O passado a surgir

Ao entardecer Jaime convidou Lourenço a ir com ele à cidade para poderem estar sozinhos e conversarem.

Sentaram-se numa esplanada.

- Então como te sentes? Agora que conheces o teu império?

Jaime esboçou um sorriso.

- É brutal. Obviamente têm uma equipa fantástica, por isso, não precisam de mim.

- Jaime! Tenho estado a apreciar-te neste processo, e nem pareces o amigo que conheço de há muitos anos. Parece que em vez de te ter saído a sorte grande, te saiu a sorte pequena... anima-te! Vê isto como um desafio, e pesa os prós e os contras, e traça planos homem!

- Tens razão! Pareço um coitadinho mesmo. É mesmo isso. Mas o que achas que devo fazer?

- Jaime não me faças essa pergunta. Tens que ser tu a decidir. Tens que saber o queres.

Jaime sorveu um pouco mais do fino fresco e ficou em silêncio, mais um pouco.

- Eu gosto disto aqui. Mas tinha que largar tudo o que conheço, amigos, as minhas raízes e vir para aqui instalar-me. Posso vender a vinha, ou passá-la para os trabalhadores... Ainda não sei. Sei que só o dinheiro que ele me deixou é mais que suficiente.

- Se ficares com isto, ajudo-te a divulgar e vais ver o negócio a aumentar. Dás-me uma parte e vamos ser bilionários - E soltou mais uma das suas estridentes gargalhadas.

Voltaram para a quinta e Jaime vinha pensativo.

- Já te disse que és um amigão? Perguntou Jaime a Lourenço

- Se disseste não me lembro, mas, eu sei que sou - e riu-se

A mesa já estava posta para o jantar, que mais uma vez, foi agradável e apetitoso.

Lourenço, entretanto, desapareceu e Jaime foi até ao escritório do tio.

Voltou à escrivaninha e lá se pôs a mexer, mas nada.

Olhou à sua volta, e nada em particular lhe chamou a atenção. Voltou-se para estante que estava mais perto dele. tinha uns bibelots em baixo pouco antes das gavetas, logo a seguir às prateleiras cheias de "tesourinhos".

De repente, apercebe-se que um dos bibelots era uma caixinha antiga de madeira. Pega nela e abre-a. Tinha três chaves lá dentro. Olhou-as, e tirou a primeira para ver se conseguia perceber de onde era. Percorreu a sala e foi fazendo o mesmo com as outras duas. Achou estranho não parecerem de lado nenhum. Foi ter com a D. Sónia e perguntou-lhe se sabia de onde eram as chaves. Ela disse que não, que só o tio sabia, que acreditava que nem a Dra. Matilde sabia.

Foi dar uma volta pela casa, mas por alguma razão ele achava que o sítio de cada uma era no escritório.

Voltou lá. Ficou parado na entrada. Começou novamente a analisar cada móvel, e de repente, percebeu que um dos móveis tinha de lado um buraco que mal se notava. Aproximou-se e viu que era uma fechadura. Experimentou uma a uma as chaves até que uma acabou por abrir.

Era como se fosse uma portinha para um pequeno espaço, com outra caixa lá dentro. Começava a parecer as bonecas russas. Sentou-se e abriu a caixa. Tinha um molhe de cartas.

Tirou a primeira e estava endereçada a Samuel Caetano, o tio. A letra parecia feminina. Não trazia remetente no envelope. Abriu, sabia que estava a entrar na intimidade do tio, mas também precisava de o conhecer melhor.

"Querido Samuel,

não sei como posso viver assim. Sinto-me terrivelmente mal e culpada de ter deixado tudo isto acontecer, depois de teres sido tão amigo e nos teres permitido fazer umas férias maravilhosas.

Quase que não consigo olhar para o António, não só porque vocês são tão parecidos, mas porque me sinto uma... desonrada.

Não sei como vou conseguir...

Desta que sente por ti um grande amor

Cândida.

12-03-1940"

Cândida? Era a avó de Jaime. Este começou a achar que era tudo tão surreal desde o início que nem sabia bem o que pensar.

Abriu outra carta

"Meu querido Samuel,

está tudo de pernas para o ar. Estou grávida! Não vou conseguir viver com esta mentira. Sei que pediste em nome do nosso amor e do amor que temos pelo teu irmão, mas não posso mais.

Não aguento estar perto dele e saber que lhe minto todos os minutos, segundos, e vou ter que lhe falar da gravidez.

Peço-te que não faças nada e nada digas. Eu vou tratar de tudo.

Com todo o meu amor,

Cândida

9-04-1940"

A avó ficou grávida do tio? Só pode ser o pai que nasceu em dezembro 24 de 1940.

Tirou nova carta

"Querido Samuel,

Já sei que o António te escreveu. Peço-te que entendas. Não posso continuar a escrever-te, não seria justo para o António. Peço-te que me perdoes e me esqueças pois não nos voltaremos a ver ou a falar.

Desejo que a tua vida seja o melhor possível e te apaixones e tenhas a tua própria família.

Com amor

Cândida

24-05-1941"

Jaime estava em estado de choque. Isso faria do tio pai do pai e avô dele. Não!

Levantou-se e foi beber qualquer coisa. Lourenço chegou.

- É mesmo isso, um copinho para adormecer.

Jaime bebeu o dele de um trago e voltou a encher. Lourenço olhou para ele.

- Que se passa Jaime? Estás branco, sentes-te bem?

Jaime levantou o dedo e foi-se sentar.

- Não, não estou nada bem.

- Queres ir ao hospital?

- Não. O Hospital não vai poder fazer nada.

- Mas então o que se passa? Fala homem que me estás a deixar preocupado.

- Dá-me algum tempo.

Entretanto entregou-lhe as cartas. Lourenço leu-as, e olhou para Jaime, sem perceber o que se passava.

- Samuel é o meu tio avô. Cândida é a minha avó e o António o meu avô.

Lourenço abriu a boca numa exclamação "porra"!

- Então o teu verdadeiro avô é o teu tio?

- Não, o meu avô é quem sempre foi. Mas agora entendo porque é que ele me conhecia e ao meu pai, e me deixou tudo isto. Só não sei se o meu pai alguma vez soube da verdade

- Mas não leste tudo.

- Calma. É muita coisa para assimilar e digerir.

- Eu vou-te lendo!

"Caro Samuel

Escrevo-te ao fim de tanto tempo, porque acho, de alguma forma, teres o direito saber que o bebé nasceu a 24 de dezembro. É um rapaz. Forte e saudável.

Espero que estejas bem e que sejas feliz.

Com carinho

Cândida

6-02-1941"

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