Capítulo 5 : O esquema
Fernanda quase dormiu debruçada sobre a mesa de trabalho. Piscou algumas vezes tentando espantar o sono. Não adiantou. Para evitar o vexame, levantou-se e caminhou pela sala.
Seus alunos formavam uma classe heterogênea em termos de idade, conhecimentos, origens e objetivos de vida. Como todo público de EJA, a grande maioria era composta de trabalhadores jovens e adultos (idosos, jovens saídos da adolescência e meia-idade) que desejavam retornar à escola para concluir os estudos. A maioria das turmas para as quais Fernanda dava aulas funcionava à noite. E seus alunos chegavam cansados do trabalho, mal conseguindo prestar atenção ao que faziam.
Como ela, agora.
Dar aulas para os alunos da noite, com experiências de vida tão diversas, era um verdadeiro desafio. Fernanda estava sempre pensando – no ônibus, em casa, e na sala dos professores - em formas criativas para mantê-los acordados e estimulados a aprender. Ela fazia gincanas e brincadeiras pelas quais pudesse passar o conteúdo a ser compreendido... Mas, infelizmente, havia atividades tradicionais que precisavam ser mantidas, mesmo que ela realizasse alguns shows pirotécnicos, de vez em quando, como o diretor Bataglin chamava as suas aulas, torcendo o nariz.
Prova era prova. Era necessário parar e refletir para responder. Ela olhou no relógio e disse em voz alta:
-Cinco minutos.
Escutou resmungos e folhas farfalhando. Daqui a pouco soaria o sinal do intervalo e ela recolheria as folhas das respostas. Viu Dona Wilma colocar os óculos perto e longe do rosto, tentando ler o que ela própria escreveu em sua prova. Atrás dela, MC Dieguito, o DJ das baladas, virava o boné para um lado e para outro... Um tique nervoso que tinha quando não sabia o que dizer e tentasse desesperadamente encontrar alguma resposta em sua mente sonolenta e criativa. Ao lado dele, o pedreiro desempregado Ciro fazia uma careta de desgosto para a folha. Um rapaz com grande potencial, mas que não acreditava em si mesmo.
Ela suspirou e continuou circulando por entre as carteiras.
-Profeee – chamou Aninha, enquanto torcia uma mecha do cabelo roxo entre os dedos. – A senhora tá me deixando nervosa andando de um lado pro outro.
Mal saída da adolescência, Aninha era uma legítima representante da geração Nem-Nem – mas também era uma típica aluna problema, que a escola de ensino regular não queria mais por perto. Por isso empurrava para a EJA.
Fernanda andou até ela, viu sua prova em branco e disse:
-Bem, considerando que eu só comecei a andar agora, o seu nervosismo deve estar vindo de outras questões. Provavelmente, por não ter estudado para a prova.
Aninha teve o desplante de sorrir.
A professora caminhou de volta a sua mesa e a sirene soou no instante exato em que sentou na cadeira dura, fria e que puxava fio de sua roupa quase sempre. Os alunos começaram a se levantar e a empilhar as provas ao lado da bolsa dela, sobre a mesa. Fernanda enxergava tudo e todos mais borrados do que o normal. Sua fotofobia noturna acentuava-se quando ela ficava cansada demais. E era este o caso.
O rapaz que morava no quarto da frente resolveu comprar uma bateria e ensaiava à noite. Ele também era um Nem-Nem. Como ninguém reclamava? Porque o pai era dono do prédio. O garoto de vinte e tantos anos tinha o sonho de ter uma banda. E apesar de não trabalhar, ele esperava para ensaiar de noite, entrando madrugada adentro.
Os ensaios ocorriam duas vezes por semana. Porém, quando não era o barulho da bateria, era o barulho do boteco. E quando não era o boteco, era o casal do lado como dois gatos no cio. E quando não o casal do lado, era o casal do outro lado (com o bônus das músicas sertanejas pela manhã).
Fernanda não aguentava mais.
Juntou as provas dos alunos e saiu pelo corredor, em direção à sala dos professores. Lá, a balbúrdia não era muito menor do que entre os alunos, contudo, havia aquele sofá tentador... Que ela evitou, senão cairia fulminada e não escutaria o sinal soando para o retorno à sala de aula. De propósito, ela pegou uma cadeira dura e começou a corrigir as provas. O diretor passou por ela fazendo um biquinho com os lábios. O nojento. Desde que ela começou ali, o sujeito ficava assediando e sugerindo que poderia melhorar ou piorar a sua nota (já que ela se encontrava em estágio probatório).
Fernanda o ignorou e continuou corrigindo as provas. Cinco minutos depois, Jussara sentou-se ao seu lado.
-E aí?
Fernanda encolheu os ombros sem interromper o a correção.
-Nossa, amiga! – disse Jussara. - Está tão mal assim, é?
Depois que Fernanda contou-lhe sobre o garoto da bateria, Jussara compreendeu que Fernanda estava no limite.
-Olha... Meu irmão, Dinho, é amigo de um figurão. Não o conheço, porque Dinho não comenta muito, mas...
Fernanda estreitou os olhos, tentando raciocinar... Ah, sim, o irmão de Jussara era um surfista em ascensão na ilha. Jussara lhe contou que ele venceu um campeonato no Havaí. Ela estava toda orgulhosa do irmão, que assinou contrato com uma importante marca esportiva. O figurão lhe cedeu a casa na praia por um tempo.
-Meu irmão meio que cuida do lugar e aproveita para surfar, mas agora que os campeonatos estão começando... Dinho quer pegar onda na Austrália, mas não quer deixar a casa sozinha. Andei conversando com ele sobre a sua situação e ele perguntou por que você não fica na casa de praia? Assim estará ajudando-o também.
-Mas e o tal figurão, será que não vai achar ruim?
Jussara encolheu os ombros.
-O amigo de Dinho quase nem aparece por estas bandas e quando aparece, não é nessa época. Ele vem de vez em quando, no final do ano... O que significa que você tem o ano todo pela frente. Paz, silêncio, relax... Só terá de cuidar da casa pro Dinho...
-Não sei não.
Jussara suspirou. Pelo menos a parte dela, ela fez. Mas no fundo sabia que Fernanda não ficaria satisfeita com aquele arranjo.
-Pensa com calma e depois me diz. Meu irmão tem que viajar na sexta-feira para Austrália e terá de deixar a casa fechada, sozinha... Se você não puder ficar, ele vai ter que encontrar outra pessoa ou ligar para o amigo e pedir que providencie uma firma que faça a manutenção, enquanto ele está fora.
Fernanda fez uma careta.
-Vou pensar.
O sinal soou. Ela teve de retornar à aula, mas não pensou mais no assunto. Na sua cabeça, a questão estava resolvida. Não iria cuidar da casa de uma pessoa que nem sabia que ela estava cuidando de sua casa. Atravessou a escuridão do terminal, pegou ônibus e chegou em "casa" depois da meia-noite. Deixou as coisas na única mesa do quarto e depois se jogou na cama, para ser acordada pontualmente às três e quarenta e cinco pela sessão de sexo do casal vizinho.
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No dia seguinte, ela estava tão cansada que teve um apagão. Simplesmente caiu desacordada na escada do ônibus. Foi socorrida e levada para a emergência do Hospital Missioneiro Caridoso. Ao chegar lá, porém, os atendentes notaram que ela não tinha identificação. Alguém aproveitou a confusão para roubar sua carteira, contendo um terço do que sobrou de seu salário no Rio, cartões e documentos. Por sorte o celular foi esquecido em "casa".
Quando acordou, ela tinha um corte na cabeça recém costurado e estava num lugar que nunca viu. As enfermeiras lhe disseram que teve muita sorte de não ter morrido. O médico disse que a privação de sono fazia coisas que as pessoas duvidavam. Ela teria que cuidar do sono... Mas como?, pensou Fernanda, desesperada. Ela pediu para chamarem Jussara, que apareceu lá com o irmão.
Levou um dia para receber alta... Dinho ajudou-a a registrar BO e cancelar cartão de crédito e débito. Ela teria que fazer novos documentos. Para sua sorte, Dinho se prontificou a levá-la até a delegacia. Entretanto, era preciso ter um comprovante de residência que o quarto & banheiro não lhe oferecia... Dinho sugeriu usar o endereço da casa de praia para o pagamento da fatura de telefone celular. Então, ela alterou o modo de pagamento da fatura, que era feito com débito em conta, para receber a fatura por e-mail. Entrou no site da telefonia e imprimiu direto de lá, apenas para levar à delegacia. Esperava que isso fosse suficiente. Tudo se resolveu de maneira rápida. O irmão de Jussara foi muito legal. Tão legal que ela decidiu aceitar o convite de visitar a tal casa na praia para conhecê-la. Ele a levou em sua moto Harley até Jurerê Internacional, um bairro de ricos e famosos, com suas mansões e carrões.
-Eu não vou dar conta de limpar uma casa desse tamanho – disse ela perto do ouvido de Dinho, enquanto passavam pelas mansões. Ela estava agarrada em sua cintura, com medo de cair. Na verdade, detestava andar de moto.
-Não se preocupe, - disse ele, erguendo a voz acima do barulho do motor e do vento. – A casa de Davi não é assim.
Davi... O figurão? Fernanda começou a imaginar o sujeito: baixinho, careca e barrigudo; que usa bermudão e chinelão raider; que não para quieto num lugar só, já que precisa administrar sua rede de supermercados ou fábrica de sapatos; e que, de quebra, encontra as amantes distribuídas pelas cidades por onde passa.
Tipo um caixeiro viajante com grana.
Ela suspirou, resignada, enquanto a moto entrava na avenida beira-mar e avançava, subindo e serpenteando em direção ao Balneário Daniela. A vista da praia surgiu, inesperada. O céu azul terminava no azul do mar, e o verde das colinas encontrava os rochedos que recortavam o litoral. Ela nunca viu um lugar tão lindo. Não teria condições de viver num bairro como aquele com o seu salário, onde os carros mais baratos eram Audis e Mercedes. Onde havia shoppings luxuosos a céu aberto e beach clubs distribuídos pela orla. Aquela era a Ibiza brasileira, Fernanda pensou, concluindo que por mais lindo que fosse o cenário, nunca iria morar perto de um beach club. Ela já vivia perto de um que não a deixava dormir... Só que ao invés de um beach club era um botecs mesmo...
A moto deixou para trás o aglomerado de casas e estabelecimentos vip, ultrapassou uma fortificação antiga, do tempo do Brasil Colônia, e se embrenhou numa estrada cercada de verde, a qual despontou em um trecho da praia cercado por rochedos em ambas as extremidades. Havia uma única casa ali, aninhada no centro da praia. Era pequena, sólida, do tipo rústico. Mais para um chalé grande do que uma casa. A moto parou diante de um portão enorme que só abria com senha. Então, apesar do chalé ser algo simples, toda a segurança que envolvia o entorno da propriedade não era. A moto desceu a ladeira, tomando o caminho da alameda onde os carros deveriam manobrar e estacionar. De frente para uma garagem de pedras e madeira. A casa era toda de pedras, madeira e vidro. Como uma mistura de antigo e moderno. Era estranhamente bela, pensou Fernanda. E a conquistou completamente. Ficava de frente para a praia, tendo entre a construção e o mar apenas uma faixa de areia muito alva. O mar, ali, era calmo, com pequenas ondas que quebravam na areia produzindo um som hipnotizante. Algumas gaivotas passaram gritando por sobre suas cabeças e Fernanda sorriu.
Impossível resistir. Sentiu-se involuntariamente empolgada com o lugar.
-Venha – Dinho abriu um sorriso Colgate no rosto curtido de sol. – Vou lhe mostrar o interior.
Eles atravessaram a calçada feita de pedras que os conduziu por um gramado bem aparado. Fernanda ficou imaginando se teria que cortar a grama também. Calma, aí! Quem disse que eu vou ficar! Parece que seu coração já tinha se apaixonado pela casa e tomado uma decisão.
A razão começou a arrancar os cabelos.
O jardim era um show a parte. Integrado à construção, com cactus e suculentas coloridas a criar um mosaico de cores que acompanhavam o trajeto. Moreias em vasos mostravam a intenção do dono em ter plantas resistentes e de fácil manutenção. O caixeiro viajante rico chamado Davi devia ser um cara muito prático. Havia cachos de Giestas amarelas entremeadas com xanadus e helicônias vermelhas. E mais para frente, cercada de pedras, ela avistou canteiros de azaleias, bocas-de-leão, amores-perfeitos, e beijos rajados.
Dinho acompanhou o seu olhar e explicou:
-São plantas de fácil trato. Você só tem que molhá-las uma ou duas vezes por semana, pela manhã. Nunca à noite. Quanto ao PH do solo, adubo e poda, uma empresa especializada vem cuidar dessa parte uma vez a cada dois meses.
Eles ingressaram na casa pela área de serviço anexada à garagem; parecia um arranjo bagunçado e harmonioso ao mesmo tempo. Havia uma máquina de lavar roupa ali dentro. Ainda bem.
Ao pisar na sala de estar, Fernanda suspirou de emoção. Aquela casa era o sonho dela. Não como aquelas casas de capa de revista, mas porque parecia ser um lar de verdade. Móveis rústicos e fortes, muito bem cuidados e tapetes coloridos decoravam o ambiente. E grandes janelas que davam para um terraço fabuloso com a praia dominando todos os ambientes da casa. Havia uma escada interna que levava ao dormitório principal – a suíte - visível já do térreo. Não havia paredes lá em cima, como se o dono fosse claustrofóbico e precisasse de todo o espaço para poder se esparramar. Uma cama gigante dominava o quarto lá em cima.
Só então Fernanda se deu conta de duas coisas: primeiro, que a casa parecia pequena, para quem a visse de trás, mas ela se alongava em direção à praia... Era espaçosa, sem dúvida; segundo, que o figurão devia ser um figurão mesmo. Não um comerciante com mais dinheiro que a maioria. Provavelmente um traficante, um chefão da máfia, um...
-Existe mais dois quartos no térreo. São quartos pequenos, mas confortáveis. – Dinho estava dizendo. - Contudo, você pode escolher qualquer um, inclusive o lá de cima. Não tem importância.
Ela pensou que seria uma grande ousadia dormir naquela cama. E ela estava mais do que disposta a experimentar.
-E então? – perguntou ele, ansioso.
Fernanda percebeu as malas dele e a prancha de surf num dos cantos. Realmente, ele devia estar ansioso para deixar a situação resolvida.
-Se o dono da casa concordar que eu cuide dela, eu aceito. Mas só depois que você falar com ele.
Dinho acenou positivamente com a cabeça, sorrindo. Como se a questão já estivesse resolvida.
-Eu vou ligar para ele hoje mesmo. – Ele se viu compelido a dizer, quando Fernanda olhou para ele com cara feia. - Se der tudo certo, você topa? – Dinho estendeu a mão.
-Topo – ela apertou a mão do surfista, selando o acordo.
Ele sorriu de orelha a orelha, francamente aliviado.
-É isso aí, sister!
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