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O irônico foi constatar que, de fato, Freud me salvou naquela prova. Xinguei baixinho quando me deparei com uma questão que, contrariando minhas expectativas, evocava o pai da psicanálise. Como se eu precisasse de mais um motivo para tê-lo preso aos meus pensamentos.

Sentia-me ridícula àquela altura; era a única descrição cabível. Não era raro me deparar com clientes bonitos, charmosos e que arrancavam suspiros, meus e de outras meninas (e meninos) que trabalhavam comigo. Geralmente, rendiam algumas risadas e divagações sonhadoras, mas jamais passou disso. Não entendia o que havia em André que fazia com que não saísse da minha cabeça. Não somente desde aquela sexta-feira em que apareceu fora de hora, não; estaria mentindo se dissesse que não havia reparado nele antes.

Havia.

Quando aparecia sozinho e gastava bons quarenta minutos bebericando seu café-Frankenstein e lendo, eu me pegava me perguntando o que ele lia com tanta atenção e interesse. Quando aparecia acompanhado, havia um incômodo em mim que não sabia explicar e me recusava a admitir que era ciúmes de uma pessoa com quem jamais havia trocado uma única palavra.

Mas, agora, havíamos trocado algumas muitas palavras. Eu não era idiota nem jamais tive qualquer vocação para me fazer de sonsa: ele parecia interessado em mim, não fingiria que não. Não queria fingir que não, mas também não sabia o que fazer com isso.

Quando quinta-feira chegou novamente, estava dividida entre ficar brava com ele por me deixar confusa ou tocada pelos bombons. Escolhi a mais perfeita neutralidade, que foi derrubada quando as horas começaram a passar e ele não veio. Já eram quase seis da tarde quando André apareceu.

Como prometido, eu tinha hora extra para cumprir para compensar meu atraso do dia anterior, então, enquanto os outros funcionários se apressavam para ir embora, eu lentamente limpava tudo, sabendo que um estoque a ser arrumado me esperava pela próxima hora.

— Desculpa, já estamos fechados — Bia se apressou a dizer quando André se aproximou do balcão.

A atenção dele pousou nela por pouco tempo, logo vindo na minha direção.

— Eu sei, obrigado — murmurou, o olhar preso a mim. Ergueu a mão, apontando na minha direção. — Só vim perguntar como foi sua prova.

De canto de olho, vi o sorriso malicioso da minha amiga despontar antes de ela, nada discretamente, se afastar.

— Bem, eu acho — respondi. Sentindo-se perfeitamente confortável, aproximou-se e se recostou ao balcão do meu lado. — Obrigada pelo chocolate.

— Você gostou? Minha irmã que faz, tem mãos de fada para doces — comentou, parecendo orgulhoso.

— Maravilhoso — concordei, porque, de fato, era.

Como passe de mágica, quando o relógio marcou seis em ponto, os últimos funcionários começaram a sair. A cozinha fechava mais cedo, então restavam apenas alguns poucos que trabalhavam no salão. Beatriz, sempre rápida para fechar o caixa, mal levou meia hora para colocar tudo em ordem e sumir dali. Por fim, havia ficado apenas eu e Max, que não hesitou antes de me entregar as chaves do lugar e ir embora sem olhar para trás, instruindo-me a trancar tudo antes de sair.

Assim, me vi sozinha ali com André. O sorriso satisfeito em seu rosto deixou claro que foi proposital; eu não tinha nenhuma motivação para protestar.

Ele passou a mão no cabelo e desviou o olhar por um instante, parecendo momentaneamente constrangido.

— Eu estava me perguntando se... Se você quer beber alguma coisa? — sugeriu, parecendo incerto demais para a visão que eu tinha dele.

— Eu não bebo — respondi, arrancando o avental e desviando o olhar do seu.

— Café? — ofereceu, sem se dar por vencido. — Se você me ensinar a usar esse troço, eu faço um para você — sugeriu, apontando para a máquina.

Apertei os olhos na direção dele, que fez um bico ridículo.

— O que você está fazendo, André? — perguntei, cruzando os braços em frente ao peito. Ele me olhou como se não entendesse como era possível eu ter qualquer dúvida quanto à sua motivação, respondendo como se declarasse o óbvio:

— Não consegui vir mais cedo, eu... queria te ver.

Revirei os olhos e bufei, balançando a cabeça.

— Ei, não faz assim! — ele reclamou. — Droga, demorei meses para tomar coragem de te chamar para sair, Sofia.

Ergui os olhos novamente na direção dele, piscando repetidamente. André suspirou, entreabriu os lábios e respirou pela boca, como se tentasse descobrir por onde começar.

— A primeira vez que eu vim aqui, foi para uma reunião com uma cliente, e acabei não prestando atenção em nada, mas o café era maravilhoso, então voltei na semana seguinte com a minha irmã e...

Sua irmã? — interrompi, verdadeiramente chocada. — Aquela loira era sua irmã?

Mordi a língua um segundo depois, mas era tarde demais: o rosto de André se partiu em um sorriso glorioso de quem me pegou no flagra. Sim, eu lembrava, e agora ele sabia disso, sabia que eu estava prestando atenção, então era inútil tentar voltar atrás. Sendo assim, decidi me render à loucura:

— Ela estava te olhando como se quisesse te devorar — comentei, falando pausadamente.

Ele negou com a cabeça.

— Ela estava olhando para a sua amiga como se quisesse a devorar — rebateu. Tentei puxar da memória a cena que vi naquele dia, mas fui incapaz de lembrar com detalhes. — Karine me fez prometer que eu daria um jeito de conseguir o telefone dela, mas aí eu vi você.

Assisti-o desencostar do balcão e o contornar, vindo até onde eu estava. Parando de frente para mim, André me prendeu ali, sem realmente encostar em mim. Estava perto o suficiente para bloquear minha passagem, uma mão de cada lado meu, minhas costas contra o balcão, meu rosto levantado em sua direção.

— Eu vi você e tive certeza que nunca tinha visto uma mulher tão bonita antes — sussurrou como se me contasse um segredo.

Mal notei quando ergui mais o queixo na sua direção, os lábios entreabertos onde o olhar dele estava pousado. Uma mão alcançou meu rosto, acariciando minha bochecha, o polegar percorrendo-me o lábio inferior.

— Quando tomei coragem de falar com você, quis chutar minha bunda por ter demorado tanto tempo — murmurou, aproximando-se mais, o corpo agora cobrindo o meu por completo, tocando-me em todos os pontos onde era possível me tocar. Seu rosto desceu ao meu, seu nariz roçou no meu. Sentia meu coração descompassado contra meu peito, batendo alto o suficiente para eu ter certeza de que ele podia ouvir. Minha pele arrepiada pedia pelo seu toque, minhas pálpebras pesadas ameaçavam fechar e meus lábios imploravam por um beijo seu.

Beijo esse que estava próximo, eu sentia. A respiração quente na minha pele indicava o quão perto ele estava, e eu podia jurar que o coração dele estava tão descompassado quanto o meu. Quando seus lábios roçaram nos meus, contudo, minha mente escolheu esse exato momento para acordar do transe e embutir bom-senso no meu corpo. Ergui uma mão e a espalmei em seu peito, suavemente empurrando-o para trás.

— Não — sussurrei, e não levou outro segundo inteiro para que ele se afastasse. Imediatamente senti falta do seu calor.

— Desculpa — pediu, erguendo as duas mãos antes de as arrastar pelo rosto. — Sofia, desculpa. Droga, não quis te desrespeitar. Me desculpa. Eu achei que...

— Não desrespeitou — apressei-me a responder, agradecendo minha voz por funcionar. — Você achou certo, eu só... Não acho que é uma boa ideia.

O semblante um tanto desesperado que ele havia assumido por achar que havia cruzado algum limite deu lugar à uma expressão de genuína confusão.

— Por que não?

Não consegui evitar uma risada baixa e um tanto amarga.

— Porque não sei nada de você — expliquei, dando de ombros. — E isso não seria impedimento nenhum para te beijar em qualquer outra situação, mas... Honestamente, André, eu te vejo desfilando com uma mulher diferente a cada semana, e você quer me convencer que teve qualquer interesse em mim antes? Isso sim é um desrespeito. À minha inteligência, no caso.

Ele me encarou embasbacado por alguns instantes. Apertou os olhos fechados e os coçou por baixo dos óculos. Mordeu o canto do lábio, e não pude deixar de suspirar, desejando poder fazer o mesmo.

— O laço da caixa de bombons era vermelho porque eu deduzi ser sua cor favorita — ele declarou, os olhos ainda fechados. Quando os abriu, as íris castanhas pareciam revestidas de constrangimento. — Você sempre está usando alguma coisa vermelha. Ou a camiseta, ou um brinco, ou essa bandana no cabelo. A bandana é sempre vermelha.

Levei a mão à cabeça, tocando o tecido que usava para manter os fios no lugar, surpresa que tenha reparado.

— Você toma uma quantidade absurda de água. Já teve dia que te vi enchendo sua garrafinha três vezes enquanto eu estava aqui. Provavelmente é bom para sua saúde — brincou, dando de ombro, e eu sorri. — Você e a menina que trabalha no caixa...

— Bia.

— Você e a Bia parecem muito amigas. Estão sempre rindo de alguma coisa. — Ele arqueou uma sobrancelha. — Posso apostar que, na maioria das vezes, estão rindo dos clientes.

Assenti. Na mosca.

— Você ouve música escondida às vezes. Seu cabelo está sempre preso, mas às vezes você solta e esconde o fone de ouvido por baixo.

— Não é música — corrigi, sentindo minha voz falhar. — Normalmente são audiobooks. Como... você sabe disso?

Ele deu um passo na minha direção, alcançando novamente meu rosto.

— Eu disse, Sofia. Meus olhos sempre estiveram em você. — Abri a boca para responder, mas ele continuou: — Você disse que não sabe nada sobre mim — interrompeu. — O que é ridículo, considerando que fazem... quatro meses? Quatro meses que eu venho aqui, toda semana, só para te ver. Então, por favor, me escuta. Depois me manda embora se me achar completamente louco, mas primeiro me escuta.

Mordi o lábio e assenti, porque queria ouvi-lo, mas também porque o calor da sua palma na minha bochecha não era algo que eu queria deixar de sentir. André suspirou e fechou os olhos, recostando a testa na minha.

— Meus pais são namorados de escola. Estão juntos desde que tinham catorze, quinze anos. Eu nunca vi um amor tão bonito igual ao dos dois, Sofia, e sempre quis isso para a minha vida, sempre. Mas acho que na verdade sempre tive medo de encontrar.

A mão livre dele encontrou a minha, enlaçando nossos dedos.

— Aqueles dois vivem um para o outro. Cada coisa que meu pai faz, é pensando em fazer minha mãe feliz. Acho que isso sempre me aterrorizou um pouco, a ideia de que existe alguma pessoa aí fora que pode ter esse poder todo sobre mim. Então desembestei a ter encontros sem sentido com pessoas que claramente não eram certas para mim porque... porque eu sou um idiota.

A mão dele soltou a minha e começou a subir pelo meu braço. Tentando tirar meu foco do arrepio que cortou minha pele onde os dedos dele tocaram, disparei:

— Não é um idiota. Encontros desastrosos e sexo com pessoas erradas fazem parte da vida de qualquer adulto — brinquei, a respiração pesada pela proximidade.

André finalmente abriu os olhos e, como se quisesse que eu tivesse maior acesso a eles, tirou os óculos do rosto, apoiando-os no balcão atrás de mim e franzindo as sobrancelhas.

— Você acha que eu fui para a cama com todas aquelas mulheres? — perguntou, incrédulo. Tentei evitar o pensamento, mas sim, ele cruzou minha mente em algum momento. Diante da minha careta, André abriu um sorriso glorioso. — Primeiro, obrigado por confiar no meu desempenho sexual a ponto de achar que eu, trabalhando cinquenta horas por semana, consegui a proeza de transar com, o que?, dez mulheres diferentes nos últimos meses?

— Treze — sussurrei, apertando os lábios juntos para os seus olhos arregalados. — Eu não estava contando, você estava contando — impliquei.

— Segundo — continuou, a diversão solta na sua voz —, quem se preocupa com sexo desse jeito é adolescente. Na glória dos meus vinte e nove anos, minhas maiores preocupações são meus boletos estarem pagos, minha irmã não estar me enlouquecendo, meu emprego estar garantido — suas duas mãos alcançaram meu rosto, uma em cada bochecha — e uma certa estudante de publicidade me notar.

Umedeci o lábio inferior e vi quando a atenção dele foi atraída para aquele ponto. Havia sinceridade em seus olhos, e eu quis mergulhar neles. Eu não tinha nenhum passado muito traumático, nenhum histórico de ex-namorados que abalaram minha capacidade de confiar em alguém, então, dessa vez, quando André lentamente se aproximou novamente, dando-me todas as chances de recusar o beijo, eu o aceitei.

A boca macia alcançou a minha, lenta, carinhosa. André me prendeu em seu abraço e me puxou ainda mais para si, por um minuto curto demais antes de descer as mãos à minha cintura e me impulsionar para cima, colocando-me sentada no balcão atrás de mim, encaixando-se entre minhas pernas. Senti meus lábios inchados após beijos que se tornaram intensos o suficiente para que minha respiração descompassasse, seguindo o mesmo ritmo incerto da dele.

— Eu desembestei a ter encontros sem sentido com pessoas que claramente não eram certas para mim porque era mais fácil do que me permitir me apaixonar. O que claramente não adiantou de nada, não depois que eu te vi pela primeira vez. Não quando eu não tive outra escolha a não ser voltar aqui, de novo e de novo e de novo, nem que fosse para te ver por alguns minutos, porque você fez meu coração disparar.

— Você é louco — declarei, mas podia sentir o sorriso no meu rosto. O que estava acontecendo ali?

— Talvez — ele concordou. André me soltou e alcançou os óculos, colocando-os de volta ao rosto. Afastou-se alguns passos e foi até a máquina de café que ainda estava ligada, encarando a coisa como se fosse um aparato tecnológico complicado de outro mundo. — Como eu uso isso? Acho que já passou da hora de eu te fazer um café para variar — declarou, apontando com o dedo entre mim, ele e a máquina.

Apoiei-me nos braços esticados atrás do corpo e esperei, sabendo que era uma péssima ideia. Ditei alguns comandos, explicando o que fazer, passo a passo. Provando ser um péssimo aluno, ele fez tudo errado. Precisei morder a língua para não intervir quando ele comprimiu o pó de café com força demais, torci o nariz quando vi que o expresso estava com a cor errada — claro demais. Quando André mergulhou na tentativa pífia de aquecer o leite usando o tubo de vapor, destinado à fazer espuma, e fez barulho o suficiente para parecer que estava torturando um cachorrinho, uma risada desesperada escapou da minha boca, sabendo que um desastre estava a caminho.

Como uma profecia autorrealizada, o leite transbordou da jarra e derramou sobre o balcão. Fui incapaz de sequer ficar brava quando ele me ofereceu uma perfeita cara de cachorro sem dono.

— Você está oficialmente proibido de chegar perto dessa máquina de novo — declarei. Não me dei ao trabalho de me mover, deixei que ele lidasse com a bagunça.

— Não posso contestar isso — concordou fazendo uma careta para o desastre que criara. Suspirei quando arregaçou as mangas, dando-me o vislumbre da tatuagem em seu braço. Analisei o desenho enquanto ele limpava a bagunça, tentada a tocá-lo. Quando acabou e declarou que dali em diante ele se restringiria a fazer seu próprio trabalho, vindo até mim, fiz exatamente isso: contornei o desenho com a ponta dos dedos. Enjoy the journey estava escrito em meio a um emaranhado de formas abstratas com uma bússola no meio, e pareceu um conselho apropriado para a ocasião. Aproveite a jornada.

— Com o que você trabalha, afinal? — perguntei, rendida à insanidade.

André voltou para outro beijo, e eu tive certeza que não havia nada melhor na vida do que a sensação abrasadora de um novo amor. Aquela excitação, o arrepio na pele, a sensação gostosa na barriga por estar descobrindo algo novo, tudo isso me atingiu de uma vez, e eu me entregaria a isso.

— Eu te conto se você me deixar te levar em um encontro. Não aguento mais só te ver aqui, uma vez por semana — declarou com um suspiro pesaroso.

Joguei a cabeça para trás, apertando os olhos para ele.

— Não é nada ilegal, é?

André soltou uma gargalhada tão genuína que aqueceu meu peito.

— Eu sou jornalista, pelo amor de Deus, Sofia — riu. — Trabalho na redação de um canal de tv do outro lado da rua, sua doida — completou, tomando minha boca novamente.

— Tudo bem, você pode me levar a um encontro — concordei contra seus lábios. — Mas ainda tenho muito o que fazer aqui hoje.

— Precisa de ajuda? — ofereceu, e eu prontamente aceitei:

— Você pode começar me ajudando a arrumar o estoque. Não tem nada que prove o caráter de alguém mais do que um pouco de trabalho duro.

André cerrou os olhos, balançando a cabeça em negativa, um sorriso nos lábios.

— Por que tenho a impressão de que você vai abusar de mim daqui pra frente? — perguntou, saindo da minha frente para que eu descesse do balcão.

— Não é que você é bem perceptivo mesmo? — provoquei, desvencilhando-me dele para ir em direção aos fundos da loja. Olhei-o por sobre o ombro e arqueei uma sobrancelha. — Você vem?

André acenou com a cabeça.

— Sempre.

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