doze

- Vi, eu nem sei como te agradecer por ficar com o Alonso hoje - Mariella disse enquanto passava uma leve camada de batom. - Tô te devendo uma.

- Não esquenta, era a minha noite de folga mesmo e a Giana está no bar. Além disso, comprei uns jogos de tabuleiro na cidade. Vou manter seu irmão distraído e impedir que ele coloque fogo na casa.

- Isso seria muito bom, obrigada.

Mari terminou a maquiagem e passou as mãos pela calça de alfaiataria azul marinho que vestia. Apesar do frio, cada poro do seu corpo estava suando.

- Você tá nervosa mesmo, hein? - Vitória disse, desviando os olhos do seu livro de gramática italiana para observar a amiga. Ela estava recostada sobre os travesseiros na cama de Mari, o corpo debaixo de três edredons. - Você acha que o pai do Nico é tão ruim assim?

Mari tinha contado para Vitória que Nico e o pai não se davam bem, apesar de não ter entrado em muitos detalhes. Não queria expor toda a situação, porque sabia que era um assunto delicado e que só cabia a Nico revelar.

- Eu não sei o que vai acontecer, na verdade. Só quero que a noite não acabe em desastre.

- Você acha que chega a esse ponto?

Mari não respondeu, mas seu olhar grave fez Vitória assobiar baixinho.

- Boa sorte.

Naquele instante, Alonso entrou correndo no quarto e se jogou na cama ao lado de Vitória.

- Fiquei sabendo que hoje você vai ficar comigo, Vi - ele falou, a voz tão melosa que Mari não conseguiu deixar de rir. - Aposto que vai ser bem romântico.

Vitória fechou o livro.

- Você não desiste nunca, né?

- Posso lutar até o fim por você, meu amor.

Vitória riu e bateu de leve o livro na cabeça dele.

- Sai fora, pirralho.

Mari vestiu o seu sobretudo e se preparou para dar o fora.

- Eu já vou indo. Vocês se comportem. Vi, me liga se precisar de alguma coisa.

- Ei, Mari, por que você tá indo na casa do Nico mesmo? - Alonso perguntou.

Ela parou na porta, pensando no que dizer.

- Ele precisa da minha ajuda com uma coisa.

- Hum. - Só aquele som e o olhar esperto do irmão mais novo fez arrepios percorrerem o corpo dela. Era melhor sair dali antes que Alonso dissesse alguma coisa que a fizesse querer se jogar das escadas.

- Boa noite. Fica bonzinho com a Vitória.

E então ela praticamente saiu correndo, atravessando o castelo e a distância que separava as duas propriedades no escuro, só com a luz da lua para impedir que tropeçasse em alguma pedra solta.

Quando chegou perto da mansão, reparou na Ferrari vermelha estacionada do lado de fora da garagem. Ela a reconheceu como o carro do Riccardo, primo do Nico, e lembrou que ele também tinha sido convidado para o jantar. Mari subiu os degraus da varanda da frente e bateu a campainha, sendo atendida logo depois pelo rapaz de cabelos loiros e olhos verdes que tinha visto alguns dias antes na estrada.

- Mariella! - ele cumprimentou, o nome dela sendo pronunciado do típico jeito italiano, com muito ênfase no "ella". - Que prazer te ver de novo.

Ele a chamou para entrar. O uso de italiano, agora tão pouco frequente já que Mari passava boa parte do seu dia só convivendo com pessoas que falavam português, deu um nó na sua cabeça.

- Oi! É legal te ver outra vez também. - Ela deixou que ele a auxiliasse com o sobretudo e o cachecol, seus gestos tão exagerados e cavalheiros que ela riu. - O pai do Nico já chegou?

- Ainda não. Mas deve chegar a qualquer momento. - Ele se inclinou para ela enquanto atravessavam o corredor até a sala de jantar. - Você sabe que fomos chamadas para atuar no gerenciamento de crise, não é?

Mari abriu um sorrisinho.

- Pensei que estivéssemos aqui para impedir a crise.

- Que bonitinho, você ainda tem esperança.

Ótimo, aquilo era tudo que ela precisava ouvir para ficar menos nervosa.

Riccardo e ela chegaram à sala de jantar e se depararam com Iolanda e Nico andando de um lado para o outro, preenchendo a mesa com mil travessas e pratos.

- Isso não é comida demais? - ela sussurrou para Riccardo.

- Foi o que eu disse para o Nico. Mas ele parece querer provar para o tio Lorenzo que não tem prato no mundo que ele não possa fazer sozinho.

- Ele fez tudo isso?

Riccardo assentiu solenemente.

- Iolanda me disse que ele impediu que ela entrasse na cozinha por três dias.

Aquilo era loucura. Nico não precisava se provar daquele jeito.

- Mari? - ele chamou, a sobressaltando. Ela tinha se esquecido de se anunciar.

- Oi. Cheguei. Posso ajudar com os pratos?

- Já estamos quase acabando - ele disse. Ela se aproximou dele e passou as mãos pelos ombros da sua camisa preta, a alinhando. Mari notou a tensão nos seus músculos e o brilho de suor na sua testa. - Obrigado por ter vindo - Nico sussurrou para que só ela escutasse.

- É claro que eu viria. - Mari olhou outra vez para a mesa de jantar. - Você fez um banquete e tanto. Vai ter comida até o Natal!

- Acha que está bom desse jeito?

- Nico, tá perfeito.

Ele assentiu e foi até lá, alisando a toalha de mesa cor de gelo que não tinha nem uma dobrinha sequer. Ele alinhou as cadeiras e levou a mão até o vaso de flores que ficava no centro, arrumando o arranjo que já estava perfeito.

Ela trocou um olhar com Riccardo e Iolanda, sem saber o que fazer.

- Eu acho que vou trocar essa camisa - Nico anunciou do nada, usando italiano quando não estava falando diretamente com ela.

- Por quê? Ela tá ótima!

Mas ele já estava indo em direção à porta com Bidu ao seu lado.

- Esse tecido é horrível. Sempre fica amarrotado. Eu já volto.

Ela o observou sair da sala de jantar, lutando contra o impulso de ir atrás dele.

- Vai ser uma longa noite - Riccardo anunciou, puxando uma cadeira e se jogando nela. Ele cruzou as pernas longas na altura dos tornozelos e massageou a testa.

- Ele está uma pilha de nervos - Iolanda disse, a preocupação aparente em cada linha de expressão do seu rosto. - Mas eu entendo. O Sr. Moretti, aparecendo desse jeito depois de todo esse tempo! - Ela se virou para Riccardo. - Não é coisa boa, é?

O rapaz deu de ombros.

- Acredito que logo nós vamos descobrir.

- Bom, eu vou subir para o meu quarto. Já levei minha comida lá pra cima.

- Não vai jantar com a gente, Iolanda? - Mari perguntou.

- Ah, não. Eu não me dou bem com o Sr. Moretti desde a morte da esposa. Eu acabaria falando algo rude.

- Seria divertido te ver brigando com ele - Riccardo falou com um meio sorriso. - Em todos esses anos, nunca te vi brigando com ninguém.

- Ah, eu brigava muito com você e com o Nico quando eram crianças e quase colocavam essa casa abaixo! Eram dois pestinhas.

- Iolanda, nós dois sabemos que você sempre me amou.

A mulher mais velha revirou os olhos e passou por eles.

- Bom, aproveitem o jantar. E, por favor, caso cheguem a situações extremas, vocês podem poupar o meu vaso de flores? Era da avó do Nico. Uma relíquia de família!

E ela deixou a sala de jantar, fazendo com que Mari quisesse vomitar de nervosismo no vaso de flores em questão.

- Tem certeza que quer entrar para essa família? - Riccardo perguntou.

Mari estreitou os olhos para ele.

- Como assim?

- Ah, eu sei que tem algo rolando entre você e o meu primo. É óbvio. Além disso, vi umas marcas no pescoço dele. E eu duvido que o Bidu brinque de maneira tão agressiva.

O rosto inteiro dela começou a queimar. Ela não tinha sido agressiva. Só amorosa demais.

- Você parece ser uma pessoa legal - Riccardo continuou. - Não acho que vá acabar machucando meu primo.

- Essa é a última coisa que eu quero - Mari garantiu, por mais que soubesse que não precisava provar nada para ele. Mas Riccardo também parecia alguém legal e, até onde sabia, era o parente mais próximo de Nico. Queria que ele confiasse nela.

Riccardo assentiu, satisfeito. Depois de uma pausa, ele soltou:

- Fiquei sabendo que vocês vão para Sirmione no final de semana.

- É, nós vamos. Consegui convencer o Nico a ir também.

- Legal. Mulheres têm mesmo algum tipo de superpoder, né? Tô tentando convencer o Nico a sair dessa casa nos últimos dois anos e tudo que consegui foi levar ele para dar uma volta no jardim.

Mari sorriu, não disfarçando a satisfação ao ouvir aquilo.

- Eu posso ser bem persuasiva.

- Aposto que pode. - Riccardo estava enrolando a ponta do cabelo loiro, que chegava quase aos ombros, no indicador quando disse: - Sirmione é legal. Fui lá uma vez quando era criança.

- Parece incrível pelas fotos.

- É. Pois é. No domingo, então, deve ser demais. - Ele olhou para a lareira, para o lustre e para o vaso de flores. - Eu vou ficar aqui por mais alguns dias.

- É mesmo?

- É. A viagem até Milão é um tanto cansativa e o Nico e eu sempre temos coisas de trabalho para resolver.

- Entendi.

- Mas é legal que ele tenha um plano para o domingo. Eu ainda não tenho.

- Não tem?

- Não. As únicas pessoas da cidade que eu conheço são as velhinhas que costumavam me dar sorvete quando eu vinha passar as férias por aqui. Mas eu duvido que elas tenham energia para fazer outra coisa que não seja fofocar na praça.

Mari estava se divertindo, mas decidiu acabar com o sofrimento dele.

- Você quer vir para Sirmione com a gente?

Riccardo sorriu.

- Achei que você nunca ia perguntar! Podemos ir no meu carro. Nico contou que sua amiga e seu irmão vão também. Temos os lugares certos.

Mari concordou. Ela já tinha alugado um carro, mas seria fácil desmarcar.

Ela estava se perguntando como seria passar um dia inteirinho com Nico, Vitória, Alonso e Riccardo - que parecia ser bem decente, mas um tanto desmiolado - quando a campainha tocou.

Ela se endireitou na mesma hora e trocou um olhar com o rapaz à sua frente.

Ele suspirou e abriu os braços em um gesto amplo.

- E lá vamos nós.

Nico pisou em falso no último degrau da escada quando a campainha tocou.

Ele conseguiu se agarrar ao corrimão a tempo antes que torcesse o tornozelo. Bidu também agiu rápido, apoiando o corpo grande contra a perna dele e o firmando até recuperar o equilíbrio.

- Bom menino - ele sussurrou, acariciando a cabeça de Bidu e respirando fundo antes de continuar.

Nico não podia cometer aquele tipo de erro. Não naquela noite, pelo menos. Sabia exatamente quantos degraus aquela escada tinha - dezessete - e podia navegar pela casa sem a ajuda do Bidu ou da bengala. Conhecia o espaço. Sabia o que precisava fazer. E, mesmo assim, bastou um simples toque de campainha anunciando a chegada do pai para o seu controle ir por água abaixo.

Vai dar tudo certo, ele pensou, tentando controlar os próprios pensamentos e o coração acelerado.

Nico desceu o último degrau e atravessou o hall de entrada para abrir a porta.

O ar frio da noite foi parcialmente bloqueado pela presença do corpo do pai junto à porta. Nico segurou a maçaneta com tanta força que temeu que fosse arrancá-la sem querer.

- Oi, filho - ele ouviu o pai dizer, e a voz fez seu estômago revirar.

Uma coisa era conversar com ele ao telefone. Outra totalmente diferente era tê-lo ali, na casa em que Nico havia sido criado, a voz exatamente a mesma de quando ele era criança e desejava que o pai a usasse para perguntar sobre ele ao invés de falar de pinturas o dia inteiro.

- Boa noite, pai. - Nico deu passagem para que ele entrasse. - Por favor.

Ele sentiu o cheiro da colônia do pai, aquela que ele sempre usava e que se tornara o seu cheiro oficial para Nico. Houve o barulho de casacos sendo retirados e pendurados no cabide perto da porta. Nico começou a andar pelo corredor e ouviu os passos hesitantes do pai o acompanhando.

Quando chegou à sala de jantar, cadeiras foram arrastadas e ele imaginou Riccardo e Mari de pé observando o homem mais velho atrás dele.

- Riccardo, eu não imaginava te encontrar aqui - o pai disse, surpreso.

- Oi, tio Lorenzo. Pois é. Eu vim discutir negócios da vinícola com o Nico e ele me contou que o senhor estava vindo. Coincidência, né?

Se Nico tivesse olhos, ele os reviraria naquele momento.

O primo era o pior mentiroso que já tinha conhecido. Mas pelo menos estava ali. E aquilo significa muito.

- Mari?

- Oi?

Nico sorriu ao ouvir a voz dela e seguiu o som até ficar ao seu lado.

- Pai, essa é a Mariella. Mariella Cavalieri. Ela mora no castelo. - Ele não resistiu à tentação e passou um braço pela cintura dela. Quase sorriu ao imaginar a expressão provavelmente confusa e chocada do pai. - Mari, esse é meu pai, Lorenzo.

- Prazer, Sr. Moretti - ela disse, mas a voz era dura e engessada. Pelo jeito, não havia prazer nenhum ali.

Nico quis beijá-la. Infelizmente, teria que deixar aquilo para mais tarde.

- Vamos comer? - ele convidou.

Nico puxou uma cadeira e Mari se sentou ao seu lado. Ouviu os passos de Riccardo e do pai dando a volta na mesa, ocupando os lugares opostos.

- Iolanda não vai se juntar a nós? - o pai perguntou.

- Ela estava com dor de cabeça - Nico disse. - Preferiu comer no quarto.

- Que pena.

Como se você ligasse, ele pensou com raiva. Iolanda tinha praticamente criado Nico junto com a mãe, enquanto Lorenzo viajava por aí. E foi ela, ao contrário do pai, quem ficou ao seu lado durante toda a recuperação depois do acidente e nos anos que se seguiram, sem receber uma mísera palavra de agradecimento do antigo patrão.

- Cara, essa comida parece boa - Riccardo disse de repente. - Mari, pode me passar a travessa de gnocchi?

- Claro.

Nico percebeu que Mari e o pai estavam esperando ele se servir primeiro. Ele ficou nervoso de repente, tentando se lembrar da ordem das travessas que tinha disposto e planejando o que colocaria no prato antes de se mover.

Ele sentiu a mão de Mari na sua perna, apertando em um gesto reconfortante. Nico suspirou e colocou a mão sobre a dela, desejando beijar os nós dos seus dedos e fugir dali. Mas ele não podia. Não por enquanto.

Então se levantou e começou a se servir.

- Mariella, você é parente de Dante Cavalieri? - o pai perguntou, parecendo jogar conversa fora.

- Ele era meu avô.

- Eu soube do falecimento dele. Sinto muito.

- Obrigada.

- Há algumas telas minhas no castelo. Seu avô encomendou três há cerca de dez anos. Peças muito bonitas.

- É mesmo? Acredita que eu nem reparei?

Nico quase deixou o talher cair na travessa de espaguete. Ele torceu os lábios, tentando a todo custo não rir.

É claro que em menos de cinco minutos desde que tinha chegado ali, o pai encontraria uma maneira de falar sobre seus amados quadros. Ele só não contava com a presença de Mari naquela noite.

- Você tem um sotaque diferente - ele disse. Nico se sentou de volta na cadeira com seu prato, torcendo para não ter derramado nada. - Não consigo identificar.

- Sou brasileira. Metade brasileira.

- É mesmo? Que coincidência. O Niccolò também é.

Nico se encolheu com o uso do nome. O pai ainda era a única pessoa que o chamava daquele jeito. Devia ser menos para contrariar e mais por ele nunca ter prestado atenção que o mundo inteiro o chamava de Nico desde que ele tinha uns seis anos de idade e expressou preferência pelo apelido.

- Riccardo, você pode abrir a garrafa de vinho que eu trouxe da adega, por favor? - ele pediu quando se deu conta que todos já tinham se servido.

- É pra já.

Nico ouviu o plop satisfatório da garrafa de vinho tinto sendo aberta. Riccardo se ofereceu para servir e Nico ergueu a taça, se perguntando se o pai beberia também.

Quando Riccardo e Nico decidiram investir na vinícola, o pai não tinha gostado da ideia. Na época a mãe ainda estava viva e Nico tinha dois olhos saudáveis e uma mão direita excelente para pintura. Ele dizia que aquilo distrairia Nico do que era mais importante, sem perceber - ou não se importando - que os quadros nunca tinham sido importantes para ele.

- A comida está excelente, filho - Lorenzo disse depois de algum tempo. - Iolanda fez tudo isso?

- Eu fiz.

O silêncio encabulado fez com que Nico sorrisse por trás da borda da taça e bebesse um gole profundo em seguida.

- Você sempre foi muito bom na cozinha - o pai disse depois de um momento. - Mas não achei que continuaria cozinhando hoje em dia. Não é perigoso para você?

Nico se empertigou. Como se ele desse a mínima para a sua segurança, quando nem se importava em ligar para saber se Nico estava vivo ou morto.

Ele estava prestes a rebater quando bateu a mão na taça perto do seu prato. Ele tentou impedir o desastre, mas o objeto virou, derramando vinho para todo lado.

Nico sentiu o rosto esquentar. Imaginou o líquido escuro escorrendo na toalha clara. Podia até enxergar os olhos do pai na mente, verdes como os dele tinham sido, observando a bagunça com desgosto e conformidade ao mesmo tempo.

Ele ouviu o pai estalar a língua.

Era como se tivesse confirmado um ponto.

Mari segurou a taça antes que ela rolasse para a borda da mesa e se espatifasse no chão. Riccardo já tinha se levantado e voltado da cozinha com um pano.

Ela o pegou da mão dele e levantou o prato de Nico, absorvendo o líquido escuro até que sobrasse apenas uma mancha na toalha de mesa.

- Prontinho - ela disse, tentando manter o tom alegre, por mais que o rosto de Nico estivesse vermelho e Lorenzo Moretti olhasse para tudo com aquele ar melancólico que exibia desde o momento em que chegou, a dando nos nervos.

- Nico, você quer mais vinho? - ela ofereceu. Preferia agir como se nada daquilo tivesse acontecido. Sabia que Nico estava tentando não cometer nenhuma gafe na frente do pai, mas, sinceramente, aquilo era ridículo. Havia uma tensão entre os dois homens que a estava deixando maluca. Desejava que Lorenzo caísse em si e fosse embora. E também que Nico parasse de tentar se provar daquele jeito.

- Não, obrigado - ele disse. Mari devolveu a garrafa ao centro da mesa e se sentou, enchendo a boca de comida. Ainda era muito cedo para desejar que a noite acabasse logo?

- Mariella - o Sr. Moretti falou, e havia uma tentativa de sorriso no seu rosto. - Você e Niccolò estão juntos há muito tempo?

Mari, que estava com o garfo no meio do caminho até a boca, o desceu devagar. Nico, ainda calado, ergueu a cabeça e parecia prestes a dizer alguma coisa quando ela o interrompeu:

- Não muito - disse. - Mas eu sinto como se já conhecesse o Nico há bastante tempo. Ele é uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci.

Nico virou a cabeça na direção dela, a sombra de um sorriso nos seus lábios. Queria ficar a sós com ele. Queria confessar que, para ela, eles estavam juntos, sim. E que ela não conseguia se imaginar com mais ninguém além dele.

- Vocês são uma gracinha juntos - Riccardo comentou. - Espero que me convidem para ser um dos padrinhos do casamento.

Mari quase cuspiu o gole de vinho que estava bebendo e Nico soltou uma risada.

- Nós ainda não estamos pensando nisso - ela disse, sentindo muito calor de repente.

- Você sempre foi emocionado, Riccardo - Nico comentou.

Eles sorriram e a conversa continuou sem mais incidentes. Depois que terminaram de jantar, Nico se ofereceu para ir buscar a sobremesa. Mari foi atrás dele dizendo que pegaria os pires e as colheres.

Quando ficaram a sós, Mari segurou a mão dele e o fez se virar para ela.

- Você está indo muito bem - ela disse, ajeitando a gola da camisa dele e passando uma mão pelos seus cabelos.

- Eu fiz uma bagunça com o vinho.

Mari revirou os olhos.

- Esquece o vinho, Nico. Você não precisa ser perfeito.

Ele suspirou, parecendo frustrado.

- O meu pai me deixa maluco. Mesmo quando está em silêncio.

Ela sorriu e o beijou de leve.

- A noite já está acabando.

- Está?

- Sim. - Ela passou os braços pelo seu pescoço. - Eu pensei em ficar hoje à noite. Está frio e escuro demais lá fora.

Nico sorriu de leve.

- Verdade?

- Uhum. Suponho que você tenha um quarto de hóspedes.

Ele passou uma mão pelas costas dela.

- Todos desarrumados demais para te receber. Sinto muito. - Então ele beijou a base do seu pescoço e subiu para os seus lábios. - Mas eu tenho um espaço vago na minha cama de casal.

Mari sorriu. Era possível ser mais feliz que aquilo?

- Que sorte a minha.

Nico a estava quase beijando quando Riccardo apareceu de supetão.

- Nico, eu achei que você fosse buscar a sobremesa e não fazer a Mari de sobremesa. - Ele os enxotou da frente da geladeira e pegou a travessa de torta de amêndoas. - Andem logo. Quando antes a gente acabar com isso, mais cedo vocês arrumam um quarto.

Mari tentou não se matar de vergonha e Nico sorriu, roubando um beijo antes de guiá-la de volta para a sala.

Eles estavam quase terminando a sobremesa, falando sobre assuntos seguros como o clima e esportes, quando Lorenzo disse:

- Niccolò, eu me encontrei com um político recentemente e ele mostrou muito interesse pelos seus quadros.

Mari ficou tensa no mesmo instante, os olhos indo de Lorenzo para Nico. Na sua frente, Riccardo suspirou e largou o pires cheio de torta pela metade.

Nico continuou comendo, como se o assunto não fosse importante. Mari se permitiu sentir um pouco de alívio.

- Legal - ele disse apenas.

- Ele está muito interessado em adquirir mais quadros. Por uma quantia exorbitante.

Nico terminou a sobremesa.

- Ele deve conseguir com algum colecionador, sei lá. Se tem tanto dinheiro e é tão importante assim, vai dar um jeito.

- Eu contei para ele que você tinha alguns quadros que nunca foram expostos aqui, em Montefiori. Ele está disposto a vê-los e comprá-los, se você concordar.

- Não concordo.

Mari engoliu em seco e aguardou.

- Filho, o homem é um dos mais influentes do país. - Lorenzo suspirou e tentou manter a voz estável, gesticulando loucamente para provar seu ponto como se Nico pudesse vê-lo atrás dos óculos. - Eu não posso simplesmente me encontrar com ele de novo e dizer que você não aceita vender os quadros por puro capricho.

- As pinturas são minhas, pai. Eu faço com elas o que bem entender.

- Você faz ideia do quanto essas peças valem? Todos do meio sabem o que aconteceu com você. Sabem que existe uma quantidade de telas limitada e que você não vai produzir mais.

Nico bateu as mãos na mesa, fazendo as taças e os pratos vibrarem e Mari dar um pulo de susto em seu lugar.

- É sempre só sobre isso, não é, pai? Sobre a porra das pinturas. É por isso que você veio aqui em primeiro lugar.

Lorenzo fez que não repetidamente com a cabeça, em silêncio, como se o filho não entendesse.

Mari quis esganá-lo e gritar para que usasse palavras. Como ele podia ser assim tão ignorante a respeito do filho?

- Você não sabe como as suas telas são valiosas, Niccolò. O quanto são admiradas e procuradas. Podem abrir portas para lugares inimagináveis.

- Abrir portas? Para quem? Para mim ou para você? - Nico balançou a cabeça, descrente. - Você quer usar as pinturas que ainda restam para ascender no meio artístico. Não é isso? Nunca foi sobre mim, nem sobre o que eu podia fazer. Sempre foi sobre você.

- Você não entende. Eu sempre quis o que fosse melhor para você, filho. Eu via o seu talento. Você poderia ser grande como nem mesmo eu consigo ser.

Nico segurou a tampa da mesa com força, os nós dos dedos brancos.

- É uma pena então que as ferragens e todos aqueles estilhaços de vidro tenham acabado com esse seu sonho, não é, pai?

Lorenzo fechou os olhos com força.

- As pinturas nunca foram o mais importante, Niccolò. Sua vida é. Acha que eu não penso sobre isso todos os dias? Se eu pudesse consertar as coisas, eu consertaria. Para você ser feliz e ter uma vida plena e independente de novo.

Mari quase se levantou da cadeira também, mas Riccardo segurou seu pulso por sobre a mesa e a impediu, balançando a cabeça de leve. O recado era claro:

Vai ser pior se você entrar nisso.

Nico levou as mãos ao cabelo, quase como se fosse arrancar cada fio em um rompante de raiva.

- Uma vida plena? - ele falou, a voz falhando. - Você é assim tão superficial, pai? Eu não preciso que você fique fingindo lamúria pelo que aconteceu comigo. Não preciso que você deseje que eu volte a ser a pessoa que eu era antes. Eu queria que você pudesse me aceitar pelo que eu sou agora.

Nico levou uma mão à lateral dos óculos e parecia prestes a arrancá-los quando parou de súbito, virando a cabeça na direção de onde Mari estava.

Ela queria chorar. Queria gritar. Queria que ele não tivesse medo e que aquele homem horroroso fosse embora.

Nico deixou os braços caírem ao lado do corpo, a exaustão visível nos ombros curvados e no rosto contraído.

- Vai embora, pai.

- Eu te aceito, filho. Sempre aceitei.

- Vai embora - Nico repetiu, a voz baixa.

- Você é meu único filho. A única coisa que sobrou da sua mãe. - Lorenzo estava implorando agora. - Eu te amo.

Nico balançou a cabeça. Uma única lágrima surgiu, rolando pela bochecha dele até pingar na toalha de mesa.

Mari nunca tinha sentido aquilo antes. Ela podia jurar que ouvia o seu coração se partir.

- Eu quis tanto ouvir isso - Nico confessou. - Quando eu era garoto e você praticamente me trancava no estúdio de pintura. Quando eu passava horas em frente às telas, odiando cada segundo, só para você ficar orgulhoso de mim. Queria que você dissesse isso quando voltava de viagens de semanas e me encontrava esperando nos degraus. Por mais que eu dissesse para mim mesmo que gostava quando você estava fora, não era verdade. Eu queria te ter por perto. Mas queria que fosse uma pessoa diferente. - Ele engoliu em seco. - Eu queria que você tivesse dito isso no hospital, pai. Ou no velório da mamãe. Mas você nunca disse. Era muito difícil me encarar, não era? Era como se você estivesse vendo o que sobrou de quem você queria que eu fosse.

- Niccolò. Nico...

- Sai daqui!

Nico arrastou a cadeira para trás e ela caiu no chão com um baque. Mari percebeu que ele era muito maior e mais forte que o pai, e Lorenzo deve ter notado aquilo também, porque o receio brilhou nos seus olhos.

Ele se levantou.

- Eu sinto muito - foi tudo o que disse, os olhos marejados.

Mas o homem era mesmo um covarde, porque saiu da sala de jantar depressa e segundos depois bateu a porta de entrada.

Os três ficaram ali parados, ouvindo o crepitar da lareira e o barulho do motor do carro ao longe. O brilho dos faróis refletiu no vidro da janela e se afastou quando o veículo deu meia volta.

Em poucos segundos, a única prova de que Lorenzo Moretti esteve ali era seu prato sobre a mesa e a dor curvando o corpo de Nico.

Mari se aproximou dele, mas Nico se afastou.

- Eu preciso ficar sozinho por um instante.

Então ele deixou a sala de jantar com Bidu ao seu lado.

Mari se deixou cair na cadeira e olhou para Riccardo.

- É por isso que o Nico tem tanto medo - ele falou depois de um longo momento, o rosto visivelmente abalado. - O próprio pai virou as costas para ele depois do que aconteceu. Isso mexe com a cabeça de uma pessoa. Ela não acredita ser merecedor de felicidade. Não se vê tendo uma vida comum. Se a própria pessoa que mais devia amá-lo no mundo foi embora, que garantia ele tem que outras vão ficar?

- Eu vou ficar - Mari disse, a voz firme apesar das lágrimas.

- Então você vai ter que provar isso para ele. Todos os dias um pouquinho. - Riccardo a analisou com os olhos claros. - Vai ser cansativo e doloroso. Ele pode tentar te afastar.

Mari balançou a cabeça.

- Eu não vou desistir.

Riccardo assentiu em aprovação.

Mari se levantou da cadeira quando ouviu um barulho alto no andar de cima. Riccardo se levantou também.

- Eu vou primeiro - ela disse. - Fica aqui.

O rapaz assentiu e baixou os olhos.

- Tudo bem.

Ela subiu as escadas depressa e seguiu o som até a quarta porta à direita do corredor. Quando a abriu, se deparou com um cenário de destruição.

As telas, que apenas alguns dias antes estavam enfileiradas nas paredes do cômodo, agora estavam rasgadas e destruídas conforme Nico as jogava no chão e a destroçava, uma a uma.

- Nico - ela chamou, mas ele não pareceu ouvir por cima do barulho. - Nico.

Ela se aproximou com cuidado e segurou seus braços, o imobilizando antes que ele a acertasse sem querer. Nico se assustou e uma das telas escapou dos seus dedos.

Mari o abraçou com força e o levou até o chão.

- Vai ficar tudo bem - ela sussurrou para ele. Nico agarrou o tecido da sua blusa e afundou o rosto na curva do seu pescoço. Ela sentiu as lágrimas molharem seu ombro enquanto os soluços sacudiam o corpo dele.

- Eu queria não ter concordado com esse jantar - ele disse com raiva.

- Eu sei. Mas já passou.

- Mari, a tela da minha mãe... Ainda está aqui? Eu não queria destruir ela. Só ela.

Mariella se afastou dele um pouco e olhou ao redor. Estava escuro, mas ela reconheceu o quadro que ele tinha pintado da mãe, jogado de lado no chão, mas ainda intacto.

- Está aqui. Sem um arranhão.

Nico assentiu e se deixou ficar nos braços dela. Mari o beijou e enxugou as lágrimas.

- Você ainda vai ficar? - ele perguntou.

Mari sorriu.

- Claro que vou. Você me prometeu um lugar na sua cama de casal, lembra?

Nico riu baixinho e Mari se permitiu ter esperança.

Ela segurou o rosto dele com as duas mãos.

- Nico, eu não vou mais a lugar nenhum. Não onde você não esteja.

Ele assentiu de leve, a dor e o alívio ali, estampados no seu rosto.

Quando a respiração de Nico voltou ao ritmo normal, ela o segurou pela mão e pediu que ele guiasse o caminho até o quarto. Então Mari deixou a luz do cômodo apagada e fechou as cortinas que cobriam a janela. Pelos sons, Nico deve ter notado o que ela estava tentando fazer.

Por isso, quando foi até ele e tirou seus óculos, Nico não tentou impedi-la.

Ela não conseguia ver nada. Nem a sua própria mão estendida na frente do rosto. Mari disse aquilo para Nico e ele a beijou de leve, a segurando pelo pulso e a guiando até a cama no centro do quarto.

Quando não havia mais nada entre eles e os lábios do Nico a fizeram esquecer de todas as partes ruins daquele dia, Mari só conseguiu pensar que talvez o amasse.

E muito mais tarde, quando ele caiu no sono ao lado dela, um braço protetor em volta da sua cintura e a respiração tranquila na sua nuca, Mari confessou a verdade baixinho para o quarto escuro. E desejou que tivesse coragem de dizer as palavras, mesmo temendo não ouvi-las de volta.

_______________________♥️_________________

Oii, gente!

Como prometido, um capítulo no meio da semana para vocês. Tô louca para saber o que acharam desse. Sei que foi um tanto sofrido.

Volto em breve com mais atualizações, obrigada por estarem sempre po arqui vibrando comigo!

Um beijo e até logo,

Ceci.

Fiquem com essa gracinha que partiu meu coração:

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