Capítulo 10 : O calhambeque da professora
Davi estava sentado no trapiche, admirando o por do sol, quando ouviu o barulho de um motor mal regulado vindo lá de cima. Seu ouvido treinado rapidamente identificou os problemas do carro... Ele bem podia imaginar a sucata que a professora comprou. Com o cão fielmente postado ao seu lado, Davi retirou os pés de dentro da água e se levantou num pulo. Retornou pelo caminho de pedras para a parte superior da casa, deu a volta e se deparou com o veículo. É... e não se enganou.
Fernanda saltou de dentro de um Escorte 89 que já viu dias melhores. Com uma careta, ele se aproximou para tirar a sacola de compras de suas mãos. Seus rostos ficaram muito próximos quando ele se inclinou para avaliar o carro por dentro.
-Mas é uma carroça! – com o canto do olho, viu que Fernanda levantou o queixo e se esquivou dele, passando por baixo de seu braço.
-É o que cabe no meu salário de professora. Lembra? Vida fodida, etc?
-Sem querer ser ofensivo...
-Então, não seja – ela o cortou.
-Preciso avaliar o desempenho desta caranga na estrada.
-Fique a vontade – disse, deixando-o para trás. Davi correu para alcançá-la e ficou observando-a guardar suas compras na cozinha.
-Comprei algumas coisas para o Boris – ela mostrou as latas de pedigree. Davi queria lhe dizer que estava tudo sobre controle, mas sabia que Fernanda precisava se sentir participativa no que diz respeito ao cão. Ele não iria privá-la disso.
-Vou levá-la para o trabalho amanhã, no seu "novo" carro, e depois de revisá-lo na oficina, vou buscá-la para que possa testá-lo.
Ela parou tudo o que estava fazendo para encará-lo.
-Não precisa ter todo esse trabalho.
-Não é trabalho algum. Mexer em carros é o meu passatempo.
Quem tinha um passatempo como aquele? Fernanda se perguntou, intimamente.
-Se precisar trocar alguma coisa, você...
-Eu te apresento o orçamento, pode deixar – ele se antecipou, para tranquilizá-la, mas sem ter nenhuma intenção de fazê-lo.
-Combinado, então. E mais uma vez, obrigada!
-De nada – ele ficou sem jeito de repente... Limpando a garganta, perguntou: - Quer dar uma volta na praia, comigo e o Boris?
Ela fez uma cara de pesar. Na verdade, tinha planejado não deixar que os encontros entre os dois durassem mais do que o estritamente necessário.
-Tenho que corrigir as tarefas dos alunos, antes de dormir – explicou, desculpando-se.
-Tudo bem – disse ele, chamando o cão. Boris o seguiu de imediato.
Fernanda ficou observando os dois se afastarem quando o seu celular tocou. Era o diretor Bataglin. Ele veio com um papo tão mole que deixou Fernanda pasma.
-Fiquei sabendo que está morando numa casa incrível na praia. Não vai convidar seus colegas para conhecer?
Nem pensar, seu tarado!
-Não tive tempo para nada, quem sabe no futuro – ela se esquivou. Afinal, não poderia dizer que precisava da autorização do dono. E o dono morava junto com ela.
Mas como o diretor ficou sabendo da casa? Jussara não foi, pois já tinha dito que o dono não queria ser mencionado por aí. Coisa que o próprio Davi reforçou, quando se conheceram.
Será que foi o Milton?
-Bom, sugiro que arrume tempo, querida – disse o diretor. - Estou ligando para avisar que amanhã você terá de compensar aquela aula que cedeu para a Clélia. Chegue à primeira hora.
Era difícil para ela conseguir chegar tão cedo, pois morava longe. Além do mais, como diria a Davi que ele teria que madrugar com ela? Por outro lado, não estava em condições de exigir nada pelo tempo que durar o estágio probatório. O diretor assinava o seu relatório de desempenho. Podia ferrar a sua vida.
-Está bem – ela murmurou, desligando.
Davi a surpreendeu olhando feio para o celular.
-O que foi?
-Acho melhor deixar o carro contigo e pegar um ônibus.
-Não.
-Como?
-Pra que comprou o carro, se vai de ônibus?
Ela fez uma careta.
-O diretor ligou agora pouco. Ele quer que eu vá de manhã cedo.
-Sem problemas.
-Mas você não tem que madrugar comigo.
-Não, eu não tenho – ele sorriu. - Mas eu vou.
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Na manhã seguinte, quando Fernanda saiu do quarto, Davi estava esperando por ela. Sua expressão não denunciava o esforço que ele teve que fazer para ficar de pé àquele horário. Ela reconheceu que deveria parabenizá-lo por isso.
-Você parece... acordado – ela riu e serviu-se de uma caneca de café da máquina.
-Sim, eu pareço – ele resmungou. – Mas não sei se realmente estou. Você se importa se o Boris for com a gente. Não quero deixá-lo sozinho.
-Tudo bem, - disse ela - analisando discretamente a roupa velha e suja de graxa que ele estava vestindo. – Acho que ele vai adorar o passeio, não vai, garotão?
Boris abanou o rabo e latiu.
-Ele parece com um dogue alemão, né?
-Não – Davi riu. – Parece um poodle gigante, com orelhas pontudas. Pronta para ir?
Fernanda fez que sim, levando a caneca para a pia.
-Deixe aí, depois eu lavo.
Ela ficou constrangida. Pegou a esponja e começou a lavar.
-Ei – ele colocou a mão sobre a dela. – O que foi que eu disse?
Ela ficou tentada a lhe dizer que não era sua hóspede, e sim, uma inquilina indesejada. Não disse nada porque não quis criar caso. Pegou suas coisas e entrou no carro. Ele deu a volta e abriu a porta para um serelepe Boris entrar... Em seguida assumiu a direção. Fernanda respirou fundo quando o controle remoto acionou o portão da entrada/saída.
Verdade seja dita... Apesar de correr um pouco demais para o gosto dela, Davi dirigia muito bem. Com uma perícia de causar inveja. Ela ficou observando, fascinada, aquelas mãos fortes trocarem a marcha... Ele acelerava e freava nos momentos certos. Entretida, ela mal conseguiu apreciar a vista da estrada à beira-mar...
Ele fez algumas caretas, quando o motor pareceu engasgar, e depois resmungou um pouco sobre trocar isso ou aquilo. Quando ele freou diante do primeiro semáforo que encontraram e o carro pareceu derrapar, ele a encarou como se a culpa fosse dela.
-Credo, Fernanda! Você está correndo risco de vida com um carro nessas condições.
-E você gosta de achar cabelo em ovo – ela retorquiu, só pra não ficar pra trás.
De repente, Davi começou a rir.
-Como é que é?
-Não existem problemas até você procurar por eles. Quem procura acha! - Deus, até ela se sentiu infantil com aquela resposta. Mas, não encontrou outra melhor; afinal, ele estava coberto de razão.
-Tá, você quer dizer que tem vocação para avestruz, isso sim – ele rebateu, meio irritado, meio divertido.
A discussão se estendeu, até que Boris se enfiou entre os dois e latiu alto, erguendo o focinho para o teto, embora o olhar intercalasse entre um e outro. De repente, os dois estavam rindo do ridículo da situação: um cão tendo que mediar uma discussão de casal. Fernanda e Davi tiveram o mesmo pensamento. A palavra "casal" ficou pairando no ar, fazendo com que ambos mergulhassem num silêncio constrangedor.
Ele estacionou na esquina do centro de educação, conforme as instruções de Fernanda. Afinal, ela não queria que o pessoal os visse juntos, para não ter que dar explicações. Quando percebeu que alcançaram certa distância da escola, Davi comentou:
-Posso te deixar na frente.
-Não precisa – disse ela, já saltando do veículo.
-Não quer que o Miillltooonnn veja você comigo? – ele perguntou, sarcástico.
-Também – ela respondeu, batendo a porta e andando rapidamente pela calçada, sem olhar para trás.
Davi resmungou um pouco, então olhou para Boris, que retribuiu o olhar, expectante.
-Ela vai ver só uma coisa – ele disse, colocando o carro em movimento.
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Fernanda estava de pé diante da turma, enfrentando as reações mais variadas de seus alunos. Mas estava preparada...
-Exposição, professora? Qual é? – disse o MC Dieguito.
-Não é para vocês se preocuparem – ela foi logo explicando. - A tarefa é em grupo. – Uma forma de provocar a interação e a troca de experiências entre as diferentes gerações de alunos. - Cada grupo deve passar em revista os seus dotes artísticos, aptidões, gostos pessoais e interesses para descobrir de que forma poderão contribuir para o objeto da exposição.
-Objeto de exposição?
-Cada grupo vai decidir o que pretende expôr, conforme as idéias que tiverem. Pode ser pintura, desenho, artesanato, tapeçaria, bordado, fotografia.
Eles começaram a rir dos exemplos.
-Xiii, professora, aqui ninguém sabe fazer essas coisas.
-E essas fotos bem boladas que você tirou da última balada – Fernanda comentou, causando surpresa em Dieguito.
-A senhora viu, é? – ele indagou, mexendo-se com desconforto na cadeira. Seus olhos, porém, brilharam de orgulho.
-Claro que vi – ela respondeu, caminhando por entre as fileiras de carteiras. - Você pegou ângulos fantásticos, com uma iluminação ambiente que favoreceu a imagem.
-E você, Sirley, com a sua tapeçaria...
-Ahnn, - ela fez um gesto com a mão de pouco caso – é só passatempo.
-Mas que você desenvolve lindamente. Sua tapeçaria pode decorar os ambientes, com cores vívidas e harmoniosas.
-E quem não tem dom para nada? – quis saber Laércio, o pedreiro.
- Não é qualquer um que faria o que o senhor faz. Imagine só, construir uma casa. Certamente, quem constrói uma casa, tem aptidão de sobra com a arte manual.
Ele ficou todo bobo com o elogio, mesmo assim, disfarçou e fez lentamente que não.
-O que o senhor gosta de fazer?
-Jardinagem – ele respondeu quase em desafio. – Mas, eu também toco gaita.
-Perfeito – Fernanda escondeu um sorriso diante do olhar incrédulo do aluno. - Vamos ver os passatempos preferidos e habilidades de cada um de vocês. Por favor, informem na ficha que eu passei para ser preenchida e entregue, junto com os nomes dos integrantes de cada grupo.
Os alunos arrastaram as cadeiras para se aproximarem uns dos outros e estudar as fichas. Formaram grupos de quatro alunos cada, mas duas pessoas sobraram. Elas podiam se juntar a outros grupos ou... Dona Wilma olhou para a professora e disse baixinho:
-Ele pode fazer o trabalho comigo, mas só se tomar banho.
Fernanda olhou para o fundo da sala, onde Márcio se sentava separado dos demais. Ele era um caso a parte... Tornou-se morador de rua aos 12 anos, quando a mãe morreu e os parentes não quiseram saber dele. O rapaz saiu de sua cidade, no interior do Paraná e chegou a Florianópolis de carona. Achou que obteria trabalho na temporada de verão, mas só conseguiu alguns bicos, como ajudante de pedreiro e servente. Nada que pagasse o suficiente para ele alugar um canto. Ele passou a viver pelas ruas... E por isso, não tomava banho com frequência. Márcio decidiu que precisava voltar a estudar, caso quisesse se candidatar a vaga de vigilante, ou porteiro... Havia uma série de exigências em termos de escolarização que lhe fechavam as portas do emprego.
O acolhimento e a motivação eram as marcas registradas do ensino de jovens e adultos. Muitos vinham para a escola, desmotivados, e poderiam desistir ao menor sinal de problemas e dificuldades. Fernanda fazia de tudo para acolher os seus alunos e incentivá-los a continuar. E no caso de Márcio, em especial, ela se dedicava em dobro para ajudá-lo em sua jornada para conquistar um diploma (e, quem sabe, assim, sair das ruas). Por outro lado, ela entendia a situação dos outros estudantes... Há algum tempo, ela vinha pensando numa forma de solucionar o problema. Aproximou-se da carteira dele e disse baixinho:
-Márcio, venha comigo. Eu tenho uma coisa para você.
O aluno se levantou em silêncio e a seguiu para fora da sala. Por sorte, ninguém reparou, pois discutiam acaloradamente a forma de conduzir o projeto que a professora lhes confiou.
Eles desceram as escadas e enveredaram pelo corredor.
-Está vendo o banheiro dos fundos? – ela apontou. – Tem chuveiro. Você vai lá tomar banho, que já-já eu vou te passar uma muda de roupas limpas. Essa é a minha condição para que você continue frequentando as minhas aulas. Concorda?
Márcio balançou a cabeça.
-Sim, professora – ele caminhou pelo corredor, hesitante. Olhou para trás e disse: - Mas não terei como trocá-las e...
-Um problema de cada vez. Deixemos para resolver depois como faremos para você se apresentar sempre asseado na escola. Por ora é banho e roupas. Rápido, que não temos o dia todo.
O aluno ficou emocionado, mas disfarçou.
-Obrigado.
-Não há de quê – ela sorriu e afastou-se. - Você pode me agradecer tirando boas notas e se formando.
-Sim, senhora – ele riu, desaparecendo dentro do banheiro.
Fernanda procurou a servente do colégio.
-Dona Hilda – ela sorriu para a senhora que cuidava da limpeza; ela estava na cozinha conversando com a merendeira.
-Oh, olá professora – a mulher se afastou até o armário e trouxe a sacola. – Aqui está. Espero que estejam do número certo.
Fernanda tirou a roupa de dentro e avaliou.
-Ah, sim. Com certeza, vão servir. – Olhou para a mulher. – Muito obrigada!
A mulher sorriu.
-O incentivo que a senhora está dando àquele aluno é algo que todos deveriam fazer.
Fernanda franziu as sobrancelhas.
-Dona Hilda, a senhora por acaso sabe aonde ele passa o resto do dia, quando não está na escola?
-Ouvi dizer que se não está numa das salas vazias, fazendo os deveres, ele vai pra biblioteca pública da cidade até o horário do fechamento. – Claro, lá ele pode estudar e ler. - O Professor Adalto me disse que viu o Márcio dormindo ao lado da catedral, junto com outros sem-teto.
A parte da marquise do prédio atrás da catedral servia como dormitório para muitos mendigos. Não havia nenhum trabalho efetivo do poder público para solucionar aquele problema social, em particular. Balançando a cabeça, Fernanda retornou ao banheiro.
Bateu na porta e disse:
-Márcio, tem uma sacola de roupas aqui. Você veste estas e entrega as antigas para Dona Hilda. Ela se ofereceu para tentar limpá-las e costurá-las. Se ela conseguir, a sacola de muda vai ficar sempre comigo, pra você trocar. Basta pedir.
-Sim, senhora.
Ela deixou a sacola encostada na porta e voltou para a sala de aula.
-Tudo certo, Dona Wilma – ela disse à aluna idosa, com discrição. - Daqui a pouco, Márcio vai se juntar ao seu grupo. Enquanto ele não vem, não gostaria de me dizer o que a senhora teria interesse de apresentar na exposição?
-Bem, eu sempre quis ser modista... Trabalhei a minha vida toda como costureira, sabe?
-Verdade? - Os olhos de Fernanda se arregalaram e a velhinha sorriu, com prazer.
– Mas, hoje em dia, já nem sei o que está na moda ou o que não está.
-Posso ajudá-la com isso, - disse a professora, empolgada - eu também já quis ser modista, ou estilista como muitos chamam hoje em dia.
A senhora ficou agradavelmente surpresa.
-Estilista é um nome mais chique.
Elas conversaram mais um pouco, quando Márcio entrou na sala com uma aparência bem melhor. Ele chegou junto à professora, pedindo licença. Fernanda aproveitou o momento:
-Márcio, Dona Wilma gostaria de criar algo voltado à costura, vamos ver como você se encaixa nos planos dela?
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O sinal do término da aula soou e Fernanda refletiu sobre os resultados, imaginando se teria de modificar sua estratégia de aula diante das diferentes reações de seus alunos. Ela recolheu as fichas para analisar o perfil de cada um e encontrar uma linha de intervenção. Algo que os deixasse interessados e motivados a interagir em grupo.
Enquanto ela remoia o assunto, Otacília atendia dois alunos no balcão, insatisfeitos com a nota dada pelo professor de matemática. Estavam irritados e dispostos a prestar queixa. Otacília chamou o diretor para que ele se entendesse com as criaturas revoltosas.
Armando acompanhava o desenrolar da situação de longe. Quando Otacília veio sentar-se ao seu lado, ele deixou de prestar atenção à conversa do diretor com os alunos, para se lamentar.
-Preciso lançar os boletins no sistema e essa porcaria de internet não para de cair – reclamou ele. – Vou ter que terminar de fazer em casa. Vou gastar da minha internet. De novo!
Otacília lançou-lhe um olhar sábio.
-Como sempre.
-Com licença – disse uma voz masculina que mexeu com os nervos inabaláveis da secretária. Ela se voltou para o balcão e deu de cara com um pedaço de mau caminho, como dizia a sua mãe.
-Pois não? – perguntou, batendo as pestanas para aquele belo par de olhos cinzentos.
-Eu estou procurando a Professora Fernanda – ele disse, apoiando as mãos fortes sobre o tampo do balcão.
Ao ouvir o nome de Fernanda, Armando parou de digitar. Otacília mediu o homem com o olhar.
-Ai, coitadinho do Milton – foi tudo que ela pode dizer.
-Perdão? – Davi perguntou, com um sorriso cheio de charme.
-Nada, nada... – ela se apressou em dizer: - A Professora Fernanda já deve estar de saída. Por favor, sente-se!
-Estou bem – Davi recusou com um gesto. Afastou-se para o canto e ficou observando o vaivém das pessoas.
Otacília conhecia aquele rosto de algum lugar. Ela voltou para o computador e retomou suas planilhas. Vez por outra, lançava um olhar de interesse para o estranho. De repente, lembrou-se... Se é que a memória não lhe faltava. Digitou algo na internet, e o resultado se confirmou. Otacília levantou os olhos arregalados da tela do monitor para a figura solitária no balcão.
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-Que história é esta de fazer uma exposição com os alunos sem me avisar? – dizia o diretor Bataglin, em seu tom desagradável, como de costume.
Fernanda estava parada no corredor, a meio caminho da secretaria. Os demais professores e alunos passavam ao redor deles... O rosto dela esquentou, diante da intenção óbvia de humilhá-la na frente de todos. Respirou fundo e respondeu:
-Eu pensei que o professor fosse o responsável por suas aulas. De qualquer maneira, nós ainda não batemos o martelo sobre a atividade. Estamos só esboçando a idéia. Tudo vai depender do retorno dos grupos. – Ela fez uma pausa, trocando os livros de mão. - Naturalmente, quando o projeto estivesse pronto, eu pretendia conversar com você.
Ele cruzou os braços, e a encarou num misto de condescendência e irritação.
-Enganou-se, querida. Você tem que falar comigo a cada etapa.
Fernanda abriu a boca para responder, mas uma voz familiar a interrompeu:
-Ah, aí está você. – Davi juntou-se a ela, deixando-a em estado de choque. Ele olhou para o diretor Bataglin como se só naquele momento o tivesse visto ali, parado. Postou-se ao lado da professora como um anjo vingador – E você deve ser o famoso Diretor Bataglin... Ouvi falar muito sobre você. – Observando a expressão confusa e carrancuda do homem, Davi acrescentou: - Imagino que o senhor esteja aí parado para dar os parabéns à professora fantástica que tem em seu quadro funcional, e não para assediá-la.
-O quê? – Bataglin fechou a cara de vez. – Como é que é?
-Vamos – Fernanda interrompeu a conversa, puxando Davi pelo braço. Contudo, foi o mesmo que tentar mover uma montanha.
-Minha amiga do Clube 15 vai entrar em contato com você para falar da exposição – ele disse ao diretor, sem desviar os olhos.
-Vamos – Fernanda insistiu, empurrando Davi com todas as suas forças. Ele cedeu, com relutância.
Bataglin avaliou as roupas rasgadas e sujas de graxa do homem, sem esconder o seu desprezo.
-Até parece – resmungou, enquanto os dois se afastavam pelo corredor.
-Quem aquele cara pensa que é? – Bataglin balançou a cabeça.
Do balcão, Otacília abriu e fechou a boca diante da cena que acabou de presenciar. Claro que a pergunta de Bataglin foi retórica. Ele retornou a sua sala, deixando-a ali sozinha.
Ela virou-se para trás e trocou um olhar com Armando.
-Nós o reconhecemos, não reconhecemos?
-Com certeza – Armando riu baixinho.
Os dois levaram os dedos aos lábios, fazendo sinal de silêncio. Queriam mais era ver o circo pegar fogo.
Milton entrou na secretaria a tempo de ver Fernanda se afastando pela calçada, acompanhada de um cara. Ele logo reconheceu o misterioso dono da casa de praia.
-O que esse cara pretende? – ele falou consigo mesmo, apoiando-se no balcão.
Otacília comprimiu os lábios diante de outra pergunta retórica. Observou Milton observar o casal caminhando em direção ao carro que o primo dele vendeu à professora.
Alheia à plateia, Fernanda se controlou até alcançarem o carro.
-Você não devia ter se metido - desabafou. - E agora? Eu nem tenho a atividade planejada ainda! Não devia ter inventado que o Clube 15 vai ceder seu espaço super disputado para nós, humildes mortais.
Davi nem se abalou.
-O clube vai ceder – ele piscou um olhou e abriu a porta do passageiro pra ela, num ato galante que fez Otacília suspirar lá de dentro da escola. – E agora você vai se virar nos trinta, querida.
-Como é?
-Dê o seu jeito – ele sorriu. – Faça acontecer.
Depois desse comentário, Fernanda embarcou no veículo como um autômato. Nem percebeu que o carro estava completamente recauchutado. Só quando Davi começou a falar, é que ela se deu conta.
-Eu troquei algumas peças, mas o calhambeque agora ronrona como um gatinho – ele disse, todo animado. – Depois te passo o orçamento. Vou dirigir até o CIC. Você assume a direção a partir daí para experimentar.
Distraída, tudo o que ela pode dizer foi: -A-han... – não deixava de pensar no lance do Clube 15.
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Horas depois, Bataglin estava sentado diante de uma pilha de relatórios quando o telefone tocou. Ele atendeu, distraído.
-Diretor Bataglin?
-O que é Otacília?
-Uma ligação importante. Acho melhor o senhor atender – ela parecia aturdida. Bataglin nunca viu Otacília aturdida na vida.
-Alô – ele atendeu, ao mesmo tempo em que Otacília aparecia na porta de sua sala, gesticulando como uma maluca.
-Aqui é o Secretário de Estado da Educação, João Barbosa da Luz – disse a voz do outro lado.
-Tá, e eu sou a rainha da Inglaterra – rebateu Bataglin, jocoso.
Otacília arregalou os olhos e voltou a fazer gestos frenéticos. Ele tirou o fone do ouvido e perguntou, impaciente:
-O que foi?
- É o secretário mesmo!
Bataglin viu sua vida passar diante de seus olhos, em questão de segundos. Olhou para o aparelho telefônico como se estivesse segurando um animal peçonhento. Tomando coragem, recolocou o fone no ouvido.
-Alô, me desculpe – disse de imediato. - Pensei que fosse trote.
-A secretária escolar costuma repassar trotes para o diretor, assim que os recebe? – perguntou a voz implacável, em tom de zombaria.
-Não, é que... Eu não acreditei. Um secretário de educação nunca ligou diretamente...
-Sei... Esqueça. Eu soube que o senhor está com um projeto de grande visibilidade aí na escola
-Estou? – ele balbuciou.
-Sim, a Professora de Artes irá fazer uma exposição. Correto? Ouvi dizer que a Fundação Verisak se interessou pela pauta. O senhor dê todo o incentivo que a professora precisar, estamos entendidos? Ela conta com nosso total apoio.
-Fundação Verisak? – claro que ele conhecia a fundação, só não atinava qual a conexão entre a professora novata e a entidade financiada pelo bicampeão de fórmula 1.
-O que deu em você, homem, tem eco na sala? – disse a autoridade, do outro lado da linha.
Bataglin fechou os olhos por um momento, diante da reprimenda.
– Já sabe, é de interesse do Estado obter uma parceria futura com a Fundação Verisak. Faça acontecer. A professora tem carta branca.
-Claro, claro...
Ele desligou o telefone e olhou para Otacília em estado de choque.
Ela encolheu os ombros e saiu, divertindo-se como há muito tempo não fazia. O balcão de sua secretaria estava mais movimentado do que as novelinhas mexicanas da tarde, que ela assistia pelo youtube quando dava tempo.
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Fernanda fez um esforço enorme para se concentrar nos trabalhos de seus alunos. Precisava contextualizar cada um deles, antes de avaliar o seu progresso em relação às atividades anteriores. Dona Wilma parece ter conseguido dar um grande salto em seu aprendizado, desde que foi ao oculista e este lhe passou a nova receita. Os óculos faziam toda a diferença na concentração para a aula. Aninha estava mais colaborativa, isso também era fato. Agora que ela conciliou o estudo com sua atividade favorita, não havia garota mais motivada do que aquela. E MC Dieguito, então? Subitamente, tornou-se o mais empolgado em participar de uma exposição de arte. Mas estes não constituíam a maioria. Ainda não. Ela teria que trabalhar a sensibilização da turma como um todo...
Davi retornou com Boris. O cachorro se enfiou entre os braços de Fernanda e lambeu o seu rosto. Ela reparou que ele estava seco, mas o homem estava molhado e sorridente. Fernanda podia imaginar quem saltou na água para buscar o brinquedo.
-Pelo visto, o passeio foi divertido.
-Ah, o carinha aí é esperto! No fim, corri mais que ele!
-Tô vendo! – ela observou, olhando discretamente para as pernas musculosas.
Ele subiu as escadas para tomar banho. Quando retornou, cantarolando uma canção desconhecida, Fernanda pensou que ele estava muito bem humorado. O que será que tinha acontecido.
-Acho que vou fazer algo com o que temos na geladeira... – disse, olhando para o pedaço de queijo Gouda.
De repente, o seu celular tocou. Davi fez cara feia para o aparelho, mas resolveu atender. Falou em alemão e então desligou. Minutos depois, subiu novamente e quando Fernanda deu por si, teve um estalo... Eureka. Ela sabia quem ele era.
Abriu o notebook com o coração acelerado e digitou o nome Davi Verisak no Google. As imagens saltaram na tela. Imagens e reportagens. Ele em eventos. Ele em festas. Ele cercado de lindas mulheres. Ele com o macacão antichamas. Ele surpreendido, saindo de uma piscina olímpica. Ele velejando...
Ele. Ele. Ele.
Claro, como ela não se deu conta antes. O bicampeão brasileiro de fórmula 1, descendente de poloneses e alemães, sobrinho de Célia Verisak - a criadora do motor Verisak. Ora, ora... Davi Verisak, o bilionário dono da marca Verisak. Agora tudo se encaixava. Ela estava em choque quando ele se aproximou com o celular na mão. Ele sentou diante dela, resmungando:
-Professora de Artes, né?
Fernanda encarou-o por cima dos óculos de leitura.
-Que é que tem? – perguntou, desconfiada.
-Se eu te mostrasse o desenho de um modelo de roupa, poderia dar a sua opinião?
-Por quê? – ela atirou, sem saber o que pensar dele ali, agora que ela sabia quem era.
Ele fez uma careta, pensando em até que ponto poderia confiar nela.
-Porque tenho que tomar uma decisão e tem que ser agora. Eles não vão esperar.
-Eles quem?
-Você não vai facilitar a minha vida, né?
-Não... Para opinar eu tenho que conhecer o contexto - estava começando a se divertir com o desconforto dele. Bem feito. Ela devia fazê-lo sofrer por esconder uma coisa dessas. Mas verdade seja dita, ele não mentiu. Apenas omitiu.
-Certo...
- E então, Davi Verisak? – ela o instigou.
Não foi o fato de ter dito o seu nome completo. Porque ela já sabia o seu nome. Mas foi como ela o pronunciou... Davi sacou de imediato que ela descobriu quem ele era. Não sabia se ficava apreensivo ou aliviado com isso.
-Quando descobriu? – perguntou ele.
-Agora, na verdade – ela virou a tela do notebook para ele. - Joguei o seu nome na internet e voilá!
-Voilá – repetiu ele, baixinho. – Posso contar com a sua discrição?
Ela fechou a cara.
-Para quê, ou melhor, para quem eu iria contar o seu precioso segredo? Até parece!
-Me desculpa... – ele sacudiu a cabeça. – Tanto faz, você pode ou não me agraciar com o seu senso artístico, professora?
Ela fechou a tampa do notebook, ignorando-lhe o tom jocoso.
-O que é? – repetiu, pacientemente.
-O novo uniforme de corrida da Verisak. Eu estou meio em dúvida – ele fez uma careta, estendendo o celular para ela.
Ela olhou atentamente para a foto no celular.
-Eles querem a minha aprovação pra confeccioná-lo, só que...
-Só que você não gostou – completou Fernanda, lançando-lhe um breve olhar de compreensão. – Não está mal, mas...
Ele riu do tom duvidoso dela.
-Mas... – instigou, com um sorriso irônico.
-Mas parece meio... brega. Ai, me desculpa dizer isso assim.
Ele bateu a mão fechada na palma da outra, alheio ao estado dela.
-Eu sabia! Era essa a palavra que me faltava. Brega.
-Talvez se...
Ele a fitou, curioso.
-Se o que...
-Se as listas laterais fossem mais largas e se a cor fosse mais escura... – ela encolheu os ombros, devolvendo o celular.
Ele não pegou de imediato, lançou-lhe um olhar estranho.
-Você não gostaria de fazer um modelo novo pra mim?
Ela arregalou os olhos, descrente. Davi não desviou os olhos, mostrando que estava falando a sério.
-Eu não estou à altura... – ela piscou e sacudiu os ombros. - Eu não sou uma estilista. Trata-se de um hobby apenas.
Davi se recostou no sofá, sem deixar de observá-la em seu estado de agitação.
-E daí? – ele arqueou as sobrancelhas. - Você tem bom gosto. Posso ver quando sai para trabalhar que o simples parece fantástico em você.
Ela ficou muito quieta diante do elogio inesperado.
-Não pode me ajudar? – ele fez uma cara de coitado que a fez soltar uma gargalhada.
Então, ele fez um beicinho de bebê e Fernanda desatou a rir.
-Alguém já disse não para você?
-Já... Mas foi há tanto tempo que eu nem me lembro mais – ele passou os dedos pelos cabelos, tirando-os dos olhos. – E sinceramente espero que você não me diga não, porque precisamos de uma luz no fim do túnel.
-Não consigo acreditar que dentro dos seus negócios tão abrangentes, não tenha como conseguir um profissional a altura da tarefa.
-Profissionais a altura eu tenho, meu bem. O que eu não tenho no momento é algum surto de criatividade. E eu estou desconfiado que com você... vai ser diferente.
Ele se interrompeu, pensando nas próprias palavras.
-Quanto tempo eu tenho? – perguntou Fernanda, sem perceber sua reação.
-Se você topar, faço o tempo acontecer – ele disse.
Uau! Ela ergueu as sobrancelhas.
-Só preciso da sua decisão agora – Davi insistiu.
-Tudo bem. Eu tenho uma aluna que é costureira. De repente ela me ajuda com o boneco.
-Boneco?
-É... para experimentar o que eu fizer no desenho...
-Tudo bem, faça do jeito que achar melhor - ele sacou o celular e começou a falar em alemão.
-Não acredito que concordei em fazer o modelo de uniforme para um campeão de formula 1 – ela ergueu as mãos para o alto e Davi riu, antes de voltar a falar com quem quer que seja.
-Sem estresse – ele zombou dela.
-Claro – Fernanda resmungou. – Um passeio no parque. E não nos esqueçamos de uma exposição para organizar, além do uniforme que, permita Deus, não seja um fiasco completo. Ei – ela o chamou e ele virou-se com o celular no ouvido. – Quem estava fazendo o uniforme para você?
-Você ficaria mais nervosa se eu dissesse que era um dos estilistas da Dolce e Gabana?
Ela esbugalhou os olhos.
-Tá, então, eu não vou dizer – ele respondeu e se afastou latindo em alemão. Assim que encerrou o telefonema, Davi voltou para a sala. – Pronto, eles vão esperar as suas novas instruções.
Ela levou a mão ao peito, considerou seriamente a possibilidade de sofrer um infarto fulminante.
-Ai, eu...
-Fica tranquila. No final, a decisão é minha – ele disse, piscando um olho.
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