Caio caiu na neve

Conto em quatro partes. Total: 2998 palavras.


Caio rolou montanha abaixo aterrorizado. Quando terminou seu trajeto desajeitado ficou zonzo por alguns instantes. A textura e o frio da neve contra seu rosto era uma experiência totalmente nova. Olhou para os lados. Estava tudo branco e gelado. Como é que alguém poderia estar na Bahia e logo em seguida no sopé de um barranco coberto de neve? Onde estaria? Sua última memória era de ter comido uma feijoada e depois entrar naquele guarda-roupa antigo, no quartinho dos fundos da casa de seu avô... Ou será que isso não passava de um sonho bizarro?

Caio apertou os dedos contra os braços nus, cor de chocolate. Sentia-se totalmente deslocado naquele lugar frio e infernal. Tinha perdido o par de chinelos, não que fossem ajudar muito na neve. Cada passo ali era doido.

Caio começou a bater os dentes e um vento gélido passou quase arrancando sua alma.

— Ó pá isso? Meus pés 'tão ficando roxos. Vô virar um presunto!

— Para mim, essa tonalidade parece mais púrpura com um quê de sépia. — veio uma voz sibilante atrás dele.

Caio bateu os olhos na coisa e saltou girando loucamente como um gato que vê um pepino surpresa surgir ao seu lado. Caiu rolando e esticando as pernas magras para ficar de pé. Parecia um feijão mexicano saltitando no terreno inóspito.

— Ai, Jesus Cristo! Uma cobra falou comigo!

A serpente riu — por todos os reis e rainhas da Gupolândia! Eu nunca vi um humano se mover assim.

— Falou de novo? Ó pá isso! Tô louco! Acorda, Caio, acorda! — tremendo, o rapaz se beliscou forte com as unhas. Conseguiu ficar de pé e se afastou devagar da imensa serpente de escamas azuis e pintinhas brancas, aqui e ali.

"Acorda, acorda, acorda..." repetia em sua mente. Os olhos esbugalhados travados na imensa serpente que se erguia do solo desafiando a gravidade e desdobrando as laterais de seu pescoço como uma cobra rei.

— Calma aí, rapaz. É melhor você vir comigo, se não quiser morrer congelado...

— Você vai me comer?

— Eu não como gente quando posso evitar... É muito indigesto.

— Que lugar é esse?

— Estamos nas terras da Baronesa Jeans.

— Jeans? Tipo calça jeans?

— Não faço ideia do que está dizendo rapaz. O frio deve ter congelado seus miolos.

— Deve ser... — Caio murmurou exalando um suspiro em forma de névoa . Um pouco de ranho que escorreu do nariz tinha congelado sobre o seu bigode ralo. Exausto, lamentou — eu não sinto meus pés...

— Venha aqui perto — a serpente fixou seus olhos vermelhos nele e mostrou suas presas ameaçadoras. Cada qual do tamanho de um lápis. Sua cauda balançou produzindo um som de chocalho com o de uma cascavél.

Caio não conseguiu resistir e se aproximou. A ponta da cauda chegou perto de sua mão.

— Coloque isto — a pontinha da cauda formava um gancho que segurava um anel prateado cravejado de safiras.

O anel pesava como uma bolota de chumbo. Caio colocou o anel em seu indicador esquerdo e sentiu seu corpo todo vibrar com uma energia indescritível. Olhou para seu corpo, incrédulo, e viu meias grossas de lã e escandalosamente coloridas envolvendo pés e as canelas. Mal as meias se fixaram sobre sua pele, um par de botas robustas envolveu seus pés. Calças de azul turquesa, blusa branca. Depois disso, uma casaco de pele da grossura do sétimo livro da série Harry Potter. Máscara, tapa orelhas e, como toque final, um gorro azul pesado cuja ponta ficou pendendo para o lado direito. Ele sentiu seu corpo afundando lentamente na neve. Aquelas roupas deviam pesar uns trinta quilos!

Caio ficou olhando para si mesmo, intrigado. Poderia aquilo ser... mágica?

— Vai ficar aí parado com essa cara de palerma? Não vai nem me agradecer por salvar sua vida?

— É... obrigado, dona serpente.

— Dona serpente? Nada contra as damas, mas meu nome é Laos, feiticeiro rastejante a serviço do própria rainha da Gupolândia!

— Certo, desculpe, Sr. Laos, eu... Me chamo Caio. Caio Antunes.

— Caio-caio-antunes? Que nome peculiar...

— É só um Caio!

— Só-um-caio-caio-antunes? Ah, não é um nome que se escuta, assim, todos os dias. Posso te chamar de Só? É mais fácil.

— Só Caio.

— Tá bom, Só-caio já é melhor. Sabe, Só-caio, bem que meu encontro contigo pode vir a calhar. Um estrangeiro, esquisito como você, pode bem ser o que estou precisando para resolver o impasse com a Baronesa.

Caio balançou a cabeça, resignado. Afinal, estava num lugar cheio de neve e conversando com uma cobra azul gigante mágica. Que mal teria ser chamado de Só-caio?

— Desculpe perguntar, mas a Baronesa é humana?

— Não precisa se desculpar para fazer perguntas, Só-caio. Ela é meio-humana.

— Certo. E o outro meio?

— Ora? Naturalmente, meio serpente. Afinal, foi por isso que a rainha me mandou. Eu deveria ter despertado nela, ao menos, meia-simpatia... Mas acho que não foi bem o caso. Sabe eu não sou de Gupolândia, vim do Ninho Azul... Acho que talvez ela tivesse gostado de mim seu eu fosse do Ninho Amarelo.

Caio deu com os ombros — Tá...

— E você, Só-caio, vem de onde?

— Vitória da Conquista.

— Nunca ouvi falar, mas é um nome intrigante! Soa como um tremendo pleonasmo.

— Hã?

— Vamos, Só-caio, é melhor descermos de volta ao vale. Eu subi aqui, justamente para esfriar a cabeça... Mas pensando melhor, acho que foi minha intuição trabalhando novamente. É... o que são poderes mágicos comparados a uma boa intuição?

— Eu acho que eu iria preferir poderes mágicos, Sr. Laos!

— Pois é, Só-caio, veja como sou um sujeito de sorte! Eu tenho ambos!

— Que bom! Será que poderia me ajudar a encontrar o caminho de volta para minha cidade?

— Como faria isso? Se eu nunca nem ouvi falar dela?

— Mas o senhor é feiticeiro, né? Será que não dá para fazer um pirlimpimpim?

— Isso é o que? A palavra que vocês usam para mapa?

— Não, não... Um feitiço, é o que eu quis dizer.

— Vamos combinar o seguinte. Se me ajudar a fazer a Baronesa endossar a carta de crédito, eu resolvo seu problema.

— Endossar a carta de crédito? E como eu faria uma coisa dessas?

— Não faço a mínima ideia! Mas eu confio em Arioque.

— Arió-quem?

— Vai dizer que nunca ouviu falar em Arioque? Senhor dos sete ninhos de escuridão? O Cavaleiro das Sete Lâminas? Senhor do Inferno Astral, et cetera?

— Não, mas lembrei do Belzebu.

— Ah, sim, grande Belzebu! Eu sou devoto do Caos, Só-caio, desde que quebrei a casca do meu ovo. Nosso encontro é certamente uma preciosa obra do Caos.

— Acho que a sua rainha devia ter mandado um contador ou um advogado no seu lugar? Nunca vi em nenhuma história mandarem um feiticeiro para endossar uma carta de crédito. Esse lugar aqui não faz nenhum sentido.

— Acho que ela mandaria um advogado, se ainda restasse algum aqui na terra. O problema todo é que a Rainha Chiombarga levou todos eles para seus domínios desde a terceira guerra dos imolados.

— Ah é... como é que fui me esquecer disso, né? A Rainha Chiombarga, é claro!

— Sim, meu caro, Só-caio, na medida que seus miolos descongelarem as coisas vão voltar a fazer pleno sentido!

Caio resmungou para si mesmo "duvido muito!"

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