Um expresso para Anna:
Era mais uma daquelas típicas madrugadas em que eu ficava me remoendo por completo, enquanto esperava que as palavras viessem até mim. Costumava passar por lugares que poderiam vir a me inspirar e parava em bares ou lanchonetes a fim de recuperar as energias e organizar as ideias.
Creio que nunca fiquei tanto tempo fora realizando esse tipo de tarefa e se pudesse personificar meu bloqueio criativo em algo, ele seria aquela noite. Eram duas horas da manhã de terça, ou talvez mais, mas com certeza era terça-feira, eu só conseguia pensar no quanto aquele horário era inapropriado para eu ficar perambulando em busca de uma história.
Os jornais não mentiam, a onda de assaltos era algo crescente na cidade e eu nem poderia imaginar o que faria caso minha moto fosse roubada e tivesse que voltar para casa sozinha. Era natural essa minha preocupação, para não chamar de consciência. Olhava constantemente e de maneira discreta para trás para ter certeza de que a minha moto ainda estava lá.
Estava quase dez minutos sentada numa cafeteria, organizando meus papeis na mesa e consultando o cardápio com o canto do olho. O garçom já havia me questionado sobre o meu pedido e vendo a minha bagunça compreendeu quando eu disse que o chamaria assim que terminasse o que estava fazendo.
Guardei todos os papéis inúteis na mochila e deixei apenas uma caneta e meu bloco de anotações sob a mesa ao lado da minha bolsa de mão. Notei que o rapaz me observava e quando ergui a mão, ele soube exatamente o que eu queria.
- O que vai querer? - Bom, talvez não exatamente o que eu queria.
Café expresso foi o meu pedido, talvez a única coisa capaz de me manter acordada, poderia estar com sono, mas também estava determinada a não dormir enquanto não tivesse uma boa ideia. O lugar parecia estar vazio, então me surpreendi ao notar que algumas mesas ao lado, estavam uma mulher e duas crianças se divertindo. Até então, estiveram bem quietos em seus cantos, provavelmente as crianças dormiam, pois eu nem sequer os havia notado quanto entrei. Eram tão parecidos. Gêmeos talvez? Não aparentavam ter mais que seis anos de idade.
"É hora de criança ir dormir" pude ouvir quase que claramente a voz de minha avó ecoando na cabeça, não sei se aquilo foi para mim ou para os pequenos clientes, embora eu tenha sentido que fora para ambos. Eu gostava de saber que não estava sozinha, agora éramos três pequenos burladores de regras, explorando corajosamente uma cidade parcialmente adormecida, ou era assim que eu preferia pensar.
O menino subia na cadeira com um chapéu feito de jornal na cabeça, enquanto a mulher ouvia atenta suas histórias e a garotinha lia o cardápio que encobria completamente sua face. Eram uma visão divertida de se contemplar.
Meu café logo chegara, junto com o olhar curioso do garçom que inspecionava rapidamente as palavras soltas em meu bloco de anotações. Me serviu educadamente o café, meio sem jeito ao perceber que havia o pegado no flagra. Agradeci e ele se retirou depressa ao notar que a menina aguardava com um semblante impaciente frente ao balcão. Quando ele chegou até ela, a garotinha posicionou-se na ponta dos pés para fazer seu pedido, nem eu nem o rapaz conseguimos conter os sorrisos diante de sua ação inocente e fofa.
Depois de alguns minutos, ele voltou com um milk-shake cor de rosa enfeitado com um grande morango, tudo aliás, parecia ser grande demais para ela. Seus olhos se arregalaram quando colocou finalmente as mãos em sua bebida, experimentou um pouco antes de agradecer.
Eu também me deliciava com a minha bebida, assim como com as risadas que fluíam a alguns passos de mim, não pude resistir à tentação de olhar para eles algumas vezes. Mãe e irmã riam com as histórias do garotinho, enquanto ele mesmo ria com a atenção que recebia. Eu ria discretamente e o garçom também. Assim como eu, ele parecia apreciar esse momento da família.
Mas em segundos, vi o leve semblante alegre dele se dissolver como a espuma do meu café. Aquilo não me aparentava ser um bom sinal. Eu tentei não olhar para trás, porque senti um grande arrepio na espinha, então guardei meu bloquinho e rapidamente peguei meu espelho de mão.
Fingindo conferir o batom, vi refletida a fúria dos olhos de um homem parado na porta da cafeteria e que tinha os braços cruzados. Guardava o espelho de maneira rápida, assim como o pegara, quando uma voz um tanto culpada interrompeu todos os meus pensamentos.
- Oi papai- Disse o menino.
Ele não respondeu, apenas caminhou na direção deles e eu pude sentir seus passos, que por um segundo me levaram a acreditar que eram os responsáveis pelo leve tremor no chão, ou talvez era eu mesma que tremia nervosa, como se estivesse mesmo encrencada.
Era hora de criança dormir e eu não queria estar presente para ouvir a broca que certamente teria que escutar. Pude ver com o canto do olho, o momento exato em que o homem, sem cuidado algum, arrancara o chapéu do garotinho, que abaixou a cabeça quase que imediatamente. A menina engoliu um seco.
Por uns segundos, todos mantiveram um silêncio absoluto, capaz de constranger qualquer um. Esse momento foi o suficiente para que a mulher cultivasse sua própria fúria, mas o homem a manifestou em palavras primeiro.
Ele praguejou tantas coisas que sou incapaz de lembrar tudo e seus gritos eram tão confusos, apressados e grosseiros que creio que até a mulher teve dificuldades em compreender todas as suas palavras. A mão dele era inquieta e seus dedos insistiam em apontar para a moça que assistia tudo calada. As crianças se escondiam atrás dela.
Meu olhar carregava constrangimento. Eu não sabia o que fazer ou pensar, minha xícara estava vazia e o bloco que retirava mais uma vez da bolsa, estava cheio das ideias que eu não usaria mais, porque não haviam mais risadas, nem plenitude, só aqueles pensamentos interrompidos e eu não tinha mais vontade de continuar. Quando os meus olhos se cruzaram com os do funcionário solitário, o sentimento foi de pesar. Ele estava claramente tão constrangido quanto eu.
Permaneci em silencio até ouvir pela última vez o barulho de passos. O homem saiu na frente puxando o garoto pelo braço, seguido pela mulher que o encarava com num misto de raiva e tristeza. A menina caminhava alguns passos atrás, suas trancinhas balançavam em seu passo gracioso e melancólico, sua cabeça estava erguida, ela não tinha vergonha alguma de esconder as lágrimas.
Quando ela passou por mim, me encarou e eu me senti um pouco culpada por estar ali de plateia, embora seu semblante não esboçasse desprezo, ele parecia congelado como o de uma boneca de porcelana. A tristeza da garota era apenas demonstrada por suas lagrimas e passos.
Sem a presença da família, pude expressar minhas emoções com mais liberdade, suspirei algumas vezes e esfreguei os olhos sem ânimo para nada. Levantei com certa dificuldade, já que minhas pernas começavam a formigar, havia tempo que estava na mesma posição.
Como único funcionário da noite, meu garçom também foi quem cobrou meu café expresso. Depois que eu o paguei, ele tirou seu avental pegando uma mochila e um par de chaves. Pelo visto, eu era sua última cliente. Me acompanhou até a saída e enquanto fechava as portas eu lia as placas que lá haviam. "Aberto 24 horas" foi o que me chamou mais atenção. Por que então ele estava fechando?
- Você tá bem? - Perguntou enquanto me olhava atento- Olha, eu posso pegar um copo de água, se quiser, ou algo pra comer.- Disse destrancando a porta.
- Não, não. Eu estou bem- Respondi esfregando os olhos novamente.
- Olha, não vai acontecer nada, eles vão ficar bem. Foi só um desentendimento, normal.
- Do que você está falando? - Questionei com uma voz que soou diferente do que eu gostaria.
- Do casal, você ficou preocupada com eles... com as crianças- Falou um tanto sem jeito. Eu apenas concordei com a cabeça.
- Então, vai ficar tudo bem- Acrescentou com um leve sorriso.
- Como você tem tanta certeza?
- É porque também sou filho deles!
Depois que ele me disse isso, meus pensamentos ficaram completamente confusos. Como não reparei que a garotinha saíra sem pagar? E se estava tudo bem, por que ele fechava a cafeteria, enquanto ela deveria permanecer vinte e quatro horas aberta? Eu me senti uma intrusa, bisbilhoteira, que atrapalhava um filho vendo sua mãe e seus irmãos brincando e rindo alto apesar de tudo.
No final, era eu a garotinha de trança com uma aura melancólica e aflita e ele o escritor que tudo sabia sobre os personagens e sobre o que acontecia ao seu redor. Lembrei-me do que tinha escrito e arranquei uma das páginas do bloco, a qual dizia "sorte mesmo de quem pertencer a esta família". Ele gesticulou com a cabeça várias vezes em acordo e com um singelo sorriso se despediu:
- Boa noite.
Enquanto me despedia só conseguia pensar em tudo o que acabara de acontecer. Antes de subir na moto, me virei e pude ver o rapaz ao celular, provavelmente pedindo para alguém cobrir seu turno. Torci para que ele fosse capaz de resolver o problema que tinham. Nunca voltei lá, talvez eu volte, algum dia.
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