Capítulo 3

A perna de Raiden tremia por baixo da mesa, mas, à superfície, ele assumia uma postura rígida. Era difícil manter o controle, quando se sentia a ser julgado por um crime que não cometera. 

‒ Sejamos honestos. ‒ Thelonious afagava a diminuta barba escura, enquanto parecia ponderar as palavras. ‒ Nenhum de nós está confortável nesta situação. Mas acredito que foi um grande início ter aceite receber-me, sua alteza. Estou certo de que a nossa negociação nos levará a um bom rumo.

‒ Um bom rumo? Para quem exatamente?

‒ Para todos, é claro. ‒ O corpo do moreno pendeu para a frente. ‒ Parece-me que é mais do que justo que Oatbash receba as mesmas regalias dadas ao nosso vizinho.

‒ Onde está a justiça que alega, em querer receber algo e não ter nada para oferecer em troca?

‒ Oh, sei bem que sua alteza não está nem aí para as riquezas de meu reino. Mas já bastou o menosprezo de seu pai, não? ‒ A ameaça subjacente fez Raiden encolher-se no lugar. ‒ Eu percebo. Um reino auto-suficiente como Hazelash, que não depende da terra para se alimentar, que contorna as piores maleitas com meros químicos... E, no entanto, aceitaram a magia que Dewash ofereceu como moeda de troca, só porque sim. 

O complexo de inferioridade não era contagioso, mas, se assim fosse, aqueles homens haviam certamente bebido da mesma água. 

‒ Thelonious, Hazelash não é uma ameaça para seu povo.

‒ E quanto a Dewash? Por que acha que eles estão tão interessados na ciência? Veja o passado. Demasiado poder nas mãos de um só país pode gerar o caos mundial. ‒ O adolescente engoliu em seco com a possibilidade de tudo voltar a repetir-se. A terceira guerra mundial tinha abalado o mundo de tal forma que tudo não começou do ponto zero por muito pouco. ‒ Raiden, você só tem duas opções. Ou aceita partilhar alguns dos recursos científico-tecnológicos com Oatbash ou nossos dois reinos acabarão por ser engolidos...

‒ Eu aceito.

Thelonious ficou abismado com a facilidade com que tudo se resolvera. Mas não querendo brincar com a sorte, ele tinha vindo preparado. 

‒ Ótimo. ‒ O rei de Oatbash retirou, agilmente, o documento da pasta aos seus pés. ‒ Agora, é só assinarmos o acordo.

Não poderia ter havido momento mais propício para que a porta se abrisse, como numa igreja, para deixar passar a noiva trajada de branco e fazê-la valer de sua posição em toda aquela história.

‒ Priya?! ‒ Thelonious soou como se lhe tivessem espetado uma faca nas costas, mas o noivo poderia jurar que eram suas as entranhas perfuradas. ‒ Eu sabia que vocês tentariam algo, mas isto? Estava a pensar fazer o quê depois do casamento? Matá-lo? Isso é mais baixo...

A garota estendeu o braço e fechou a mão em punho antes do homem finalizar a frase. Raiden pareceu assustado ao perceber que seu futuro aliado revirava apenas os olhos num pedido silencioso de socorro. 

‒ Quem é você?

‒ Princesa Priya de Dewash ‒ apresentou-se, encabulada. Ela sabia que ele nunca havia suspeitado remotamente das suas origens, quanto mais de suas intenções. O reino dela realizava trocas comerciais constantes com o de Thelonious. Mas o povo de Hazelash sempre se isolara, subsistindo, à distância, com os próprios recursos. Para Raiden, ela era apenas uma garota. ‒ Sim, eu... meus pais... planeámos tudo. A magia da coroa permitiu monitorizar-vos. Quando vimos o que você desejou, nós soubemos que seria o momento para atacar.

‒ Eu sou um alvo fácil ‒ concluiu cabisbaixo.

‒ Você tem todos os motivos para desconfiar de mim. E eu nem quero que confie. Não em mim. ‒ A princesa sorriu ao avistar o número 1 no pulso de Raiden. ‒ Escolha: leite ou chá?

‒ Leite.

As íris de Thelonious cresceram no estreito de seus olhos rasgados. O homem já se achava perdido no meio de loucos. A loucura era assim, vista de fora não se podia achar uma razão. Só os ex-noivos sabiam o que estava acontecendo ali. 

O atual monarca de Hazelash ficara finalmente livre para tomar suas decisões. Contudo, ele sentia-se como um viciado em processo de reabilitação. A crença de que não seria capaz ficava martelando na cabeça. A mão que segurava a caneta tremia-lhe, a boca estava ressequida e a garganta inchada. Até que as lembranças daqueles últimos dias despontaram na consciência. 

Raiden tinha lidado com as consequências de tantas decisões ‒ umas que chegaram a beirar o ridículo ‒ e essa não era, afinal de contas, a pior parte? Abrira as portas a uma completa estranha que o usara, escolhera casar com ela e, ainda assim, estava ali uma oportunidade para mudar tudo. Tantas decisões erradas e ele não tinha levado o povo para a desgraça. Bom, pelo menos, não ainda. Mas se tudo desse para o torto, ele continuaria ali, pronto para lidar com as consequências de quantos erros fossem precisos até acertar.

‒ Chega de guerras, ressentimentos, preconceitos... As terras de Oatbash usufruirão de todos os recursos necessários. ‒ O adolescente pousou a caneta e rasgou o documento em quatro. ‒ E Dewash também, porque governaremos juntos uma só nação.

Assim que a ideia foi lançada no ar, tanto Priya como Thelonious pareceram surpresos. Mas o justiceiro do grupo nunca se iria opor a um propósito de união e a mais racional e estratega poderia guiar-se, uma vez ou outra, pelo coração. 

‒ Fico feliz que a sua primeira decisão não tenha sido jogar-me numa piscina com potássio ‒ gracejou a garota.

‒ Impressionante que você sempre tem as melhores sugestões.

Três cabeças para tomar decisões sempre eram melhor do que uma só. O império Ash vingaria, pelo menos, até ao próximo erro.



960 palavras

Total de palavras do conto: 3000

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