✭Piloto✭


— Clara, estamos atrasadas! — Geovana grita irritada do lado de fora do banheiro, e eu suspiro antes de responder com calma.

— Se eu tiver que parar o que estou fazendo para te responder vou demorar mais, né anjo? — Respondo, enquanto procuro meu pincel de esfumar.

Hoje é um dia importante. Primeiramente, Geovana foi promovida a gerente da cafeteria em que trabalhamos, e temos muito que comemorar. Quem trabalha em uma rede grande como a We Coffee sabe o quão exigente é, e ela enfrentou muitas dificuldades lá, o que me deixou feliz ao ver seus esforços finalmente reconhecidos. Em segundo lugar, meu namorado, conhecido como Anthony, vai voltar do intercâmbio. Ele passou os últimos seis meses no Brasil em um intercâmbio estudantil. Foi nessa coisa de intercâmbio que nos conhecemos.

Eu vivia em uma cidadezinha remota em Minas Gerais, no Brasil. Sempre achei que aquela vida não era para mim e precisava de mais, então, aos treze anos, pedi a minha mãe para me matricular em aulas de inglês. Aprendi com facilidade, especialmente por assistir Friends legendado que é minha série favorita com direito a frases decoradas.

Comecei a praticar inglês em fóruns, onde conheci Anthony, um americano de Atlanta que tinha interesse em conhecer o Brasil, especialmente por ter avós brasileiros. Fizemos um acordo: eu o ajudaria com seu português, e ele me ajudaria com o inglês, e logo nos tornamos próximos.

Através dele, conheci Geovana, uma brasileira que morava em Atlanta. Eles sempre diziam que eu precisava visitá-los. No entanto, a situação financeira da minha família nunca foi das melhores.

Meu pai é um funcionário municipal responsável por diversas tarefas, desde a limpeza das praças até a manutenção da própria cidade, mas isso não rende muito dinheiro. Além disso, ele gasta muito tentando ganhar na loteria. Desde que sonhou com uma sequência de números que acabaram se tornando os vencedores da mega-sena, toda semana ele joga, levando-o a crer que um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar.

Minha mãe é pedagoga em uma escola pública, e como sabemos, os profissionais da educação no Brasil não têm as melhores condições, já que o governo não os valoriza devidamente. Minha mãe já ficou meses sem receber salário, e isso a deixava muito preocupada, pois ainda devíamos muito dinheiro pela casa em que morávamos, e ela temia perder os vinte anos de investimento naquela residência.

Eu sabia que meus pais não tinham condições de financiar um intercâmbio, então comecei a trabalhar no Graal, um ponto de parada localizado à beira da rodovia. O Graal oferecia uma variedade de serviços para os viajantes, incluindo refeições completas. Existe um meme que fala sobre como o estabelecimento rouba todo o dinheiro das pessoas devido aos preços elevados de seus produtos e é bem verdade viu. Ficava de cara em como eles cobravam caríssimo em produtos que não custavam nem a metade do valor que vendiam.

Essa fase foi particularmente desafiadora, pois tinha acabado de completar dezoito anos e ainda não havia me formado no ensino médio. Minha rotina consistia em estudar de manhã, correr para casa para uma refeição rápida, vestir meu uniforme e trabalhar até às dez da noite. A ansiedade era constante, detestava o trabalho no Graal e muitas vezes saía chorando, declarando a mim mesma que não retornaria, mas me lembrava dos meus objetivos e voltava no dia seguinte, tentando manter uma postura positiva.

Essa situação se prolongou por dois longos anos, até que finalmente consegui juntar dinheiro suficiente para comprar uma passagem e me sustentar nos EUA por um período. Quando pedi demissão, senti um alívio imenso, como se fosse a dona do mundo. Namorava virtualmente com o Anthony há algum tempo e decidi solicitar um visto de imigrante devido a esse relacionamento. Embora temporário, o visto me permitiria passar os próximos meses em Atlanta com ele e Geovana, o que prometia ser a experiência mais incrível da minha vida.

Inicialmente, planejamos nos casar para obter o Green card, mas percebi que aquilo era loucura. Eu e Anthony éramos desconhecidos, casar com ele tão rápido assim poderia ser um erro que eu não estava a fim de cometer. Começamos a buscar maneiras de estender meu visto sem necessariamente recorrer ao casamento. Consegui prolongar o visto por causa de um emprego como babá, mas senti a necessidade de criar laços, pois corria o risco de ser enviada de volta ao Brasil, algo que eu não podia deixar acontecer de jeito nenhum.

Geovana conseguiu um emprego para mim na We Coffee e tomamos a decisão ousada de comprar um pequeno apartamento numa região mais afastada do centro. Mesmo sendo um investimento considerável, dado nossos salários modestos, Geovana tinha uma certa quantia alta guardada e nossa relação estava se fortalecendo. Apesar de não possuir cidadania americana, eu podia viver legalmente lá, ainda mais que me matriculei num curso avançado de inglês, estava trabalhando e planejando ingressar na faculdade em breve. Geovana se tornou uma irmã para mim; eu não conseguia me imaginar sem ela ao meu lado. Quando eu penso que tudo vai cair e eu não vou aguentar os batidões da vida, ela chega e diz "levanta essa cabeça e bora pra frente porque chorar não te levará ao Green Card"

Parece duro? Pode até ser, mas é justamente essa sinceridade em Geovana que nos faz ser tão próximas. 

Continuei meu namoro com Anthony, até que ele finalmente ficou fluente em português, decidiu passar um tempo no Brasil e hoje é nosso reencontro. Nos encontraremos em nossa balada favorita.

Queria estar deslumbrante para ele, mas não há muita coisa a se fazer por mim. Sou brasileira, mas nem de longe eu tenho o corpo no padrão BR. Tudo que possuo é uma pele clara, cabelos que na teoria deveriam ser cacheados, mas são rebeldes e volumosos e uma cintura sutilmente curvilínea. Minha mãe é uma morena tão bela, alta, com o cabelo cheio de cachos perfeitos, apesar da idade e das roupas modesta, dona Magda tem O CORPO e vivia ouvindo as histórias de como ela era uma das moças mais cortejadas na barraquinha da igreja. Nem pra Deus me favorecer um pouquinho, nada de bunda, nada de peitos bonitos, nada.

Visto um vestido preto tubinho curto, botas tratoradas e prendo meu cabelo em um rabo de cavalo, enquanto tento melhorar minha aparência com a maquiagem. Desejo me sentir uma tremenda gostosa, não me julguem, mas após seis meses sem sexo, tudo que eu quero é estar com meu namorado. É estranho me tocar, não sei como tem mulheres que se satisfazem assim e falar sobre sexo com Anthony por telefone, considerando que não podemos estar juntos, é um porre! Então almejo  que a noite seja perfeita, que terminará com dois corpos nus exaustos depois de uma foda fantástica.

Ao sair do banheiro, observo Gioh, que está logo à frente. Ela é uma mulher negra deslumbrante, com cachos volumosos e definidos, lábios carnudos e um corpo de dar inveja. Eu sempre admiro e exalto sua beleza. E dessa vez não seria diferente:

— Ai quem me dera ter o coração dessa morena — Digo piscando e ela ri.

— Você já tem, mas já deixou claro que é cem por cento hétero, aí não dá né meu anjo.

Geovana é bi e quando nos conhecemos ela tentou ficar comigo na "amizade" mas eu definitivamente sou hétero. Para minha infelicidade, olha essa mulher? Quem não iria querer beijar ela? Porém não rola nenhuma atração da minha parte.

— Desculpa ferir seus sentimentos. Já estou pronta — Digo conferindo se meu celular, carteira, batom e chaves estava na bolsa.

— Vamos porque eu quero me acabar de dançar hoje, já que a partir da semana que vem começam as responsabilidades de gerente.

— Se você me deixar sair mais cedo na sexta juro que te ajudo a botar ordem na casa.

— Pensarei no seu caso.

Com um sorriso, Gioh pega meu braço e deixamos o que chamamos de "muquifo", nosso modesto apartamento. Embora eu pudesse elencar inúmeros problemas desse espaço, resumo dizendo que é pequeno, com quatro cômodos e um banheiro, mas é nosso lar, conquistado com nosso suado dinheiro.

O táxi chega rápido e logo estamos na entrada da nossa balada favorita. A atmosfera nos agrada, com funk brasileiro ecoando pelo ambiente. Mesmo que eu não seja a melhor dançarina, Geovana gosta de me arrastar para a pista, onde ao menos me movimento ao som da música. Enfrentamos a fila, esperando nossa vez para entrar. O local está lotado, com MC Livinho embalando a noite. Gioh segura minha mão, guiando-nos até o bar, onde pedimos duas caipirinhas, e depois procuramos um canto mais tranquilo para ela dançar sem ser importunada.

Minha amiga não aprecia avanços indesejados; se deseja algo com alguém, ela toma a iniciativa. Admiro essa confiança, queria eu ter a mesma coragem para me expressar. Porém, não preciso chegar em ninguém, afinal, eu tenho namorado que  por sinal está atrasado.

— Anthony já deveria ter chegado — Digo observando o relógio e constatando que já se passou quase quarenta minutos de atraso.

— Provavelmente houve algum problema com o avião —  Geovana diz, esvaziando seu terceiro copo de caipirinha.

— Que tipo de problema? — Questiono, a encarando um tanto apreensiva.

Tenho medo de avião, prefiro meus pezinhos bem aqui no chão.

— Larga de paranoia que ele deve tá bem. Acho que vou pedir uma margarita agora — Diz Geovana, dirigindo-se toda descontraída ao bar.

Enquanto isso, envio mais uma mensagem para Anthony, ansiosa. Após cerca de dez minutos, meu celular vibra: ele avisa que chegou. Solto um suspiro aliviada e decido pegar uma cerveja. Informo a Anthony onde eu e Gioh estamos e, após alguns instantes, avisto meu namorado. Ele é muito mais alto que eu, com cabelos castanhos longos e ondulados. Costumava brincar que ele era uma versão de baixa renda do Harry Styles na época do 1D. Anthony sorri ao nos ver, e Gioh sinaliza para que ele se junte a nós.

Ao se aproximar, me adianto para abraçá-lo fortemente. Será que estou sentindo o perfume da Natura nele? Sou uma especialista de fragrâncias de revistas por causa da minha tia, que era revendedora de produtos Avon, natura, etc. Em seguida, seguro gentilmente sua nuca e o beijo começa, sentindo saudades daqueles lábios. O beijo acaba mais rápido do que eu gostaria, pois logo ele me solta para abraçar Geovana:

— Uau, vocês continuam lindas — Ele elogia.

— Pensei que você viria de juliete e camisa de time — Gioh fala sorrindo.

Na semana passada, Anthony enviou uma foto usando uma camisa do Corinthians, um chapéu juliete e segurando um copo de cerveja, o que achei hilário.

— Aquilo foi só uma brincadeira. E então, o que há de novo? — Pergunta Anthony.

— Bom, você está olhando para a nova gerente da We Cofee —  diz Gioh fazendo pose — Enquanto sua namorada continua escrava da loja — Complementa brincando.

Após parabenizar Gioh pela promoção, Anthony segue para o bar para pegar sua bebida. Aproveito a oportunidade para me aproximar de Geovana e sugerir:

— Se não quiser ficar de vela, talvez seja hora de zarpar.

— Certo, vi uma garota ali que quero "conversar". Se precisar de mim, é só mandar mensagem — Ela responde e já se movimenta entre as pessoas.

Enquanto mexo o corpo, passando o tempo, avisto Anthony voltando e segurando sua bebida:

— Ué, para onde a Gioh foi?

— Não faço ideia, ela disse que tinha alguém para beijar. Enfim, pelo menos agora podemos recuperar o tempo perdido.

Ao tentar me aproximar dele, Anthony me para, fazendo-me olhar sem compreender. Em seguida, ele segura minha mão e me conduz até a varanda da balada, onde a maioria está se envolvendo com outras pessoas. Em circunstâncias normais, eu me sentiria confortável, pensando que ele só queria encontrar um lugar mais reservado para nós, mas algo me diz que tem caroço nesse angu. Uma vez afastados dos casais que trocavam carícias, ele me encara e começa a falar:

— Clara, eu... — Ele me olha, buscando as palavras certas para o momento, embora eu já saiba para onde isso está indo.

— Ah vai se foder! Sério? Você vai terminar comigo? Fiquei seis meses sem te ver, morrendo de saudades, e agora que nos reencontramos você quer terminar? O que você pensa que eu sou? — O encaro, muito irritada. Como assim ele quer terminar?

— Eu realmente não queria fazer isso hoje, mas a Gioh sumiu e teríamos que passar a noite juntos, o que não seria justo com você. Desculpe... — Ele diz, sem conseguir me encarar.

— Sabe o que não é justo comigo? Terminar depois que eu fiquei aqui te esperando como uma otária!

— Queria que eu terminasse por telefone? Tive a dignidade de olhar nos seus olhos, melhor do que uma ligação, ou um áudio de WhatsApp.

Solto um riso nervoso, por ele achar digno ter vindo até aqui para terminar, quando na verdade eu sei que ele voltou para ver os pais. Entretanto, eu ainda não conseguia entender o que levou a tomar essa decisão, passamos seis meses conversando todos os dias, mantendo um bom convívio. O que ele queria com isso?

— Mas por quê? — Decido perguntar.

Até conversamos sobre nos casarmos no papel quando ele voltasse, para que eu pudesse, em algum momento, iniciar o processo de obtenção da cidadania americana. Então, por que? Ele me olha constrangido, e mais uma vez a resposta está bem na minha frente:

— Tem outra pessoa envolvida? Por favor, me diga que isso não é verdade...

— Desculpa mesmo. Ela é irmã do meu amigo brasileiro e acabamos nos aproximando. Estou realmente gostando dela e devo voltar para lá. Sinto muito...

— Aquele status com aquela garota outro dia... — Ele postou uma foto com uma tal de Paloma, irmã do Tadeu, seu amigo.

Lembro de ter comentado sobre a beleza de Paloma, com seu corpo escultural, pernas grossas, bumbum empinado, cintura fina, que a faz parecer uma sereia, e seu abdômen definido que me lembrou o quanto eu era sedentária. Ao refletir, percebo que de uns tempos para cá, Paloma sempre estava presente nos status dele. Meu Deus, como não percebi isso?

— Seu filho da puta, desgraçado, maldito, arrombado do caralho! — Começo a estapeá-lo e ele tenta se defender em vão — Como pôde ser tão cretino comigo?

— Clair, se acalme! — Ele tenta conter minhas mãos, mas eu continuo a agir com agressividade.

Quando ele me chama de Clair, o ódio sobe. Ele me deu esse apelido e todos agora me chamavam de Clair. Movida pela raiva, nem penso duas vezes antes de lhe desferir um tapa bem estalado no rosto, ato que o fez me encarar num misto de raiva e surpresa. Todos os casais ali presente até pararam de se pegar para prestar atenção na briga:

— Você não tem mais o direito de me chamar de Clair! Perdeu esse privilégio quando decidiu me trocar por uma vagabunda! — Quase cuspo em minhas palavras, o que faz com que Anthony me olhe irado.

— Vai se foder Clara! — Ele me empurra para trás e se afasta, saindo. Como ele pôde fazer isso? Eu pensei que o que tínhamos era especial.

— IDIOTA!!!! TOMARA QUE SEU AVIÃO CAIA NO MAR E SE ISSO ACONTECER NEM OS TUBARÕES VÃO QUERER COMER A SUA CARNE PODRE! QUE ÓDIO! — Grito em português, o que faz com que os casais ali presentes me olhem como se eu fosse maluca.

As lágrimas brotam sem controle, incrédula diante do que Anthony me fez. Acreditava piamente que éramos o par perfeito, mas agora percebo que fui ingênua. No fim, homens em sua maioria são todos podres, infelizmente ser hétero é lidar com esse tipo de cara. E ele ainda se acha digno... puff, que piada.

— Não vou desperdiçar lágrimas por quem não valoriza minha presença! — Afirmo enxugando o rosto com determinação.

Retorno ao frenesi da festa e me encaminho direto ao bar, em busca de uma bebida revigorante. Procuro por Gioh em todas as direções, mas não a avisto. Envio mensagens em vão e tento ligar sem sucesso. Deve estar ocupada demais pra me atender, mas não importa. Vou desfrutar da noite como mereço, sem permitir que um filho da puta desrespeitoso estrague meu ânimo. A noite mal começou, e estou decidida a me divertir.

Apenas batendo papo, me conte ai qual perfume da Natura/Avon/Abelha rainha/Boticário você usa ou já usou?

Espero que tenham gostado e deixem aqui a estrelinha

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