Capítulo 7 : Arranjos

Fernanda cochilou pouco antes da aurora e acordou com os primeiros raios de sol. Levantou da cama num salto, esticou os lençóis, vestiu a roupa e guardou o resto das suas coisas nas mochilas. Passou as alças pelos ombros e abriu a porta devagar, para não fazer barulho. A casa estava mergulhada no silêncio e na penumbra. Ela olhou para cima. Pelo visto ele também gostava de dormir com as cortinas abertas - o céu começava a azular e os raios dourados refletiam nas lajotas da cozinha, embaixo... Ela saiu pé ante pé. Escutou a respiração pesada do homem lá em cima. Pelo visto, dormia profundamente. Ótimo. Ela iria embora sem ser notada. Sem maiores vexames. Assim, andou até a porta, mas esqueceu de um detalhe muito importante: desativar o sistema de segurança antes de abri-la. Quando se lembrou disso era tarde demais. O painel acendeu e começou a apitar. Ela fez shhhh, mesmo sabendo que era infantilidade. O apito ecoava por toda a casa, levando-a ao desespero. Digitou o código e o alarme silenciou.

Só que o homem já estava a meio caminho da escada; ela não teve alternativa a não ser esperar que ele se aproximasse, com toda a dignidade de que ainda dispunha, mesmo que as mochilas lhe vergassem os ombros. Ela olhou para ele. Meu Deus, o cara era lindo. Estava só de calça de pijama, daquelas folgadas, de cintura baixa. Ela viu o triângulo invertido de pelos escuros descendo tanquinho abaixo... Terminavam onde ela nem queria imaginar, mas já estava imaginando...

Ele tinha pés de homem. Certo, é lógico que eram de homem. Mas eram pés grandes, bem desenhados e bem cuidados, embora fossem um pouco ásperos, como se ele estivesse acostumado a andar descalço ou fazer muito exercícios. Tudo nele exalava testosterona... E ela, como professora de artes, não podia deixar de reparar. Ela ergueu os olhos, passeando pelas pernas musculosas e continuou subindo... À luz do dia, as tatuagens nos braços e nos peitorais trabalhados quase a fizeram salivar. Fernanda mordeu o lábio, desviando o olhar para a praia. O amigo figurão de Dinho bem que poderia passar por um lutador de MMA. Recompondo-se, ela tornou a encará-lo. Os olhos cinzentos e penetrantes tinham um brilho que deixava clara a mensagem: não mexa comigo. O homem era potencialmente perigoso e se movia como um felino preguiçoso... Fernanda engoliu em seco ao ver que ele estava com os olhos fixos em seus seios. Ele voltou a fitá-la no rosto com um brilho de zombaria no olhar. Parecia estar se divertindo com o exame ao que ela o estava submetendo e decidiu revidar.

O canalha devia estar mais do que habituado a ter as garotas aos seus pés.

Bem... Ela, não.

-Está indo a algum lugar? – ele perguntou, com a voz rouca de sono. Os olhos também ainda sonolentos, embora atentos demais para o seu gosto.

-Não se preocupe, eu não estou roubando a prataria da casa. Só estou indo embora, como prometi.

Ele deu uma risada suave.

-Eu não tenho prataria, por aqui. Mas também acho que sair esgueirando-se não é nada legal da sua parte. – Ele teve o descaramento de tirar as alças das mochilas dos ombros de Fernanda. Aquelas mãos fortes e grandes resvalaram na pele dela, provocando-lhe um estremecimento.

-Ei! Devolva a minhas mochilas!

Ele lhe lançou um olhar de superioridade.

-Não.

-Como assim, não?

-Venha, sente-se aqui – ele colocou as mochilas ao lado do sofá. – Escute o que tenho a dizer e depois, se quiser, pode ir.

Ela respirou fundo e acabou cedendo. Afinal, o gorila estava com as suas mochilas. Sentou-se na ponta do sofá, bem longe de onde ele se sentou. Sua atitude pareceu diverti-lo. Ela ficou imaginando se a considerava uma palhaça.

Depois de observá-la em silêncio, ele disse:

-Acho que começamos com o pé esquerdo.

-Os dois.

-Perdão? – o homem inclinou-se e apoiou os cotovelos nos joelhos, com a testa franzida.

-Os dois pés esquerdos – ela explicou.

-É – as sobrancelhas másculas se arquearam e Fernanda ficou babando (em segredo). – Tem toda razão, começamos com os dois pés esquerdos. Mas eu estive pensando... Até que não é má ideia ter alguém cuidando da casa. Notei que você deixou tudo limpo e organizado. O que foi muito mais do que meu amigo Dinho costumava fazer.

-A casa já estava organizada – ela fez questão de dizer. – Eu apenas a mantive assim.

Ele a analisou por um momento. Modesta. Gostava disso e gostava cada vez mais da proposta que estava preste a lhe fazer.

-Eu gostaria de lhe pedir que continuasse com o acerto que fez com Dinho. Agora, no entanto, o acerto é comigo – ele apontou para o próprio peito, chamando a atenção de Fernanda para as tatuagens intrincadas. Ela foi acometida por uma vontade maluca de passar as mãos naquelas tatuagens, enquanto o peito dele pairava sobre ela, naquela cama imensa.

-Está me ouvindo? – ele a encarou, com o cenho franzido.

-Hein? Desculpe, eu tenho dormido pouco e estou meio aérea – foi a desculpa esfarrapada que lhe ocorreu para o seu pequeno e depravado devaneio.

-É, eu ouvi dizer... – ele ficou muito sério de repente, lembrando do que Dinho lhe contou. – Bem, o único problema, é que não planejo mudar os meus planos só porque tenho uma convidada inesperada. Então, teremos que coabitar esta casa. Quero saber se você é corajosa o suficiente para ficar com um completo estranho ou prefere ir embora.

Boa pergunta. Ela era corajosa?

-Por que quer saber se sou corajosa? – perguntou intrigada. – Pareço tão puritana assim?

-Me perdoe o atrevimento, mas parece sim – ele respondeu meio sério, meio brincalhão. – A questão é que seremos dois estranhos que precisam confiar um no outro. Eu estou disposto a me arriscar. E você?

Ela sentiu o desafio ali. Ficou irritada. Ele achava que ela não saberia se conter e pularia nele? Vontade não faltava, mas partir do pensamento ao ato era outra coisa... Ela decidiu devolver na mesma moeda.

-Eu vou precisar trancar a porta do quarto?

Ele pareceu surpreendido com a pergunta. Fernanda percebeu um flash de indignação passar por aqueles olhos magníficos, antes zombadores e frios.

-Meu bem, nunca tive que implorar por sexo e nunca forcei uma mulher em toda a minha vida. Não pretendo começar com você.

Nossa... Ele falou aquilo, olhando-a como se a estivesse vendo nua na sua frente. Foi de propósito? Para desestabilizá-la? Aqueles olhos cinzentos eram terrivelmente quentes e frios ao mesmo tempo. Isso a deixava confusa. Ela sacudiu a cabeça para clarear as ideias.

-Nem eu, meu chapa – rebateu, surpreendendo a ele e a si mesma. – Se não se importa, vou voltar para o quarto e guardar as minhas coisas. Depois, posso deixar algo para você comer, se quiser.

Ele se levantou, respirando fundo. As tatuagens se expandiram com o movimento dos músculos do peito.

-Não quero que faça nada – respondeu. - Apenas mantenha a casa organizada e fique invisível pra mim.

Ela engoliu em seco, percebendo que ele falava muito a sério. Lá estava um homem vindo de um mundo diferente do seu. Devia ser um mundo estressante. Alucinante. E naturalmente, ele queria paz e sossego. Por isso veio para cá. A determinação em seus olhos lhe dizia que ele iria fazer qualquer coisa para conseguir isso.

-Por que está me deixando ficar? – perguntou ela, num impulso.

-Por que ainda existe um cavalheiro em mim que, de vez em quando, vem à tona. Não é sempre... – ele ergueu a mão larga e apontou o dedo para ela. - Estou esgotando a minha cota para o ano todo com você.

-Sei... – ela engoliu uns bons desaforos. Ao invés disso, perguntou: - Dinho contou o que me aconteceu, não foi?

-Contou – ele não se esquivou da pergunta. Não estava nem aí se ela ficava constrangida ou não. – Fique, aproveite, recupere-se, e tire um tempo para procurar outro lugar... Ou, se gostar daqui, quando eu me for, talvez você possa continuar cuidando da casa.

-Talvez...

-Talvez... – ele concordou, contendo-se. Poderia ter-lhe dito que seria vantajoso para ela não ter que pagar aluguel e ainda viver numa casa fabulosa como aquela, mas decidiu não seguir por aquele caminho. Ela parecia ser do tipo orgulhoso. Se forçasse muito, acabaria indo embora só para mostrar que podia. E ele não entendia a si mesmo, porque gostava de tê-la por perto.

Por enquanto.

Até descobrir se ela era assim mesmo, como se mostrava, ou se era apenas uma fachada para conquistá-lo, como todas as outras mulheres que ele conheceu.

-A propósito, meu nome é Davi Verisak – disse, esperando pelo reconhecimento, que não veio.

Fernanda encolheu os ombros, pensando que aquele nome não lhe era desconhecido.

-Eu sou Fernanda Quintela.

-Agora que já nos apresentamos devidamente, se me der licença, eu quero voltar a dormir – ele pegou as alças e levou as mochilas de volta para o quarto de hóspedes. Acenou, batendo os dedos à testa e voltou para a suíte. Ela ficou parada - observando aquelas costas largas e o traseiro bem modelado se movendo escada acima. Ficou pensando se não deveria ter partido quando teve a chance. Bem, agora é tarde. Além do mais... Ela olhou ao redor. Não é todos os dias que a pessoa fica de graça num lugar tão lindo como aquele.

Fechou a porta e decidiu tentar dormir. Dessa vez o sono veio rápido e profundo. Ela sonhou com desenhos intrincados... As tatuagens de um peito másculo.

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Fernanda acordou um pouco zonza e incomodada pelo calor. Não estava acostumada a dormir até tão tarde. Com um olhar para o relógio, viu já era quase meio-dia. Ela também ouviu o som de uma batida forte e contagiante vindo de algum lugar. O aparelho do som da sala, óbvio, estava ligado. Ela abriu a porta um pouquinho só para espiar. O abençoado ar-condicionado a alcançou. O seu anfitrião estava de calça jeans, descalço e sem camisa, preparando alguma coisa no fogão. Ele estava... Dançando com a música? Sim, era isso mesmo. E verdade seja dita, ele dançava bem. Muito masculino, como um felino preguiçoso sob o sol. Como quem faz amor lentamente com uma mulher. Ela ficou observando com a boca aberta, enquanto o desinibido moreno alto, lindo e sensual dava passos pela cozinha, cantando junto com a música, mexendo com destreza a frigideira para refogar o quer que estivesse refogando... E, diga-se de passagem, exalava um aroma delicioso! Fernanda inspirou, identificando a mistura de frutos do mar. Mas, ela não tinha comprado frutos do mar, então... Ele saiu para fazer compras? Ela dormiu tanto assim? De repente, ele virou de costas e ela teve uma boa visão daquele traseiro bem modelado pelo jeans justo.

Nunca pensou que um homem na cozinha seria tão... sexy.

Bem, ele estava em seus domínios e faria o que lhe desse vontade. Ela não tinha nada que ficar espiando! Deveria fazer o que ele pediu: passar despercebida. Voltou para dentro e trocou de roupa - colocou o biquíni por baixo de uma túnica; calçou Havaianas; colocou um boné por sobre o rabo de cavalo; e pescou um par de óculos escuros de uma das mochilas.

Pegou a esteira e abriu a porta outra vez. A música ainda tocava contagiante, mas Davi não estava à vista. Ela caminhou em direção à saída. Foi quando o viu parado na área de serviço, de costas, falando com alguém ao celular... (em alemão ou algo parecido). Seu tom de voz não soava nada amigável. As palavras saíam como chicotadas. Ela se voltou para a porta. O painel de segurança estava desligado. Sem fazer barulho, ela saiu de fininho.

Fernanda caminhou ao longo da rodovia até alcançar a parte da praia que os banhistas costumavam usar, pois era reta, longa e amplamente acessível. A faixa de areia já estava lotada e ela teve de procurar um cantinho razoável para esticar sua esteira. Ficou lá um tempo, torrando ao sol. Passou duas camadas de protetor e depois foi para a água, pois o sol implacável do início da tarde a deixou encalorada (isso, e o fato de ter andado pela rodovia). Somente quando sentiu frio é que se obrigou a sair de dentro da água para continuar um pouco mais ao sol.

E pensar que os seus colegas costumavam rir quando contava ser natural do Rio de Janeiro, porque sua pele era branca como leite. Nem conhecia as famosas praias cariocas, exceto por Copacabana, Arpoador, Leblon e Tijucas. Afinal, nunca sobrava tempo para ir à praia.

Mas ela adorava o mar...

Ficou por ali o máximo de tempo possível – e fora do caminho do dono da casa. Durante a semana seria mais fácil, já que ela trabalhava o dia inteiro e à noite também.

O pior era o final de semana.

Fernanda intercalou entre o mar e o sol, até que não aguentou mais e foi para o shopping a céu aberto, onde aproveitaria o passeio para se proteger do sol forte. Sentiu tontura e imaginou que fosse por causa da fome. Olhou os preços dos estabelecimentos. Era tudo tão caro em Floripa, de uma maneira geral, mas era mais caro ainda em Jurerê. Já estava quase desistindo e odiando Davi por sua comida estar lá, na geladeira - comida que ela comprou! Devia deixar de ser tola e voltar para casa... De repente, encontrou algo que cabia em seu bolso. Parou num quiosque e pediu o prato do dia: feijão, arroz, batata frita, e salada. Só então, sentada naquele quiosque, ocorreu-lhe que Davi talvez esperasse que ela se juntasse a ele para o almoço. Mas que bobagem! Ele pediu que se tornasse invisível, e era o que estava fazendo. À risca!

Depois de comer, ela caminhou pelas lojinhas, olhando as bugigangas, badulaques e roupas em exposição. Tudo muito caro, para os ricos e famosos de Jurerê Internacional gastarem o seu dinheiro. Fernanda sentiu um vento gelado atravessar a túnica fina e decidiu que já estava na hora de voltar. O sol começava a baixar no horizonte, as nuvens se acumulavam a leste... O tempo estava para mudar.

Ela chegou em casa, sentindo um frio no estômago. Contudo, logo percebeu que não havia motivo para se sentir assim, pois o lugar estava deserto. A moto continuava coberta, no mesmo lugar, só que ele não se encontrava em parte alguma. Ela respirou aliviada.

Olhou para cima e ficou tentada a usar a hidromassagem... Ah, não. Sem chance. Ele perceberia. E se aquele monumento à testosterona aparecesse do nada e a flagrasse pelada em seu quarto? O que podia acontecer? O que ela queria que acontecesse? Ela sabia muito bem e não devia pensar nisso. De jeito nenhum. Balançou a cabeça e foi para o banheiro destinado aos quartos de hóspedes. Voltou refrescada e vestindo um conjunto de shorts e camiseta. Teria seguido direto para o quarto se não fosse atraída por uma travessa coberta em cima do balcão, com talheres dispostos, guardanapo de tecido quadriculado e uma jarra de suco. Um bilhete ao lado, numa letra masculina agressiva e descuidada, dizia:

Para o caso de ter alguma dúvida, deixei para você.

Ela viu que era paeja. Ele sabia fazer paeja! De repente, pensou que poderia comê-la mais tarde. Mas onde será que Davi se enfiou?

Sentou diante da televisão e começou a assistir a um seriado. Dormiu na metade do episódio, sem perceber. Acordou com o som de um motor cada vez mais próximo. Ergueu a cabeça do sofá e viu, pelas panorâmicas, a aproximação veloz de uma lancha de corrida. Agora sim, ela entendeu porque ele não estava lá, mas a moto estava. A lancha diminuiu até chegar a um ancoradouro parcialmente oculto entre os arbustos, mais para baixo da propriedade. Hmmm... Havia uma casa de barcos também. Ela nem tinha reparado. Davi saltou, amarrou a lancha na estaca e voltou despreocupadamente pelo trapiche, carregando uma cesta e uma vara de pescar. Ele estava só de sunga, pelo amor de Deus! Fernanda se endireitou, limpou os olhos e ajeitou os cabelos.

Com os músculos brilhantes de algum tipo de óleo, Mister Testosterona se enfiou debaixo do chuveiro externo, deixou a água escorrer pela cabeça e sacudiu os cabelos como um cachorro feliz. Um cachorrão feliz. O sorriso dele se ampliou - revelando os dentes muito brancos contra a pele bronzeada. Aquele bronzeado era tão... erótico. Imaginou como seria ter aquela pele escura e sedosa contra a sua. Fernanda se afastou um pouco da janela, levando as mãos aos lábios. O que estava acontecendo com ela? Tá certo que fazia tempo que não ia pra cama com um homem, mas... Ela não fazia o tipo da garota no cio. Mas ela estava... Isto é, com ele, ela se sentia assim... No cio.

Tornou a espiá-lo... Ele agora estava diante do tanque, lavando o maior peixe que Fernanda já viu na vida, antes de colocá-lo dentro da cesta de vime e levá-lo para dentro. Ela correu para a sala e tornou a sentar, de maneira despreocupada.

-Olá! – Davi a saudou, enquanto atravessava a cozinha para colocar a cesta sobre o balcão. Então, ele viu o prato que deixou ali, intacto. – Pelo visto, não gosta de paeja

-Ah, não – ela deu um sorriso sem graça. – Eu gosto, mas já tinha comido. Vou deixar para comer depois.

-Depois não vai ficar tão bom – ele resmungou, parecendo nada contente. Ela ficou espantada com a reação dele. – Eu trouxe peixe para depois.

-Eu vi, muito bonito. Pescou em alto mar?

-Sim, fazia tempo que eu não pescava – os olhos dele, de um cinza profundo, estavam calmos. – Quase me esqueci da paz que isso me dá.

Ela se levantou e chegou mais perto. Um erro, porque se sentiu pequenininha perto dele. Davi deveria ter uns vinte, ou vinte e cinco centímetros a mais que ela.

–Eu posso limpar o peixe – ela se ofereceu.

Davi sorriu ausente.

-É? – levantou os olhos maliciosos para ela e ergueu o peixe enorme de dentro da cesta. – Tem certeza que dá conta?

-Tenho – ela disse, depois de um segundo olhando para o peixe.

-Tem certeza? – o sorriso dele se alargou e ela percebeu que já não estava mais falando do peixe.

-Do peixe, eu tenho certeza.

O sorriso dele entortou. O que ele queria era provocá-la.

-E do que mais estamos falando?

Ele se afastou em direção às escadas.

-Vou tomar um banho e me junto a você num minuto.

-Não precisa, eu...

Ele olhou para atrás. – Faço questão.

Deu-lhe as costas e subiu as escadas.

Fernanda ficou perdida por um instante. De repente, sua mente despertou para três assuntos que requeriam sua atenção imediata: como se limpava um peixe, em que país estava, e qual era o seu nome. Ela acabou rindo de si mesma, enquanto procurava o facão e os demais utensílios.

Ela precisava transar, era só isso. Soltou uma breve gargalhada. Talvez fizesse sexo com aquele professor de educação física, o Milton. Um tremendo gato... A quem queria enganar, ele não chegava aos pés de Davi. Além do mais, não havia química alguma entre ela e o Milton. Já com o Davi... Os fogos de artifícios explodiam a todo momento.

Quando Davi voltou, vestindo um short preto e camiseta vermelha, ela quase teve um treco. Um cara assim devia ser proibido de circular por aí.

-Vejo que está adiantando a tarefa – disse ele, chegando junto e tirando o facão de suas mãos enluvadas. Ela aspirou um misto de sal e mar, colônia masculina almiscarada, com algo mais sutil que devia ser o seu cheiro pessoal e inconfundível. Agarrou-se ao balcão por um instante, enquanto ele ficava de costas para vestir o avental por sobre a camiseta.

Davi percebeu que ela já tirou as escamas. Com um golpe preciso ele arrancou a cabeça e o rabo do peixe e começou a cortar o corpo ao meio, como filés. Enquanto fazia isso, ela recolhia os restos e colocava dentro do cesto de lixo.

-Onde você esteve hoje? – ele perguntou, casualmente.

Fernanda parou o que estava fazendo por um instante.

-Fui dar uma volta.

-Podia ter avisado – ele empregou um tom de indiferença. - Poderia ter ido comigo à pescaria. A não ser que não goste de pescarias.

-Eu gosto... Mas pensei que a ideia era ser invisível – ela disse, observando-o torcer os lábios.

-Essa eu mereci. Ouça... – ele suspirou e lançou-lhe um olhar de esguelha. – Eu estava irritado, cansado... Não precisa levar ao pé da letra tudo o que eu disse. Acho que podemos ter um convívio amigável.

Amigável... Ela refletiu e chegou à conclusão de que não, eles não poderiam ter um convívio amigável.

-E então? – ele a instigou.

-Então o quê?

-Onde você esteve?

Espantada com a insistência, ela abriu a boca e fez um "o" mudo, antes de responder:

-Fui à praia.

-Isso eu já percebi – o sorriso dele se ampliou. – Você está vermelha como um dos camarões da minha paeja. Não sabe que deve passar protetor? Tem uma pele muito branca, Fernanda – ele disse num sussurro e desviou os olhos das pernas dela.

Acalorada, Fernanda tentou raciocinar. O que estava acontecendo ali?

-Eu passei protetor.

-Ficou muito tempo exposta, então. Melhor passar algo para essas queimaduras ou vai ficar muito ardida. Vai por mim, talvez você nem aguente colocar uma roupa amanhã.

Pensando bem, ela já estava ficando ardida. Mas não quis dar o braço a torcer.

-Não, estou bem.

-Ficou esse tempo todo na praia? – ela percebeu a incredulidade em sua voz e sorriu, constrangida.

-Não, eu... Também visitei o shopping de Jurerê, almocei por lá, depois voltei.

-Jurerê tem cenários mais belos para serem visitados do que o shopping – ele murmurou, com um meio sorriso. - Eu mostro a você.

Ela pensou em lembrá-lo de que ele não queria ser atrapalhado nas férias, mas conteve-se a tempo. Não queria dissolver o clima tão agradável que se instaurou entre os dois. Ele mesmo ficou desconsertado com a própria oferta. Da onde veio aquilo?

-Tudo bem, - disse ela, observando-lhe o rosto concentrado - mas terá que ser outra hora, porque amanhã eu trabalho.

-Certo – ele sorriu, satisfeito. – Tudo bem, professora.

Davi girou a faca com tanta perícia, que Fernanda teve que sorrir.

-Você parece bem a vontade numa cozinha.

Ele balançou a cabeça, com um sorriso convencido nos lábios.

-Querida, você não tem ideia. Eu adoro cozinhar.

-E como aprendeu?

-Minha mãe de criação era ótima cozinheira.

-Mãe de criação?

-Digamos que a minha mãe biológica não tivesse vocação pra coisa... Longa história – ele girou o pulso da faca. - Dona Arlete foi quem cuidou de mim e de Ana, minha irmã, enquanto nossa mãe viajava por aí. E ela estava sempre fazendo uma porção de coisas gostosas. Enfim, educou a gente para que soubéssemos nos virar na vida. Depois, o resto – ele girou a faca no ar outra vez – eu aprendi viajando pelo mundo.

-Comer, rezar e amar?

Ele fez uma careta.

-Comer, venerar a natureza e curtir a vida... O rezar e o amar eu dispenso. – Ele temperou o peixe, colocou o papel laminado e levou a travessa ao forno.

Ele então arrancou o avental e jogou embolado no canto do balcão. Seus olhos cinzentos se voltaram para ela, que sofreu todo o impacto do seu interesse.

-Agora me fale de você.

Os olhos dela se arregalaram e ele achou graça. A professorinha gostosa era um livro aberto.

-Eu? – ela respirou fundo. - Falar sobre o que, exatamente?

-Comece – ele colocou um som de jazz no aparelho ao lado – contando como uma professora carioca veio parar aqui, em Floripa.

-E-eu... – Ela gaguejou um pouco, enquanto pegava a lata de cerveja que ele lhe ofereceu (cerveja, aliás, que ela comprou). O fato deixou-a menos nervosa, e um tanto indignada. Lembrou-se, porém, de que ele pescou o peixe, preparou, e não iria lhe cobrar aluguel. Por tudo isso, forçou-se a dizer: – Eu me formei em Artes e comecei a lecionar para escolas particulares, até que passei no concurso e me mudei. Fim da história.

-E deixou família para trás? Namorado? – ele foi listando à medida que a cara dela voltava a ficar daquele jeito engraçado que tanto ele gostava. - Amigos? Filhos? Cachorro?

-Família... – ela confessou. – Uma família meio desestruturada, com uma mãe maluca, um pai ausente, e duas irmãs casadas que só olham para o próprio umbigo.

-Uau – agora era a vez dele de ficar espantado. Gostou da sinceridade. - Então, foi uma fuga?

-Ainda não sei se foi uma fuga ou se foi para começar uma nova vida.

-Quem sabe os dois – ele sugeriu, pegando-a pelo braço. Mas quando ela gemeu, ele olhou atentamente. – Claro, as queimaduras. Você disse que estava bem.

Seu olhar preocupado a espantou.

-Arde só um pouco, eu...

-Tire a roupa.

-O quê?

Ele revirou os olhos.

-Coloque um robe se quiser... Olhe, vai ter que confiar em mim.

-Eu não tenho robe e não confio em você.

Davi começou a rir.

-Olha, se quiser andar amanhã para dar aula, melhor confiar em mim. Eu já curti muita praia e já me queimei bastante no passado.

Não parecia o caso agora, - ela avaliou, enquanto aquela mão morena e quente rodeava o seu braço fino... Parecia um tom natural.

-Eu...

-Ande professora! – ele a empurrou em direção ao quarto. – Cadê o seu espírito de aventura? Disse que não era puritana, então...

- E não sou.

-Então tire tudo e fique apenas de robe para que eu possa passar um unguento em você.

-Unguento? – ela se virou para Davi, com um brilho de desconfiança em seu olhar.

-É um preparado especial que vai prevenir uma situação muito desconfortável amanhã.

-Eu vou ficar de biquíni – ela negociou, tremendo por dentro da camiseta.

-Você que sabe, mas só vai dificultar pra esfregar o produto. Além do mais, terá que dormir com o unguento no corpo.

-Prefiro colocar o biquini. – teimou. Aonde já se viu, ficar pelada por baixo do robe com o sujeito passando as mãos nela. Passando aquelas mãos enormes e másculas nela... Ai, Deus!

-Vai ficar com o biquíni molhado? – ele deu um sorrisinho.

Ela o fulminou com o olhar

-Eu não tenho só aquele.

Davi fingiu desinteresse.

-Como eu disse, você é quem sabe – ele lhe deu as costas. – Vou preparar o unguento.

-Como vai fazer isso?

- Cinco colheres de sopa de mel, que eu devo ter aqui no armário – ele abriu a portinhola e sorriu – e tenho mesmo... Mais meia xícara de leite de coco, que você comprou. Não sei para quê. Vou aplicar a mistura na sua pele.

Ela deu um passo atrás quando ele se aproximou.

-Tá legal... Eu...

-Quando estiver pronta me avise. Vou preparar a solução – e a encarou com a frigideira na mão.

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