| Capítulo 2 | Castelo de cartas a um sopro de desmoronar
Naquele dia, a serenidade harpeava uma canção de esperança, acompanhada da alegria que iluminava tudo o que fazia parte de mim. Podia sentir a presença de todas as tonalidades que me habitavam, e naquele momento eu sabia que não estava sozinha.
Minhas euforias sincronizavam com a tarde, pois uma nova aproximação restaurava o acolhimento, propondo um clima digno a duas garotas que aproveitavam o intervalo, cujo refúgio escolhido foi nada mais que um espaço vago do colégio.
— É legal quando podemos ouvir nossas vozes e risadas, sem um monte de gente em volta — comentei.
Sabrina tateou sua mão na calçada até que seus dedos encostaram em algo.
— É, mas eu acho mais divertido quando tem mais gente. Tipo, imagina a gente com uma turma grande — respondeu, enquanto analisava o que havia pegado. Sem esperar muito, avistei a pedrinha quicar duas vezes à certa distância. — Devíamos ter um grupinho.
Fiquei em silêncio, preferi não discordar.
— Ei, ontem vi você saindo do colégio com uma mulher. Era sua mãe? — ela mudou de assunto.
Concordei com a cabeça.
— Sei lá, é um pouco esquisito — comentou, franzindo o nariz.
Reprimi uma risada.
— Estranho por quê?
— É que, com 11 anos, ninguém mais vai pra escola com os pais, sabe? Parece coisa de criança pequena. Eu já venho sozinha há um tempão.
O silêncio esvaziou minhas cordas vocais. Por um momento, apurei os ouvidos, a fim de detectar os barulhos de algazarra. Mas a resposta que recebi foi a quietude agradável que circulava em cada canto. Arregalei os olhos, preocupada.
— Sabrina! Acho que a gente perdeu o horário! — exclamei, me levantando depressa da calçada.
— Sério? Nem parece que já acabou.
— O colégio tá todo quieto! Vamos perder a quarta aula! — falei, apreensiva.
Ela se levantou calmamente.
— Que coisa, hein? — resmungou, impaciente. — Vai dar tempo, relaxa. Aquela sonsa da professora de matemática sempre se atrasa.
Subitamente, nossos braços se engancharam e a partida foi dada em passos acelerados.
Quando a caminhada findou, a leve batida na porta chamou a atenção. E então, aquela fresta revelou o rosto da mulher em forma de negação.
— Isso não vai mais acontecer, prometo! — implorei. Um nó na garganta surgiu após aquilo.
— Sinto muito, mas regras são regras. Vocês só poderão voltar na última aula.
Assim que ela fechou a porta, Sabrina fez uma careta de desgosto. Ri pela sua expressão, um tanto humorada.
— Tô nem aí pra essa aula chata — resmungou, dando de ombros. Depois, começou a se afastar e gesticulou para que eu a acompanhasse. — Ei, vem logo! Vamos sair daqui.
Tomamos a maior parte dos quarenta minutos caminhando pelas instalações do colégio. Não havia muito o que fazer; era tempo demais para coisas de menos. Então, nada com que a distração pudesse resolver.
Ao longo das duas semanas anteriores, em que eu me encontrava desacompanhada, o cenário já tinha virado rotina. Não era mais tão novo assim. Afinal, eu já havia explorado todos os cantos do colégio público e vivenciado as contínuas atitudes dos estudantes. Era algo com que precisei me acostumar, por mais que aquelas cores não fossem compatíveis com as minhas.
Já fazia algum tempo que observávamos o pátio desprovido de qualquer circulação, com exceção das inspetoras, que realizavam o contínuo trajeto pelo espaço do colégio. A todo momento, uma parte do silêncio era preenchida por nossas vozes, à medida que estendíamos os assuntos. No entanto, era estranho sentir picos de diferença em relação àquilo que nos habitava. Sabrina não era Camila. E era exatamente isso que me impedia de manifestar os raios de alegria, de expressar minhas tonalidades inocentes, de compartilhar a magia cultivada durante anos.
E, diante do meu paraíso infantil, acabei fechando as portas.
Pela primeira vez.
Como estávamos perdidas no horário, Sabrina foi ao encontro de uma inspetora para perguntar se a aula estava prestes a encerrar. Após verificar seu relógio de pulso, a mulher, de idade mais avançada, nos respondeu que faltavam cinco minutos. Aproveitando sua presença, Sabrina perguntou qual seria a próxima aula. Rapidamente, vi sua prancheta ser retirada debaixo do braço e, após informarmos a turma, ela observou atentamente a tabela. A revelação da próxima aula foi nada mais que matemática, o que provocou uma revirada de olhos de Sabrina. Depois disso, agradecemos pela informação.
— Vamos aproveitar e passar no banheiro. Não dá pra entrar na sala com o cabelo todo bagunçado — ordenou Sabrina, sem nem me esperar responder.
Logo que diminuímos o ritmo dos passos, fui recebida pelo cheiro nada agradável daquele lugar, assim como minha visão ficou exposta às letras de pichação e palavrões, escritos com marcador permanente, marcando alguns azulejos brancos próximos ao enorme espelho. Encostei-me no umbral da primeira porta da cabine e cruzei os braços.
Enquanto Sabrina jogava seus cabelos ondulados, tentando obter um resultado mais alinhado, parecia se desprender da imobilidade, uma vez que seu quadril executava alguns movimentos discretos.
— Você tá querendo dançar, é? — perguntei de maneira hilária.
— E se eu estiver? — retrucou, me encarando pelo espelho, com um tom ligeiramente desafiador. — Eu gosto de rebolar. Qual o problema?
— Sei lá... nenhum, eu acho — respondi, acanhada.
— Olha, eu gosto de mim do jeito que sou. Só falta alguém gostar também.
— Alguém quem? — perguntei, confusa.
Ela virou para trás, como se não gostasse da minha falta de compreensão.
— Garotos, né, Lana! Em que mundo você vive? Não me diga que nunca pensou nisso.
— Acho meio sem graça — respondi, dando de ombros.
Ela soltou uma risada irônica.
— Então acho que a sem graça aqui é você, amiga.
Imediatamente, a alegria se desprendeu da minha feição.
Por mais que nossos braços enganchados estabelecessem certa conexão, aquele encanto que iluminava pouco tempo atrás não era mais o mesmo. Sua alteração brusca e inesperada deu origem a uma força que foi em direção às minhas emoções, provocando a aproximação certeira daquilo que eu mais temia. Mas minha ingenuidade se mostrou mais resistente. E então, eu neguei sua presença. Porque, enquanto houvesse sol para me aquecer, pouco me importavam os ventos que despertavam arrepios.
No decorrer das semanas, as ventanias pareciam ter aumentado em intensidade. Nosso tempo não era de sintonia, mas sim de total desigualdade, em que eu mostrava meus feixes de euforia e ganhava rajadas de uma corrente de ar cada vez mais gélida.
E, por mais que essa sensação me invadisse, eu permanecia no mesmo lugar.
Por um momento, percebi que havia me desviado para a rota da distração. Afastei qualquer pensamento e meus ouvidos se concentraram na explicação do professor de história, à frente da lousa. A boa reorganização da sala trouxe uma sinfonia agradável, em que a ausência das vozes desnecessárias abria espaço para que o conhecimento fluísse.
Enquanto meus olhos captavam cada palavra escrita na lousa, minha mão se movia rapidamente, preenchendo meu caderno com anotações frenéticas. A todo momento, trocava a cor da caneta para destacar os títulos com cuidado. Meu kit de canetas gel aromáticas com glitter era um dos meus itens preferidos e indispensável naquela época do ensino fundamental.
No meio daquela concentração, uma interrupção inesperada ocorreu. Um papel dobrado caiu sobre minha mesa, enviado por Sabrina. Deduzi que seria mais uma de nossas conversas particulares e discretas. Peguei o papel e, sem pensar muito, comecei a abri-lo. No entanto, fui surpreendida pelo olhar furioso de Sabrina.
— O que você pensa que tá fazendo, sua anta? — sussurrou, com um tom grosseiro. — Não viu que tem coisa escrita no verso da folha?
Envergonhada, neguei com a cabeça. Sabrina bufou, impaciente.
— Então passa logo o bilhete pro piá que senta atrás de você — ordenou em voz baixa, mas sem disfarçar a impaciência.
Ainda confusa, virei-me lentamente até que meus olhos encontraram o rosto juvenil e travesso do garoto. Assim que ele percebeu, entreguei rapidamente o bilhete e sussurrei que era de Sabrina. Ele acenou em confirmação, e voltei minha atenção para a frente.
O restante da aula foi marcado por uma total desconcentração, já que minha presença serviu como intermediária para a troca incessante de bilhetes entre os dois. Minha serenidade, antes inabalável, foi lentamente perturbada por pequenas ondas de incômodo.
Quando o som estridente do sinal ecoou pelo colégio, foi a vez dos barulhos pessoais repercutirem pela sala. A abertura de zíperes, o fechar de livros e o arrastar desagradável de carteiras se fundiam em um som breve, enquanto os demais se dirigiam à porta.
Assim que o ritmo desacelerou, meus movimentos ao dar o primeiro passo foram bruscamente interrompidos por um braço estendido à minha frente.
— Você vai ficar aqui comigo — Sabrina pediu. Franzi a testa. — A gente vai esperar todo mundo sair, e depois você vai até a porta e fica vigiando, tá? E fica quietinha, senão vai dar ruim pra gente.
— Mas por que?
— Não dá tempo de explicar, vai logo! — ela falou, já impaciente. — Ele tá quase chegando!
Tentei reunir palavras, mas minha voz se recusou a sair. A única coisa que vi antes de me virar foi o sorriso malicioso que denunciava seu semblante, acompanhado de um parcela do nervosismo que agitava suas mãos.
Assim que me aproximei do umbral, a chegada daquele garoto — o do bilhete — me pegou de surpresa. Sua presença era o resultado de todas as euforias de Sabrina durante a aula. E, em questão de segundos, uma cena inesperada se desenrolou diante dos meus olhos.
Fiquei sem reação.
Curiosa, observei o efeito em tempo real. O momento em que os hormônios correspondiam a toda aquela troca de sorrisos, desejos precoces e salivas, em forma de um beijo meloso e, ao mesmo tempo, apressado.
A força do desagrado fez meus olhos se desviarem até que voltassem para o corredor vazio. Afinal, para um episódio nada atraente, o jeito era suspender a audiência.
Durante o nosso trajeto a pé, após minha mãe me buscar, o silêncio parecia ter imposto uma prisão. Cada passo que ecoava pela calçada aliviava minha tensão, pois conseguimos sair ilesos de qualquer advertência ou desconfiança. Logo que consegui sair, ela perguntou sobre meu atraso. Com uma mentira sobre a demora do professor em nos liberar, consegui convencê-la.
Quando o som do cadeado selou o portão, decidi expulsar as palavras incômodas que haviam se alojado no meu pensamento há algumas semanas.
— Mãe, antes de você sair para trabalhar, preciso falar uma coisa com você — falei, enquanto caminhávamos em direção à porta trancada.
Ela parou e olhou para mim, a chave ainda na fechadura.
— Se for sobre a bagunça da sua irmã...
— Não, não é isso — interrompi. — É outra coisa.
Entramos na sala e corri para o meu quarto, esperando ela chegar. Deixei minha mochila na cama e me sentei na beirada.
— Tô aqui, pode falar — disse ela, na porta.
— Só fecha a porta, vai...
O barulho da porta se fechando fez meu peito relaxar um pouco. Sorri, agradecendo por ela ter atendido meu pedido rápido.
Respirei fundo.
— Então... como você sabe, eu fiz onze anos mês passado. E eu percebo que a maioria das meninas já vai sozinha pro colégio, sem os pais por perto. Eu acho que já posso andar sozinha na rua. Sei dos perigos e sempre me cuidaram, mas... eu sei me virar, mãe. Você deixa? — perguntei sorridente, como uma criança que pede para brincar no parque.
Ela me olhou com uma expressão séria, demonstrando preocupação.
— São só alguns quarteirões, e eu sei atravessar direitinho — falei, tentando convencê-la.
— Olha, Alana Vitória, eu vou confiar em você. Mas meu coração vai ficar apertado a partir de amanhã. — Ela riu, meio sem jeito.
— Fica tranquila, mãe. Eu sou quase uma expert agora, aquela excursão ao Detran me ajudou bastante — brinquei.
— Só vai com calma, tá?
— Pode deixar, mãe! — garanti, sorrindo.
O sorriso pairou em seu rosto, junto aos braços abertos, prontos para me receber. Após um abraço aconchegante, nos desvencilhamos, e ela pousou a mão na fechadura, até que a fresta da porta marcasse sua saída.
Inesperadamente, a quietude do ambiente atiçou minha vontade de mergulhar na música. Abri a gaveta da mesa de cabeceira e peguei meu MP3. Liguei o aparelho, pluguei os fones e, em volume mediano, minhas músicas favoritas supriram as euforias de um espírito jovem, como se me presenteassem com uma sutil chuva de glitter.
Depois daquele acontecimento, um vendaval decidiu entrar em cena, sem ao menos pedir licença. Desde que Sabrina tomou um rumo inesperado, cada vez mais eu tinha certeza de que nossas estradas estavam distantes e, que na verdade, ela só estava esperando a hora certa para mostrar a direção que havia escolhido.
E entre palavras e atitudes, era um passo a mais.
A cada dia que se passava.
Conforme dispersava a névoa pensamentos, ao mesmo tempo concentrava minha visão no fluxo de carros a minha frente. A rua não havia semáforo, o que exigia uma atenção redobrada. E quando um veículo em baixa velocidade se encontrava longe do meu campo de vista, acelerei os passos.
Já do outro lado, amenizei o ritmo da caminhada. Nenhum passo apressado iria me impedir de contemplar aquela pintura viva, em cores de fim de tarde. Pois para todo quadro deslumbrante, nada como retribuir com olhares de encanto.
Entretanto, no meio daquela sintonia, o surgimento de uma figura ao meu lado provocou um solavanco completamente brusco. Meu coração quase pulou pela boca.
— Você é a Alana, né? — uma voz feminina perguntou.
Quando olhei para o lado, vi uma menina mais alta, com o cabelo liso e curto. Era a Larissa, minha colega de sala.
— Sou eu mesma — respondi. — Nossa, você me deu um susto!
— Desculpa, é que quando vi você, não consegui não vir falar — ela disse, parando um pouco para recuperar o fôlego.
— Falar de quê? — perguntei, confusa.
— Então, eu ouvi pelos amigos do Gabriel que ele tá ficando com a sua amiga. É verdade isso?
Arregalei os olhos.
— Sério que todo mundo já sabe? — falei, um pouco assustada.
— Acho que a turma toda já tá sabendo — ela respondeu, olhando de canto. — E olha, eu vi aqueles bilhetinhos que ficam passando na aula. Já tava desconfiada há uns dias, mas aí perguntei pro amigo dele e ele confirmou. Agora só faltava você... mas já sei a resposta.
— Ele não mentiu. Eu estava lá no dia — admiti, sem graça.
Larissa me encarou, boquiaberta.
— Conta mais! — ela pediu, animada.
Antes que eu pronunciasse as primeiras letras, um veículo lustroso, de modelo mais atual, trouxe em um volume extremo a música Stereo Love. Esperei o carro passar, da mesma forma que o ecoar começava a ficar fora do alcance dos nossos ouvidos.
— Então, foi na semana passada, depois que a última aula acabou. A gente ficou esperando todo mundo sair e eu fiquei na porta, vigiando para a inspetora não pegar a gente.
— Menina esperta! — Larissa deu uma risada. — E ainda por cima, safada! — completou, rindo mais alto.
Após as vozes se ausentarem, não encontrei meios para estender a conversa. Não demorou muito, até que a voz de Larissa se manifestasse, a qual se despedia. Depois do meu aceno retraído, aquele restante do percurso tomou a tranquilidade e trouxe a preocupação para me fazer companhia.
O peso da angústia fazia aquele corredor parecer mais longo do que o normal. A voz pessimista me atormentava com a ideia de que eu chegaria atrasada na primeira aula, e que cada passo apressado estava longe de ser suficiente. Diante dessa dúvida, decidi dar uma olhada pela porta aberta. Fui surpreendida por uma cena que me trouxe alívio. Nunca havia ficado tão contente com o movimento frenético dos colegas nas passagens entre as carteiras.
No entanto, no meio daquela cena, uma revelação fez todos os meus agradecimentos serem jogados fora, como se fossem para uma lixeira imaginária. Aquilo me abalou.
Havia três garotas em volta da carteira de Sabrina: Larissa, Carolina e Roberta. Com seus diálogos ousados e risadas escandalosas, as quatro compartilhavam o mesmo assunto, que soava como uma sinfonia desagradável aos meus ouvidos. Timidamente, coloquei minha mochila sobre a carteira, e nenhuma delas se interessou em me cumprimentar. Era como se eu fosse invisível. Em pouco tempo, as conversas paralelas diminuíram, e a voz da professora começou a ganhar mais destaque.
O que me confortava era que a aula de língua portuguesa era uma abertura agradável naquele cronograma diário de cinco aulas. Um sorriso de empolgação se formou em meus lábios, em apreciação ao conteúdo anotado em cada linha do meu caderno.
— Ah! Oi, Lana! — a voz baixa de Sabrina me tirou do meu momento de distração.
Levantei a cabeça.
— Só agora me viu? — resmunguei, chateada.
— As meninas estavam na minha frente, não consegui te ver — ela explicou, no mesmo tom de voz. — E eu gostei delas, sabia? Elas vão andar com a gente a partir de hoje — falou, animada. — Não é legal? Agora a gente tem um grupinho!
O receio queria ser exposto, mas ocultei-o com um aceno de cabeça e um sorriso forçado. Sabrina se contentou e virou para frente, após receber minha resposta silenciosa. E naquele instante, bem no fundo das minhas emoções, senti que meu tempo se fechou.
Conviver com as mudanças era como perceber que minhas cores não se misturavam com as aquarelas tão bem proporcionadas ao meu redor. Enquanto elas compartilhavam dos mesmos tons, eu observava a pintura coletiva com meu pincel vazio.
A sensação de exclusão começou quando os braços se entrelaçaram, os passos se sincronizaram, e as vozes das novas amizades se consolidaram. Em pouco tempo, me vi inserida numa imagem completamente indesejada: cinco garotas pré-adolescentes, desfilando pelo pátio, braços enganchados, exibindo olhares de afronta, mas ao mesmo tempo atraentes.
Porém, naquele mês, ao menos um pingo de tinta me foi concedido. As modas contagiantes de 2010 nos conectaram: trocas de cards de celebridades, pulsos lotados de pulseiras coloridas de fio de telefone, brincos de zíper e, de brinde, os hits do pop internacional que dominavam as paradas de sucesso. Foi o único momento em que participei daquela pintura de recordações, embora elas sempre ficassem com a maior parte dos créditos.
Enquanto mergulhava nessas memórias, a brisa suave daquela tarde harmonizava tudo. Aproveitar uma pequena área ao ar livre, distante da quadra de esportes na aula de educação física, era satisfatório, ainda mais se tratando de uma aula livre, na qual a prática de esportes era opcional.
Os ecos do jogo de futebol misturavam-se às vozes, dissipando-se em segundos. Meus olhos, fixos na cena, flutuavam em meio aos devaneios. Até que uma cutucada no ombro me trouxe de volta à realidade. Carol havia me tocado e, em seguida, afastou a mão.
— Por que você está tão quietinha? — perguntou ela.
— Ela sempre é assim, dã — Larissa respondeu, revirando os olhos. — Agora que ela finalmente saiu da lua, vamos continuar falando.
Concordei em silêncio, enquanto minhas mãos começavam a suar.
— Meninas, tô preocupada... Ganhei uns quilinhos a mais — disse Sabrina, um pouco insegura.
— Relaxa, Sabrina. Você vai ficar com um corpão de arrasar — falou Roberta, tentando animá-la.
— Ué, mas isso é normal, né? — comentou Carol.
— Menos com a Lana! — disparou Sabrina. — Ela é a mais magricela de todas. Parece que nunca cresce.
Todos os olhares se voltaram para mim, e a vergonha me deixou sem palavras.
— Tadinha, amiga! — Larissa zombou, rindo. — Ela ainda usa essa coisa feia no cabelo! — disse, apontando com o dedo.
— A Alana nem age que nem a gente, o que vocês esperavam? — comentou Carol, com um tom mais sério.
Sabrina e Roberta se entreolharam e reprimiram uma risada. De longe, a voz aguda da professora anunciou o fim da aula. As quatro se levantaram da mureta de concreto e caminharam em direção ao portão que dava acesso ao pátio. Eu, no entanto, preferi ficar um passo atrás. Estar ao lado delas só me daria uma visão clara da melancolia que distorcia a imagem ao meu redor.
E para que minha visão voltasse ao normal, bastava permitir que as gotas silenciosas caíssem. Então, não hesitei.
Entre trovoadas e ventanias, a chegada da nova era destruía toda a harmonia que me habitava. Até que não houve mais combate, apenas vencedor e perdedor. Enquanto eu clamava pelo perdedor, o vitorioso se vangloriava de uma vitória que não esperava conquistar tão cedo. Foi através daquela sombra temível que minha claridade desapareceu. E não havia previsão de retorno.
Meus dias passaram a ser perseguidos por essa sombra: o medo. A partir de então, eu não me reconhecia mais. Minha realidade havia se tornado uma ameaça, alimentada pelas quatro presenças que, embora distintas em palavras e atitudes, tinham sempre o mesmo alvo.
O período entre maio e o início de junho foi marcado pela angústia. As ofensas se repetiam continuamente, parecendo não ter fim. Não havia data ou hora para acontecer, o ataque sempre me atingia de forma inesperada.
Mas, para minha sorte, julho finalmente chegou, trazendo o breve recesso de duas semanas nas escolas. Aproveitei o momento para mostrar o que essa convivência havia feito com meu cenário emocional.
Quando minha mãe entrou no quarto, eu estava pronta para abrir as portas. Queria que ela notasse o céu nublado que pairava sobre mim, a sombra que tanto me atormentava, e as tempestades que pareciam constantes.
— Sabia que algo não estava certo, mãe tem uma intuição — ela disse, sentando-se na beirada da minha cama.
Olhei nos olhos dela, que estavam cheios de preocupação, e respirei fundo.
— Aconteceram algumas coisas no colégio e eu não tô me sentindo bem. Desde que comecei a ficar com as meninas, quase todo dia tem algo que me deixa super constrangida. Acho que você errou quando disse que eu ia ficar bem com novas amigas — falei, com a voz baixa, sentindo um peso no peito.
— Filha, eu só disse aquilo porque quero o melhor pra você.
— Se você quer tanto o meu bem, então por que não me troca de colégio?! — perguntei, irritada.
— Que história é essa, Alana? Eu posso conversar com a pedagoga, mas não vou te transferir, não. Até porque essa é a única escola pública aqui no bairro, e os colégios mais próximos são particulares.
— Não quero nem pensar nisso, já tenho um monte de coisa pra lidar. — Suspirei e fechei os olhos, sentindo o peso. — Só queria que tudo isso acabasse — murmurei, quase sem forças.
— E você acha que mudar de escola vai fazer tudo melhorar? O problema não é a instituição, é o jeito das pessoas de lá. Não adianta mudar de colégio se as pessoas continuam do mesmo jeito.
— Então o que você sugere? — perguntei, sem entender.
Ela colocou a mão sobre a minha, que estava na colcha, e me olhou com calma.
— Você vai ter que aprender a ignorar as ofensas e se afastar dessas pessoas.
Com um nó na garganta, me levantei da cama.
— Não sei se consigo, mãe. Acho que, mesmo sozinha, não ia escapar disso. Os alvos preferidos são sempre os mais quietos, os que se isolam. E tudo o que eu quero é parar de ser esse alvo — falei, a voz trêmula.
Ela hesitou por um momento, com os olhos cheios de tristeza.
— Vou conversar com seu pai. Vamos tentar encontrar uma solução. E, de qualquer jeito, eu vou na escola para resolver isso, ok? — ela disse, com mais firmeza.
Assenti e ela se levantou. Em seguida, beijou o topo da minha cabeça e saiu, fechando a porta com suavidade.
O silêncio no quarto despertou meus pensamentos, num alvoroço incontrolável. Em meio às imagens projetadas pela minha mente, o tempo se recusava a abrir. Eu não tinha mais forças. E, sem o sol para me aquecer, não pude evitar que a chuva me encharcasse.
Passei boa parte do recesso sem conseguir colocar em prática o que ainda restava intacto: as aquarelas em tons de inocência, com um toque de magia. Eram os vestígios da minha infância. No entanto, os acontecimentos foram completamente contrários, e vi todo o encanto das brincadeiras e dos programas de TV sendo deixados para trás. Pouco a pouco, aquela aquarela tombava, fazendo escorrer aquilo que antes era parte essencial de mim.
O retorno às aulas trouxe uma dose pesada de aflição. Caminhando de forma desanimada, ajeitei meus cabelos com a mão. Não havia mais nenhum acessório. Apenas meus fios castanhos livres, sem corte, acompanhados de uma franja lisa e reta.
A portaria se tornava maior à medida que eu me aproximava. Engoli em seco. Os sons de aglomeração ecoavam nos meus ouvidos, em meio ao entusiasmo que agitava os estudantes inquietos. De repente, minha entrada inesperada provocou um encontro com aquelas figuras que despertavam meu medo, divertindo-se com minhas reações.
— Que surpresa, Lana! — Sabrina exclamou, animada. Notei que seus olhos não se desviavam de mim. — Olha só, se livrou daquela coisa feia! — disse, em voz alta. Imediatamente, senti sua mão jogar uma mecha do meu cabelo para trás, num gesto debochado em relação à minha aparência.
Essa atitude arrancou uma explosão de risadas escandalosas das outras meninas. Constrangida, fiquei em silêncio. Como de costume, Sabrina nos conduziu ao banheiro feminino, e eu continuei calada durante todo o percurso.
O ambiente estava quase vazio, com poucas estudantes presentes, o que nos dava bastante espaço. Naquele instante, observei os rostos juvenis, maquiados, onde cada uma parecia se despedir de qualquer vestígio infantil.
No meio daquela sintonia de transição, apenas uma ficou de fora. Por mais que o espelho me convidasse, eu me recusava a participar. O problema não estava naquelas que estavam lá, mas na presença que, claramente, não se sentia bem-vinda.
Na maioria das vezes, encarava aquele céu nublado e me perguntava por que ele permanecia, já que a discussão sempre terminava em uma única imagem: eu mesma. Não era medo das companhias, mas da minha própria escolha em ter preferido ficar. Meu próprio medo, que se disfarçou de visita para, então, fazer morada.
Por causa da minha vulnerabilidade, senti que outras forças se aproveitaram de mim ao longo das semanas. Até que, no final de agosto, meu pedido para sair daquela situação foi atendido. Eu estava na sala de estar com minha mãe, logo após chegar do colégio, quando ela me entregou um papel. Em segundos, a notícia me trouxe o alívio que eu tanto esperava.
— Como você conseguiu assim, tão fácil?! — indaguei, surpresa.
— Graças a um aluno que pediu transferência e aos meus argumentos para convencer seu pai — respondeu minha mãe.
Retomei a leitura de cada palavra naquele papel e percebi que era real. Então, meu sorriso discreto fez as honras de celebrar.
— Sério, nem sei como te agradecer, mãe... mas quando vou começar?
— A funcionária da secretaria disse que só na próxima semana. E, filha, por favor, prometa que dessa vez vai ser diferente.
Sorri para ela e concordei com a cabeça.
— E mais uma coisa: não se esqueça de ativar o despertador a partir de segunda.
Simplesmente, não houve despedida. Nem mesmo minha voz ousou anunciar minha saída definitiva. O medo ainda permanecia. Eu estava inserida em um novo episódio, mas sua presença continuava a me perseguir.
Andar pela passagem entre as carteiras, cercada por olhares curiosos, foi crucial. O colégio era o mesmo, mas a turma havia mudado. Da quinta série A, fui para a quinta série E. Desde então, a única mudança ocorria nos cenários, enquanto a protagonista permanecia à margem.
Tudo me amedrontava: presenças, vozes. E quando a timidez parecia ser minha única companhia, não vi alternativa a não ser agarrá-la. A partir daquele dia, comecei a conviver com ela pelos quatro meses que ainda restavam, sem previsão de soltá-la.
Como consequência, perdi mais um pedaço de mim.
De todas as jornadas que percorri, aquela foi a primeira em que tropecei. A primeira queda. A primeira dor. Do meu acúmulo saudável de doces expectativas, restaram apenas lembranças adoecidas, que me contaminaram profundamente.
Enquanto o ano de 2010 passava por seus furacões de moda colorida, pelo verde e amarelo da torcida, pelo som irritante das vuvuzelas e pelas músicas que marcaram mais uma geração, eu também estava inclusa, embora enfrentasse minhas próprias tempestades.
A diferença era que o ciclo deles terminava, enquanto o meu mal havia começado.
Notas da autora: É, Alana... sua tempestade não vai acabar por aqui.
Primeiramente, quero pedir desculpas pela grande pausa. Por conta de um desânimo e falta de tempo, o capítulo acabou atrasando. No entanto, estou retomando o ritmo da escrita e vou colocar os capítulos em dia, por mais que sejam longos, irei dar o meu melhor!
Observação: Os diálogos são correspondentes de acordo com a faixa etária das personagens, mas ao longo dos anos terá alterações.
Próxima parada, 2011.
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