Capítulo 68 - A Face do Mal

Planos de um parto humanizado¹, com poucas intervenções no processo de nascimento da pequena Doralice, eram traçados por Júlia e Luísa na saída do obstetra. As meninas iam parar pra comer alguma coisa e esperar Henrique vir do mercado com algumas sacolas para Morena.

Júlia andava devagar e, por vezes, colocava a mão na lombar, sentindo todo o peso do barrigão de grávida. Um pequeno pormenor na espera para conhecer sua bebezinha.

Estavam quase chegando ao Queda D'água. O restaurante era ao lado da Cachoeira das Missões, o que tornava o caminho até lá agradável pois a estradinha arborizada seguia o rio até a cachoeira.

Elas iam felizes e distraídas quando um carro parou ao lado das duas.


Júlia

Um pressentimento de que algo estava errado subiu em forma de arrepio por minha espinha. Conforme, o vidro do carro baixava, minha boca ia ficando seca e meu coração disparado.

Celeste Martinez apontou uma arma pra Luísa.

- Entra no carro sem fazer estardalhaço. – Ela falou calmamente. – Senão vai perder mais uma amiga.

Luísa procurou minha mão.

- Ela não vai entrar. – Respondeu, corajosa.

Então, o vidro de trás do carro começou a baixar.

- Acha que ela não atira, mas sabe que eu sim.

E, diante dos meus olhos, o demônio surgiu com outra arma apontada pra Luísa.

- Naja! – Sussurrei. – Você morreu!

Ele deu um riso cínico.

Luísa apertou minha mão com força. Sabia que era ele o assassino de Doralice.

O ar me faltava e comecei a hiperventilar².

Tonteira, enjoou, taquicardia...

Luísa percebeu meu estado e, mesmo nervosa, foi capaz de articular.

- Deixa eu ir junto! Ela está passando mal!

- Fica calma, Luísa. – Falou manso. – Eu vou cuidar muito bem da minha Júlia.

O maldito sabia o nome dela!!!

Saltou do carro com a arma pra minha amiga.

- Passando os celulares.

Pegou o meu e o de Luísa e jogou com toda força no rio. Depois, foi me empurrando pra dentro do carro.

Eu resisti, mas ele engrossou. Segurou forte meu braço e falou rude:

- Colabora! Senão vou fazer com ela o que fiz com Gael!

Não!...

Naja usou a lembrança certa pra me fazer colaborar.

O puxão do violão, os dois tiros no peito, o olhar bestial, Gael morto...

Ele me enfiou na parte de trás do carro e sentou ao meu lado. Antes de Celeste se arrancar de lá, Naja olhou para Luísa.

- Eu gosto de você, sofredora! Por isso não vou te matar, a menos que você faça uma besteira. E pensa no presente que te dei... A exclusividade no coração do menino fazendeiro.

Tentei me acalmar e diminuir os sintomas da crise que estava se apoderando de mim. Pensei na minha filha e agradeci por ela estar protegida dentro da minha barriga.

- Celeste, o que você está fazendo com esse assassino?

Minhas lágrimas vinham incontroláveis

- Nós temos um acordo. Eu fico com o bebê e ele, com você.

- Não!...

Naja segurou minha mão.

- Úmida e fria.

Era a primeira vez que ele chegava perto o suficiente para tocar em mim como se aquele contato fosse algo especial. Pensei que eu fosse vomitar. Fechei os olhos com força e rezei.


***

"Alô!"

"Franco Antonelli?"

"Sim."

"Você não me conhece... Sou o vereador Salomão Savoia."

As narinas de Franco dilataram.

"Estou ligando pra lhe fazer um favor."

Franco podia jurar que o canalha era o mandante!

Ninguém havia provado nada ainda.

"Do que se trata?" – Perguntou com secura.

"Naja."

"Que eu saiba ele está morto."

Savoia riu desinibido.

"A morte dele foi simulada e, inclusive, agorinha mesmo, ele está em algum lugar de Ponta do Noroeste, louco pra colocar as mãos numa menina."

A paciência estourou.

"Olha aqui, homem, acho melhor explicar isso direito e me dizer onde esse Filho da Puta está!"

A falta de paciência bateu e voltou.

"Vou resumir! Naja está vivo, está em Ponta do Noroeste e está pronto pra pegar Júlia Antonelli! Tem alguém ajudando-o, mas não sei quem. Fui claro?! No entanto, Sr. Rei do Café, o mais importante deste recado é: se prenderem este bandido, ele vai fugir e vai atrás dela e, de novo, se prenderem, vai fugir e vai atrás, e assim sucessivamente. Ele é obcecado, incansável e determinado! Então, por favor, peguem o escroto e acabem com a vida dele!"

O calhorda estava certo!

"Por que você próprio não acabou com a vida dele? Para as autoridades, Naja está morto mesmo. Por que está empurrando isso pra gente?"

Salomão cuidou das palavras.

"Talvez ele tenha algo contra mim... Inventado, é lógico! Mas até que eu prove que alhos não são bugalhos³!... Veja isto como uma troca de favores."

Ordinário!!! Mandou matar Dora e tem uma prova nas mãos do Naja!!!

"Eu não vou mais perder tempo com você! Vou tratar de colocar minha nora em segurança e cuidar desse Naja! Mas saiba que não vou esquecer que foi você quem mandou matar a namorada do meu filho! Eu vou atrás não só do assassino, como também vou atrás dessa prova!"

"Bem... Se o que falam de Naja for verdade... Então, boa sorte! Ele pode até parar nas suas mãos, mas entregar a prova!... Duvido! Mais do que odiar político corrupto, ele odeia os Antonelli pelo simples fato do seu filho ser marido da mulher que ele quer."


***

Antes que Franco desse dois passos para fora do escritório, o celular tocou novamente.

"Pai!..."

A voz não era boa.

"Henrique..."

"Naja!... Ele tá vivo e pegou Júlia!"

Franco não sabia que um ódio tão visceral por uma pessoa que nunca havia visto pudesse existir.

"Onde você está?"

"Na estrada da Queda D'água com Luísa. O bandido estava com Celeste Martinez no carro. Luísa disse que os dois estavam armados e que ele jogou o celular dela e de Júlia no rio."

A situação era crítica.

"Vai com Luísa agora pra delegacia. Eu vou atrás do seu irmão no cafezal e, depois, direto pra fazenda Martinez."

"Encontro você lá na fazenda, pai."

"Vou mandar Ataíde buscar Luísa na delegacia."

Franco desligou o telefone e lembrou.

Suzi!!!!

Como ia contar a ela sobre a sobrinha?

Decidiu! Não ia contar! Mas para Morena sim! Deixou-a ciente de tudo, foi até Ataíde e mandou aumentar a segurança em torno da casa.

- Depois que você fizer isso, vai até a delegacia de Ponta buscar Luísa.

- Pode deixar, patrão.

- Olho vivo! Esse Naja pode aparecer em qualquer lugar.

Agora... Caio!

Entrou na picape e saiu cantando pneu.


***

Caio pegou uma folha do cafeeiro e, pelo aspecto, logo percebeu a praga que já ia querendo se proliferar por Santa Helena: o bicho mineiro. Imaginou o problema que aquilo ia causar.

Lagartinha inconveniente!

Escutou alguém chegando, passou o olhar rapidamente no pai que vinha em sua direção e continuou examinando a folha.

- Pai, temos um problema aqui.

- Temos um problema maior que esse.

Caio levantou a cabeça e prestou atenção no pai. Franziu a testa ao perceber a tensão em seu velho.

- O que foi?

Franco hesitou por um segundo apenas.

- Naja está vivo.

- Vivo?!!!!

- E pegou Júlia.


***

- Lugar bonito! – Debochou.

Pelo contrário.

- Longe de tudo e de todos e isso é o que importa.

Empoeirado, com bicho e mofo.

Naja entrou na pequena casa, puxando Júlia pelo braço.

- No meio do mato e sem vizinhos!... Melhor que isso, impossível!

Celeste estava pouco se importando com o conforto de Júlia, mas queria a bebê.

- Vou pegar os mantimentos no carro. Olho nela!

Naja beijou a cabeça de Júlia e saiu. Ela não parava de chorar.

- Como você pode se juntar a esse assassino?

Celeste respondeu com brutalidade.

- Não fala! Quem fala aqui sou eu!

Júlia encostou-se à parede e ficou com a mão na barriga como que protegendo sua cria.

Os olhos de Celeste cravaram na barriga.

- Júlia... Júlia... Tomei champagne quando soube que você havia voltado pra Portugal com o rabo entre as pernas. Tomei de novo quando ouvi burburinhos sobre Caio ter te expulsado de Santa Helena. Tomei champagne quando chegou aos meus ouvidos o que Camilo fez com Luísa no passado. Como ela deve ter sofrido! Tadinha! Tomei champagne quando vi nos jornais o assassinato de Doralice. Que satisfação!

- Louca! Tomou champagne quando voltei mais forte e reconquistei Caio? Tomou champagne quando seu marido pediu perdão de joelhos para Luísa? Tomou champagne quando percebeu que Dora havia virado um ícone? Uma verdadeira lenda?

- Abusada! A minha satisfação é que você vai se foder e justo aqui!... Onde nasceu a trama da vela no café!... Esta casa traz boas lembranças...

- O que vocês querem de mim?! – Júlia gritou descontrolada.

- Eu quero sua filha... Já Naja... o que todo homem quer de uma mulher!

Júlia adoeceu só de ouvir aquilo.

- Nunca!... Nunca!...


****

¹Parto humanizado é a expressão usada para dizer que a mulher tem controle sobre como e em qual posição deseja e se sente confortável para o nascimento do seu bebê. A escolha de que o parto seja na cama, piscina, sentada ou de pé, e todos os outros detalhes da evolução do trabalho de parto como o tipo de anestesia, luz, som ou a presença de familiares, é inteiramente decidido pela gestante, por meio do plano de parto feito.


²Hiperventilação é a condição que se estabelece quando a ventilação pulmonar é maior que a necessária para a eliminação de CO2. Em outros termos, é um acréscimo anormal da quantidade de ar que ventila os pulmões, seja pelo aumento da frequência ou da intensidade da respiração.


³Expressão popular comum no Brasil e em Portugal, usada para se referir ao ato de confundir ou trocar coisas que são completamente diferentes.


****

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top