus papeis – ele a provocou. – Por que será?
Fernanda suspirou.
-Estou tentando incutir a importância da arte na vida dos meus alunos, quando eles nem acreditam que ir à escola é importante, quem dirá a apreciação da arte.
Ele balançou a cabeça. Virou-se para ela e voltou alguns passos.
-O que é arte para você, professora?
Ela franziu o cenho.
-A resposta é complexa.
-Mas que talvez lhe diga o porquê de você não conseguir se conectar aos seus alunos.
-Eu não disse que não consigo me conectar...
-Não, mas deu a entender... Veja, não é uma crítica – ele gesticulou, fitando-a nos olhos. – É o mal da educação contemporânea. Deve ser um desafio ensinar sobre arte para pessoas que perderam a oportunidade de apreciá-la, ou mesmo de compreendê-la na época da escolarização. Ainda mais em termos de Brasil, que passa por um franco sucateamento educacional. As pessoas não têm paciência de ler, estudar, ou até mesmo discutir de maneira construtiva. O perfil dos alunos de hoje é preocupante. Mas, considero ainda mais preocupante o papel do Estado na oferta educacional que faz à população.
Ela torceu os lábios.
-Tem razão, é um desafio.
-Só posso falar por mim, mas acho que minha experiência pode ajudá-la, já que eu cheguei à faculdade a duras penas. – Ele coçou o peito, distraidamente. As lembranças expressas em seu rosto. - Não terminei porque não me senti conectado aos estudos – explicou, sentando-se diante dela.
-Sério?
-Sério – avaliou-a por um instante. - Por que a surpresa?
-Ah, eu não sei... – Fernanda tirou o óculo e esfregou o meio da testa, entre as sobrancelhas com o polegar. - Imaginei que você tivesse ido até o fim.
-Não... – respondeu Davi, com um meio sorriso. - Eu achava a escola devagar demais para o meu ritmo. Sempre fui um aluno inquieto e curioso. Quando descobri que não precisava da escola para descobrir o mundo, eu me joguei sem medo... – ele soltou uma risada breve. – Quando fiquei adulto, tentei rever essa questão inacabada da minha vida... Posso entender como os seus alunos, que já estão no mundo do trabalho, se sentem. Eles voltam para a escola numa época em que tudo é mais difícil. A gente não possui mais paciência; o trabalho e os compromissos fazem canalizar nossas energias para outras coisas que não os estudos; quando chegamos à escola, estamos com apenas parte da atenção voltada ao conteúdo, por causa do cansaço. Mesmo assim, vamos para a escola tentar aprender coisas que não usamos no dia a dia. – Seus olhos se fixaram num ponto acima da mesa, antes de voltar a encará-la daquele jeito peculiar. - Acredito que o desafio está em acompanhar o ritmo do aluno, seus interesses e necessidades... Fazê-lo encontrar a conexão entre o que aprende e o seu cotidiano.
Ela se inclinou para frente.
-É exatamente como eu penso que o ensino deva acontecer, especialmente, o de Jovens e Adultos. Há educadores que acreditam que a EJA é o câncer da educação básica. Mas eu penso justamente o oposto. Acredito que é o direito constitucional do cidadão de resgatar uma fase da vida, a qual ele foi obrigado a deixar para trás por inúmeras razões. Não dá para fingir que toda a criança e todo adolescente vai conseguir permanecer na escola somente porque as leis dizem que eles devem estar. E não adianta que o aluno esteja lá apenas por estar, sem um ensino de qualidade. Como se a escola fosse um depósito de alunos. A vida é muito complicada, especialmente num país como o nosso. A EJA é uma oportunidade de equilibrar as forças desfavoráveis ao trabalhador e ao pobre. E eu como professora quero fazer o melhor que eu puder pelos meus alunos.
-Falou bonito – um brilho de zombaria dançava nos olhos cinzentos.
-Você deve achar o meu discurso tolo e vazio, não é? – ela ficou desapontada.
-Não – Davi segurou a sua mão, surpreendendo a ambos. – Acho você idealista, mas de um jeito bom. Se todo mundo nesse país pensasse assim... Quer saber, você me lembra a minha tia Célia.
Ah, que ótimo! Ela lembrava a tia dele!
-Foi por isso que ela conseguiu triunfar onde um cético não triunfaria – ele nem percebeu a careta que Fernanda fez ao ouvir as palavras "você me lembra a minha tia". - Foi ela que... – Ele se interrompeu ao perceber que estava prestes a revelar quem era Célia e, por conseguinte, quem era ele. – Foi ela quem deu o impulso aos negócios de nossa família – desconversou, levantando-se.
-Oh – ela se impressionou com a intensidade e a profundidade da conversa que estavam tendo. Principalmente pelo fato de Davi lhe revelar um pedacinho de sua vida. Contudo, reconheceu o exato momento em que ele se retraiu e se afastou. Decidiu, então, mudar de assunto: - Eu estava justamente pensando em fazer uma exposição com o trabalho dos alunos. Algo que concilie o aprendizado da arte com o cotidiano deles. Mas estou quebrando a cabeça para encontrar um lugar bacana... Onde eles se sintam especiais em relação a sua arte.
Davi inclinou a cabeça. De repente, o celular dela tocou em cima da mesa. O nome de Milton apareceu de maneira visível e inequívoca. Os olhos de Davi tornaram-se duas fendas. Ele então desviou os olhos da mesa.
-Vai dar tudo certo – comentou, dirigindo-se às escadas. – Vou tomar um banho.
Ela se inclinou para o celular, meio apalermada com a mudança de atitude. Pegou o celular e atendeu:
-Tenho uma novidade – Milton foi logo dizendo. – Sabe aquele carro que o meu primo está querendo vender? Ele aceita que você parcele o pagamento, se ainda estiver interessada, é claro. Quer fazer um teste drive? – ele perguntou.
-Claro! – comentou, toda animada. – Quando?
Davi subiu bem devagar os degraus e escutou quando ela disse: - Tudo bem, me encontre em meia-hora. Estarei pronta.
Ele não quis ouvir mais nada, por isso, acelerou o passo e irrompeu banheiro adentro. Ligou o chuveiro, de imediato. Estava começando a tirar as roupas quando a voz dela soou da escada.
-Estou saindo.
-Ora, fique a vontade – ele zombou.
Julgou tê-la ouvido resmungar algo, mas logo em seguida a porta da frente abriu e fechou. Ela partiu... Para se encontrar com o tal Milton. Ele pronunciou o nome em voz alta.
-Miiiilllltonnnnn – e deu uma risada curta.
Ah, qual é, cara? Desencana!
Enquanto ele tentava desencanar, Fernanda saia calçada afora em direção à rua. Desceu a ladeira, não querendo que Milton parasse na frente da casa e ela se visse na obrigação de convidá-lo para entrar. Depois de um trecho sem nada, a não ser rochas e mato alto, Fernanda passou por uma casa. Parou ao ouvir o choramingo triste de um cão, do lado de dentro do terreno todo murado. Aos ouvidos de Fernanda, o lamento soou preocupante. Ela hesitou, e decidiu tentar espiar lá dentro. No entanto, além do muro ser muito alto, o portão era completamente fechado. A casa era luxuosa; estava toda iluminada, mas parecia deserta. Ela se esticou para ver um pedacinho da garagem vazia.
O cachorro parou de chorar e fungou no portão, como se estivesse tentando captar o cheiro da pessoa do outro lado. Ela murmurou algumas palavras de incentivo e o cão se aquietou.
Um facho de luz forte a iluminou por trás.
A moto de Milton despontou, na ladeira.
-Fernanda? – ele a chamou, estacionando ao seu lado, junto ao meio fio.
Ela ainda hesitou, apoiada completamente no trinco do portão... Acabou desistindo de tentar descobrir algo.
-Tudo bem? – ele lhe estendeu o capacete extra.
Ela meneou a cabeça, lançando um último olhar para a casa, enquanto colocava o acessório de proteção na cabeça. Subiu na carona da moto e se ajeitou.
-O carro está na casa do meu primo. Eu te levo até lá - Milton fez a curva, acelerando rapidamente.
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O carro era bem velhinho, mas atendia às necessidades de Fernanda. Ela, que nunca teve um carro próprio, estava muito feliz em ter um. Tão feliz, que nem realizou as observações de praxe – tais como: levar ao mecânico de confiança para uma verificação, olhar os documentos para ter certeza de que estavam dia. Enfim, simplesmente deu uma volta com ele e adorou. Mas havia um problema realmente óbvio. Ela não tinha onde guardá-lo, de modo que o deixou momentaneamente na casa do ex-proprietário, o primo de Milton. Depois de acertar o que faltava para passar a papelada para o seu nome, ela pagou a entrada, assinou as promissórias e retornou a Jurerê de ônibus à noitinha. Durante todo o percurso, ficou quebrando a cabeça, sem saber onde iria guardar o carro. Milton sugeriu que ela alugasse uma garagem no centro. Mas além de custar caro, de que lhe adiantava um carro se ela tivesse de deixá-lo no centro para continuar andando a pé, ou de ônibus?
Quando desembarcou no ponto mais perto da casa de praia, ela teve o caminho todo para pensar a respeito... E não encontrou a solução. Entrou pelo portão, seguiu o caminho de pedras e abriu a porta. Foi recebida pelo som da televisão. Percebeu que Davi estava assistindo ao noticiário internacional, enquanto abria algumas embalagens de comida pronta.
-Não sabia se você iria gostar de China in Box, mas eu mandei trazer porções extras de cada prato... Para o caso de você gostar – ele comentou, lançando-lhe um breve olhar, antes de voltar a se fixar nas imagens da tela.
-Eu gosto, sim, obrigada! – Fernanda sentou-se ao lado dele no balcão e começou a comer em silêncio, assistindo ao noticiário sem prestar muita atenção.
-Ei! – ele chamou a sua atenção, batendo palmas de leve. – O que está enchendo essa sua linda cabecinha?
A pergunta soou indiferente; mesmo assim, ela se assustou com o fato de Davi conseguir interpretá-la tão fácil.
-Ah, eu... Comprei um carro.
Ele parou de comer e a encarou com indignação.
-O quê? – olhou-a com interesse pela primeira vez desde que voltou do seu encontro com Milltoonnn. Mas ela sentiu que ele a olhava como se tivesse crescido dois chifres em sua testa e não gostou nem um pouco desse tipo de interesse. Não estava com ânimo para sermões. Ele pareceu não perceber o seu estado, porque acrescentou: - E não me chamou para ajudar a escolher?
Essa pergunta a espantou.
-Ora, não sabia que eu precisava fazer isso – respondeu, irritada. – Dá licença!
A professora ficou estressadinha. Ele começou a rir.
-Não, claro que não... – Davi meneou a cabeça, percebendo que ela não tinha entendido. – É que eu sou bom com carros. Poderia ter te ajudado a conferir a máquina.
-Conferir a máquina – ela repetiu, lentamente. – O quão entendido você é, afinal?
O sorriso espalhou-se pelo rosto curtido de sol.
-Muito entendido.
-Ah... O carro funciona legal, eu testei – ela fez questão de dizer. - Minha preocupação é onde deixá-lo.
Os olhos cinzentos se arregalaram.
-Aqui, ora!
-Mas eu pensei...
-Fernanda, eu tenho uma garagem enorme. Com espaço para dois veículos. Porque iria impedi-la de usá-la?
-Sei lá, eu...
Ele bateu de leve no tampo do balcão.
-Traga o carro amanhã e me deixe dar uma boa olhada nele.
-Tá legal – ela disse, desconfiada, fazendo Davi rir com gosto.
-Amanhã – insistiu. -Traga amanhã.
-Tá legal – ela repetiu, no mesmo tom.
-Gosta de sorvete? – perguntou Davi, do nada.
Nossa, falar de carros o deixava alegre como um garotinho, Fernanda percebeu. Decidiu aproveitar o seu humor e respondeu:
-Sim, amo sorvete. O que tem de bom?
O sorriso dele aumentou.
-Passas ao rum.
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Depois do sorvete, Davi voltou a se tornar... Inacessível. Gelado como um iceberg. Mais gelado do que o sorvete que compartilharam de colher, direto do pote. Para Fernanda o homem era como um quebra-cabeça. Ela não entendia aquelas oscilações de humor. Num momento, eles estavam rindo e brincando na cozinha; no momento seguinte, ele se levantava e dizia que tinha que sair. Sair para onde, pelo amor de Deus?
E Davi foi-se embora como o diabo foge da cruz.
Fernanda encolheu os ombros. Danem-se os homens malucos e imprevisíveis. Pegou mais um tanto de sorvete para afogar as mágoas e foi para fora. A brisa marinha a atingiu em cheio. Ela suspirou de prazer. O ar puro fez esvoaçar seus cabelos enquanto ela descia lentamente os degraus até estar bem perto da faixa de areia. Ela se sentou sobre uma das estacas e ficou olhando a lua maravilhosa sobre o mar.
Um latido em forma de choro chamou a sua atenção. O cão... Vinha pela praia meio cambaleante, meio correndo. Estava sendo perseguido por um cara que o chamava e jogava pedras nele. O animal veio direto para ela. Fernanda não teve medo, apesar de ser um cão enorme, típico cão de guarda, com orelhas pontudas, todo preto. Reconheceu que devia ser um dogue alemão. Ele se refugiou em seus braços e buscou o seu sorvete. O homem berrava:
-Boris! Eu vou te moer de pancada, seu cão imprestável.
O dogue alemão estava muito assustado. Era o mesmo que estava choramingando na casa mais próxima, ela tinha certeza. Vinha daquela direção. Saiu da única casa mais próxima, a mesma pela qual passou mais cedo. Fernanda abraçou o cão e se preparou para a aproximação do homem. Ele nem se dignou a olhar para ela. Não tirava os olhos injetados do cão.
-Você me paga, seu cachorro inútil. – ele disse, com ódio, tirando o cinto da calça. – Que cão de guarda de araque!
Fernanda ficou de pé, colocando-se na frente do cão.
-Nem pense que você vai encostar nele – disse, com o dedo em riste.
O homem pareceu reparar só agora que ela estava ali. E a encarou com os olhos arregalados de descrença – as feições assumindo uma expressão de ódio mortal.
-Quem você pensa que é, sua piranha, pra me dizer o que fazer com o meu cachorro. Sai da minha frente! – ele avançou alguns passos pela grama. – Chamo a polícia e ainda te meto a mão na cara, vadia!
Fernanda arregalou os olhos, em choque. Não acreditava no que tinha acabado de escutar. No entanto, sentia-se preparada para enfrentá-lo, apesar de tremer por dentro tanto ou mais que o cachorro. De repente, ela ouviu uma voz grave atrás de si.
-Quem vai meter a mão na cara de quem? Repete se tiver coragem, vagabundo – disse Davi, descendo até a beira do terreno. Seu olhar era letal. Os músculos estavam contraídos e os punhos fechados em antecipação a uma boa briga. – Está invadindo propriedade particular. As câmeras de segurança filmam tudo– ele apontou para elas, em cada extremo do terreno. –Quem está violando a lei é você, imbecil.
O cara, caindo em si, recuou alguns passos para fora da grama. Ele observou Davi, depois relanceou o olhar pela casa atrás dele. Aparentemente, decidiu que deveria ser um pouco mais cuidadoso. O homem tatuado devia ser... alguém.
-Devolva o meu cachorro e está tudo em paz – propôs, tentando ainda manter o controle da situação
-Devolver? – o cara tatuado riu, mas o riso não chegou ao cinza tempestuoso dos seus olhos. – Depois de você ameaçar a minha mulher? Eu devia era enfiar a mão na tua cara!
Agora Fernanda arregalou os olhos por outros motivos. Ele a chamou de quê? Sua mulher?
-Eu não estou procurando confusão – o outro levantou as mãos, alheio ao estado de Fernanda. – Só vou levar o bicho embora, tá legal?
Os olhos de Davi dardejaram.
-Nem pensar. Quer uma denúncia por maus tratos a um animal? É pra já! – Davi sacou o celular e olhou para o cara. – Deixe-me pensar quem vou chamar primeiro? O meu amigo Procurador – ele olhou para Fernanda e depois para o dono do cachorro. – Não, o delegado federal – sorriu lentamente. – Ele vai achar todos os teus podres, seu grande filho da puta. Ainda mais quando souber que você ameaça mulheres e cães indefesos.
-Ah, tanto faz – o cara fez uma careta e começou a se afastar pela praia. – Eu arrumo outro cachorro. Esse não presta mesmo.
-Não – rosnou Davi deu alguns passos em sua direção e olhou de cima pra baixo. O cara parou congelado no lugar. – Você vai criar vergonha na cara e arranjar um sistema de segurança, como eu mesmo fiz na minha casa. Se eu souber que você comprou outro animal para maltratá-lo como fez com este, vou virar a tua vida do avesso. Então, pensa bem...
-Você não pode me impedir de comprar um cão, cara – o outro disse incrédulo.
-Por enquanto, não – Davi concordou, estreitando os olhos. – Mas, cara, eu posso fazer da tua vida um verdadeiro inferno. Tenho tempo e dinheiro suficientes para me divertir fazendo isso. Vai pagar pra ver?
O homem o avaliou por um momento e algo na expressão do tatuado lhe disse que não estava blefando, nem exagerando. Fernanda baixou os olhos, controlando-se para não rir.
-Vou comprar o sistema de segurança – disse o ex-dono do cachorro, num tom raivosamente submisso. – Pode ficar com o traste do cão.
-Ótimo – Davi sorriu, nem um pouco amigável. – Acho que nos entendemos. Agora dá o fora, antes que eu te faça sentir quem é a piranha da hora.
Fernanda levou a mão aos lábios, tentando abafar um som estrangulado que subiu pela garganta. Conseguiu segurar apenas tempo suficiente de o cara partir... Então, desatou a rir. Davi virou-se para ela, ainda possesso.
-Detesto valentões... Eles sempre atacam alvos que consideram fáceis.
Fernanda abaixou-se para abraçar Boris pelo pescoço.
-Não pensei que fosse dizer isso, mas nunca me senti tão feliz em ver você.
-Ah, estou a seu dispor, madame – Davi fez uma mesura, como um cavaleiro medieval de bermuda jeans e camiseta regata preta.
Os olhos de Davi se fixaram no cão. Boris levantou os olhos esperançosos para ele. Abanou o rabo, querendo ganhar sua simpatia... Os cães eram muito observadores, Fernanda pensou, havia uma grande probabilidade de já saber quem mandava naquela casa. Davi aproximou-se devagar e se abaixou.
-E aí, amigão? – deixou que Boris cheirasse o dorso da sua mão e lhe fez um cafuné. –Você não se importa, não é? Não, você gosta... É um bom menino, não é? – Levantou os olhos sorridentes para Fernanda. – O que pretende fazer? – perguntou, num tom neutro.
Ela se sentiu ansiosa, já que não tinha uma casa para poder decidir ficar com o cachorro. Por outro lado, não queria deixá-lo em uma ONG, ou no centro de zoonoses.
-Você gosta de cães, não é? – ele perguntou, afagando o cachorro.
-Sim... – ela respondeu, agoniada. - Se a casa fosse minha, eu já teria tomado a decisão.
Ele se inclinou para apalpar o lombo do cão, tentando encontrar problemas. O cão chorou baixinho. Podia ter alguma fratura. Se aquele filho da puta tivesse espancado o cachorro... E era quase certo que tenha espancado... Ao apalpar as costelas de Boris, não só o cão gemeu como Davi deu-se conta de que o animal estava esquelético. Ele se levantou e sacou o celular. Depois de um tempo fazendo uma busca na internet, anunciou:
-Tem um hospital 24 horas para animais, em Jurerê. Vou levá-lo para fazer um check-up.
-Eu vou com você.
-Estava contando que viesse – Davi sorriu. – Parece que ele gosta muito de você.
Fernanda agradou o cão, que lambia algo na grana. Fernanda aproximou-se para ver o que era e notou que o seu sorvete tinha caído no chão sem que percebesse. O cão é que estava aproveitando. Parecia faminto e talvez estivesse com sede. Ela saiu em busca de uma vasilha. Encontrou uma na parte de baixo do balcão. Encheu de água e depois colocou diante dele, que praticamente a dragou. Estava morto de sede. Ela se pegou imaginando em que condições aquele animal estava sendo mantido.
Davi se juntou a ela. O braço roçou no seu, provocando-lhe um tremor involuntário. Ela procurou se controlar e se afastou um passo. Davi pareceu não notar.
-Peguei o endereço.
-Do que?
-Do hospital veterinário. Vamos?
-Sim, claro.
Ele olhou para o cão e seus lábios se comprimiram.
-Como tem gente FDP no mundo! – ele de repente sacou o celular e disse: - Henry? Sim sou eu. Sabe aquele aplicativo que estamos investindo para desenvolver na China e nos EUA? Aquele que coloca as pessoas que maltratam os animais em uma lista negra dos Pets, clínicas e agropecuárias, impedindo-as de obter permissão para comprar ou receber a doação de um animal. Lembrou? – fez uma pausa. - Ótimo, quero que injete mais dinheiro para acelerar o lançamento. Quero o programa em funcionamento até o final do ano. Começando pelo Brasil, certo? – Ele se virou para o mar, e escutou, por algum tempo. – Não, eu sei que depende de aprovações de leis e tal, mas temos como fazer com que os deputados e senadores se interessem, não temos? Use o pessoal de contenção de danos, logística, investimento político e todo o arsenal de marketing empresarial de que dispomos.
Ele desligou e deu de cara com Fernanda encarando-o.
-Que foi?
-Quem é você? – Ela estava seriamente desconfiada de que havia algo além da questão da privacidade, em relação à obsessão de Davi por manter os estranhos longe de sua casa. Ele se comportava como se fosse o dono do mundo.
O Senhor Mistério riu, sem graça.
-Você me pegou. Sou o bicho papão... – respondeu de um jeito desvirtuado. Indicou o cão com o polegar: - Como vamos chamá-lo?
Ahhh, ele não queria falar de si mesmo. Que seja! Fernanda encolheu os ombros e disse:
-Eu ouvi o cara chamá-lo de Boris.
Ao escutar o nome, o cachorro latiu, alegre.
-Sim, é você, meu querido – Fernanda se abaixou para agradá-lo e retirar a vasilha quase vazia de água.
O cão os seguiu até a garagem. Lá chegando, ficou meio receoso quando Davi tentou convencê-lo a entrar num carro. Davi se abaixou e o pegou no colo. Apesar de ser enorme, Boris era leve, pois estava desnutrido. Isso só atiçou a sua raiva.
-Eu não tinha visto esse carro aqui, antes – comentou Fernanda, sentindo-se meio aérea.
-Eu aluguei – ele respondeu, colocando Boris na parte de trás do veículo. - Não tenho razão para ter um carro aqui, se não vou ficar muito tempo. Então aluguei.
-Ah... – ela deu a volta, admirando o carro escuro, com vidro fumê. Estilo clássico e impessoal: tudo para que o motorista passasse despercebido. Ela entrou pelo lado do carona. Davi fechou a porta suavemente e deu a volta para assumir o volante.
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Eles estavam na recepção do hospital veterinário, esperando que a veterinária de plantão terminasse de examinar e radiografar Boris. Davi sentou-se na cadeira de plástico e observou Fernanda andar de um lado para o outro. A certa altura, ele a segurou com gentileza pelo pulso, impedindo que continuasse. Ela olhou para ele. Davi bateu de leve no assento ao lado. Relutante, ela sentou e cruzou as pernas. Davi inclinou-se, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e esfregou o queixo distraidamente.
Ficaram assim, lado a lado, por uns vinte minutos. Fernanda estava prestes a se levantar de novo, quando a veterinária surgiu no corredor silencioso.
-O cão é de vocês? – perguntou, fazendo anotações numa ficha.
-Nós o encontramos na praia – Davi se adiantou, quando Fernanda abriu a boca.
-Certo – a veterinária anotou alguma coisa. Davi lançou um olhar de advertência e Fernanda fechou a boca. – Querem passar uma chamada, para tentar encontrar o dono?
-Convenhamos que se o deixaram nesse estado – argumentou Davi – é porque não tem dono. Ou o dono não se importa com ele. Agora é nosso.
-Certo – repetiu a veterinária. – Tem razão. O animal foi muito judiado. Ainda é um filhote, deve estar com uns seis meses. Ainda vai crescer mais.
-Nossa, ele já é um cavalo – Davi deu risada.
-Está um pouco desnutrido e desidratado – continuou a veterinária.
Foi a vez de Davi dizer: - Certo... Faça o que tiver que fazer, verifique se ele está bem e passe os remédios. Vamos fazer tudo que for preciso.
-Bem... A boa notícia é que não tem nenhum osso quebrado ou fraturado. A má notícia é que além de imundo, está com pneumonia. Recomendo limpá-lo e levá-lo para casa, mas não sei se vocês podem aplicar a medicação, que exige que sigam os horários a risca. Podem deixá-lo internado por hoje e a gente faz o tratamento.
Davi olhou pelo vidro da janela, percebeu que o cão olhava de volta para eles com medo. Ele tinha medo de ser abandonado naquele lugar. Acenou para ele. Boris abaixou a cabeça e abanou o rabo.
-Não, ele vem para casa – sentenciou Davi, voltando-se para a veterinária. –Vou aplicar a medicação. Só me explique o que tenho que fazer.
-Nós vamos aplicar – corrigiu Fernanda.
A veterinária sorriu.
-Vou limpá-lo o melhor que puder. Por enquanto, melhor não chegar perto de água. Vou aplicar os antibióticos intravenosos por hoje e vocês providenciam os remédios na farmácia do hospital.
-Tudo bem – ele concordou, acenando com a cabeça.
-Quero repartir a conta – Fernanda disse, assim que a veterinária se afastou.
-Não seja ridícula – ele fez uma careta.
-O cão me procurou, eu me sinto responsável.
Ele parou no meio do corredor e a olhou de cima para baixo.
-Eu pago a conta e você me ajuda a aplicar os remédios. Pode ser? – ele propôs. Vendo que ela não estava satisfeita, acrescentou: – É o máximo que eu vou ceder, professora. É pegar ou largar.
-Você é uma criatura extremamente arrogante, sabia disso? – ela lhe disse, muito séria.
Davi ergueu as sobrancelhas, espantado.
-É... – torceu os lábios, meneando a cabeça. – Vai ver você tem razão. Isso não muda o fato de que vou comprar os remédios. Professores ganham pouco, levam uma vida fodida, apanham dos alunos, apanham dos pais dos alunos, apanham dos traficantes, correm risco de vida... Eu tenho grana. Não vamos complicar as coisas, tá legal?
-Tá legal.
Ele a encarou por mais alguns segundos, sem acreditar que ela concordou rápido com o seu argumento. Sorriu, vendo pelo olhar dela que foi um bom argumento.
-Bom... Somos pais de uma criança, agora. – ele riu. – Por essa, eu não esperava.
-Nem eu – Fernanda suspirou.
Eles avançaram pelo corredor em direção a farmácia.
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Eles voltaram para casa altas horas da noite, com Boris medicado e sonolento. Davi comprou um monte de coisas para cães: cama, brinquedos, ração, petiscos. Aquele cartão dourado internacional dele brilhava de um lado para o outro e tudo o que Fernanda pode fazer foi assistir. Ele colocou a cama de Boris na sala, a meio caminho do quarto de Fernanda e do quarto de Davi. De onde estava, ele tinha a vista de toda a casa e dos seus novos pais.
Na cozinha, ficaram os potes de água e comida.
Davi colocou Boris sobre a cama, ajeitando-lhe a posição. O cão nem se moveu. Só os olhinhos se mexiam, acompanhando o movimento de Fernanda e Davi. Até que ele adormeceu.
Enquanto guardava o saco de ração, Davi percebeu Fernanda esconder um bocejo.
-Vá dormir, professora – ele lhe disse, num tom casual. – Você acorda cedo, eu não. Sou um ser noturno, então, deixe que eu cuide de tudo por aqui.
Fernanda passou a mão sobre a cabeça de Boris que suspirou de felicidade. Ela se endireitou e olhou para Davi com gratidão.
-Obrigada!
Ele balançou a cabeça. – Eu teria feito o que fiz por qualquer um que estivesse sendo ameaçado por um FDP daqueles – deu de ombros, sabendo que não estava sendo muito lisonjeiro. - Você ou o cão.
Desviou os olhos dos dela e continuou guardando as coisas na despensa. Escutou quando a porta do quarto se fechou. Não olhou para trás. Ele não foi sincero com Fernanda, mas nunca a deixaria saber que quando viu aquele brutamonte lhe fazendo ameaças, um pano vermelho agitou-se a sua frente. Se o homem não tivesse recuado, ele teria lhe dado uma surra. Mas não contaria isso a ela. Claro que não. Já bastava toda aquela tensão sexual entre os dois, para ele ainda tê-la a sua volta, cheia de gratidão...
-As mulheres são estranhas...
Davi olhou para baixo. O cão estava tão sonolento que só o rabo se mexia, de vez em quando, em sinal de reconhecimento pela sua presença.
-É, amigão... Não deixe as cadelas virarem a sua cabeça!
O rabo abanou de novo.
-Acho que vou castrá-lo – disse, sorrindo quando Boris não abanou o rabo.
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