Capítulo Único

Um ano depois

Não era a primeira vez que Richard Smith colocava os pés naquele elevador, entretanto era a primeira vez que não se impressionava com o gigantesco vidro que ia do teto ao chão - formando um semicírculo que permitia uma visão panorâmica da cidade de Manchester. A vista dali enquanto toda a engenhoca subia os 30 andares era simplesmente de tirar o fôlego, porém, naquele fim de tarde em especial, o jovem entrou, virou de costas para tudo aquilo e cruzou os braços sobre o peito, deixando a mochila pesada pendurada em apenas um dos ombros.

O mundo parecia mais feliz naquele dia, irradiando amor, balões em forma de coração e muitas caixas de chocolate - até mesmo o porteiro do prédio, que sempre o olhara com repulsa e desconfiança, sorrira para Richard, como se o fato de ele ser um jovem negro, filho de imigrante e pobre tivesse sido esquecido por alguns instantes naquela data festiva. Maldito dia dos namorados! Todos pareciam mais felizes nele!

Carrancudo, apertou o botão que mostrava o número 28 e suspirou quando o elevador desceu ao invés de subir, indicando que alguém o chamara nos estacionamentos do subsolo. Fechou os olhos momentaneamente, tentando evitar pensar no aniversário de um ano de seu coração partido, porém, como acontecera o dia inteiro, não conseguiu. De um dia dos namorados para o outro, e ainda sentia como um punho de ferro espremesse seu coração, deformando-o até ser incapaz de retornar ao formato normal. Com seus poucos 17 anos de idade, deveria ser mais fácil superar o primeiro amor, mas o punho só apertava e sufocava.

Abriu os olhos quando sentiu o elevador parar no escuro do subsolo, porém sua atenção estava muito desfocada para notar a garota de vestido rosa que acabara de entrar.

Foi o perfume de rosas vindo dela, no entanto, que o fez prestar atenção. O coração do jovem rapaz imediatamente disparou enquanto seus olhos percorriam a imagem impossivelmente familiar dela: o cabelo escuro cortado na altura dos ombros, a franja, as feições coreanas, o vestido rosa e leve até a altura do joelho, as sandálias delicadas de salto - que, ainda assim, não escondiam a baixa estatura da jovem.

Definitivamente o malandro deus-cupido grego, Eros, estava pregando peças com Richard. De todas as pessoas daquela cidade, de todos os dias possíveis, de todos os prédios de luxo, Jennie Kim tinha que estar justamente ali, no mesmo elevador que o seu. Ela se mantinha na diagonal do jovem, o rosto virado para a paisagem do lado de fora, mas ele sabia que ela o tinha notado, já que sua expressão era séria e suas unhas pintadas arranhavam a bolsa Gucci.

Estavam sozinhos e o coração de Richard batia tão rápido que ouvia o bum bum bum em suas orelhas, a respiração acelerando para acompanhar o ritmo. Virou-se para o vidro: o sol se punha em Manchester, inundando a cidade com uma fina camada de laranja que mais parecia fogo consumindo o mundo, e implorou que o elevador chegasse logo no andar que pretendia. Sentia-se como a cidade, em chamas, e, no caso, seu sol poente era uma garota a dois passos de si.

- Você continua dando aulas particulares? - A voz dela inundou o espaço, chocando-o. Ela não havia mexido mais que os lábios, permitindo a saída do sussurro rouco.

- A-Ainda preciso do dinheiro. - Engoliu em seco. Por que gaguejou? Por que, na verdade, se dera ao trabalho de responder?

Suspirou e seu reflexo no vidro o imitou. A pele negra parecia mais pálida que o normal e seus olhos demonstravam um claro desespero por ainda estar ali. A dor emocional também era física: a pressão em seu coração só aumentou e as pontadas o fizeram respirar profundamente.

- S-Sua mãe conseguiu a c-cidadania? - Outro sussurro de Jennie.

Richard queria segurar o pequeno Eros pelas asas e sacudi-lo até que respondesse: por quê? Por que a voz dela estava quebrada? Por que ela estava se ao trabalho de falar depois de um ano de silêncio? Por que ele queria correr até ela e segurá-la nos braços? Por quê? Por que havia quebrado se coração daquela forma tão dura?

- Não. - Fingiu estar arrumando a gravata azul de seu uniforme escolar, o qual passara o dia usando, para distrair a mente.

- Está difícil atualmente. - Ela respondeu.

- Especialmente quando sua família não é rica. - No momento em que as palavras deixaram sua boca, ele se arrependeu. A frase, dita tão rudemente, tinha feito Jennie se mexer, virando o rosto ligeiramente em sua direção.

Os Kim eram uma tradicional família da Coreia do Sul, donos de uma enorme empresa de tecnologia que, durante a década de 1990, havia começado sua expansão pela Europa. Poucos anos depois, os pais de Jennie se mudaram para a Inglaterra, conseguiram a nacionalidade do país com relativa facilidade e tiveram uma linda bebê. A jovem, nascida em solo inglês, tinha a nacionalidade de ambas as nações e crescera fluente em inglês, coreano e japonês - o alemão se inserira na lista com alguns anos de curso de línguas.

E, mesmo que Richard e Jennie compartilhassem de descendências não-inglesas, ela nunca fora taxada como "intrusa" no país europeu. Ele, filho de mãe angolana - que entrara ilegalmente no país 20 anos antes - e pai escocês, no entanto, sempre era observado com desconfiança. A pele negra parecia sinônimo de "imigrante", mesmo que não o fosse, e, após o início da intensa massa migratória vinda do norte da África para a Europa, o preconceito havia aumentado.

- Perdão. - Richard sussurrou depois de alguns instantes de silêncio. - Não quis ser rude.

- Não foi. - Ela olhou para os próprios pés, arranhou as unhas na bolsa Gucci e Richard teve a impressão que ela queria dizer algo, mas não tinha coragem.

- O que veio fazer aqui? - Resmungou o jovem, tentando impedir que o silêncio se instalasse novamente. Ele era sufocante e permitia que as memórias retornassem com intensidade.

- Vim jantar com Dylan. Hoje é uma data especial para nós. - Voz quebrada, sussurro quebrado.

- Um ano de namoro, não é? - Resmungou o jovem, franzindo o rosto.

- Sim. Um ano. - Ela concordou.

No painel do elevador, o número 22 passava. O jovem suspirou e correu os olhos pela paisagem da cidade, notando como o sol havia desaparecido por inteiro e a noite realmente ganhava forma. Faltava tão pouco para chegar ao andar de Antony Louis, seu colega de classe que pedira ajuda com a matéria de biologia. Daria uma hora de aula, embolsaria 50 Libras e então fugiria para seu grosso edredom, onde ficaria escondido até esquecer aquele interminável dia.

Um ano havia se passado. Um ano que ela namorava Dylan. Um ano que Richard descobrira ter sido brutalmente enganado. O elevador sufocava, tinha que sair dali.

Entretanto, o mundo jamais estaria a seu favor. Quando suspirou de alívio por estar faltando apenas dois andar para o seu, o mundo escureceu e tudo parou. Olhou pelo vidro e pôde ver todas as luzes do bairro ao redor do edifício apagarem, gerando um ponto de pura escuridão no visual intensamente iluminado de Manchester. O elevador parou na mais pura noite, sem mais qualquer luz para iluminar algo tão alto.

- Rich! - A voz aterrorizada de Jennie chegou ao seus ouvidos e então ele sentiu ela segurar com força seu braço.

Seu corpo reagiu sozinho, moldado por um hábito antigo e inconsciente: puxou-a contra seu peito e a abraçou, permitindo que ela afundasse o rosto em sua camisa branca e fechasse os olhos. O escuro fazia com que Jennie entrasse em pânico, por isso imediatamente puxou o celular do bolso e acendeu a lanterna, voltando-a para o chão.

- Está tudo bem. Respire, eu estou aqui. - Disse baixinho, traçando seus fios curtos de cabelo ao mesmo tempo que apoiava o queixo sobre sua cabeça.

Foi somente após longos minutos que finalmente entendeu o que fazia. A preocupação com ela havia permitido que ele agisse inconscientemente, trazendo-a para perto de si da mesma forma que havia feito no passado, quando os dois estudavam na biblioteca e toda a luz apagara de uma vez só. Encorajada pelo terror, Jennie se jogara em seus braços e ele a segurara firmemente até que o gerador do lugar entrasse em funcionamento. Tinha sido a primeira vez que tiveram contato físico daquela forma, o que acabara por abrir espaço para outros abraços e carinhos. Mesmo que nunca tivessem chegado a um beijo, os dois possuíam uma intimidade que, na época, Richard acreditara ser sincera por ambas as partes.

Mas não. Apenas ele caíra nas armadilhas do amor. Apenas ele sentira seu coração convulsionando quando Jennie segurara sua mão enquanto passeavam na rua e tomavam sorvete. Os pequenos detalhes fizeram com que ele imaginasse que ela correspondia seus sentimentos, quando, na verdade, apenas precisava dele temporariamente.

As luzes do edifício retornaram e o ar condicionado do elevador voltou a arejar levemente o ambiente. De imediato, ele soltou-se dela e deu um passo para trás, virando o rosto para o vidro. A lanterna dançou pelo chão antes que ele a desligasse.

Jennie abriu os lábios para dizer algo, mas o telefone de emergências do elevador soou antes que pronunciasse um som. Com um suspiro, ela soltou o telefone da parede e atendeu:

- Alô? - Ouviu por alguns momentos. - Quanto tempo o senhor acha que vai demorar? - Mais silêncio e Richard observou quando franziu os lábios. - Nós aguardaremos.

Ela pousou o telefone novamente na parede e então varreu o olhar pelo elevador, focando em qualquer coisa menos em Richard:

- Pediram que aguardássemos. A queda de energia acabou causando um problema no sistema dos elevadores. - Prendeu o cabelo curto atrás da orelha. - Disseram que não passaria de uma hora.

Em uma hora, Richard estaria morto. Fechou as mãos em punho e grunhiu, desesperado. Uma hora com Jennie Kim ao seu lado, tão perto, porém tão impossivelmente longe, era a pior tortura do mundo. No entanto, quando viu ela abrir a Gucci, tirar o celular da bolsa e ligá-lo apenas para que desligasse imediatamente depois devido à bateria fraca, soube que parte de si estava gostando daquela tortura. Parte de si queria apenas estar perto dela mais um pouco. Revirou os olhos para si mesmo, tirou o celular do bolso e estendeu para ela:

- Pode ligar para ele do meu. - As sobrancelhas dela, cuidadosamente desenhadas, estavam franzidas em dúvida e surpresa. Hesitou por infinitos segundos antes de pegar o celular para si e Richard suspirou ao continuar: - A senha é...

No entanto, ele não precisou terminar. Ela já havia digitado a senha e desbloqueado o celular dele antes que tivesse tempo de piscar os olhos. Além de idiota, Richard também nunca tinha trocado a sequência 1205 que desbloqueava o aparelho, uma senha que ela descobrira na primeira semana que se encontravam, como a pequena curiosa que era. Lembrava-se dela provocando-o, correndo pela biblioteca com o celular dele enquanto ele tentava caçá-la sem fazer barulho. E então, finalmente, ela parou e os dois gargalharam escondidos entre as prateleiras de livros - naquela tarde, foram expulsos da biblioteca.

Richard odiava que essas memórias aquecessem seu coração. Seus olhos foram involuntariamente para Jennie, vendo quando ela digitava um número, apagava-o, digitava outro e então deletava novamente. Se já era surpreendente que ela lembrasse a senha de seu celular depois de um ano, mais ainda era descobrir que, depois desse tempo, não soubesse o número do namorado.

Jennie bufou e devolveu o celular para Richard sem ter telefonado.

- Minha memória é ruim. - Ela tentou justificar.

"Não, não é." Ele quis dizer, mas, ao invés, apenas saiu:

- Hum.

O silêncio voltou entre os dois depois disso. O tempo parecia se alongar infinitamente, pois ele olhava o relógio a cada meia hora para constatar que, na verdade, apenas dois minutos haviam se passado. Deixou a mochila pesada no chão, olhou pelo vidro, resolveu mentalmente uma questão de matemática, mandou uma mensagem para Antony, cancelando a aula. Olhou o relógio. Cinco minutos se passaram.

Jennie respirava ao seu lado, o seu perfume de rosas envolvendo-o. Um ano antes, aquele silêncio jamais teria durado mais que 10 segundos, já que ela estaria rindo, tirando-o do sério por alguma razão qualquer; estariam conversando sobre a vida, sobre os pássaros, sobre chocolate e sobre filmes franceses; ele bagunçaria o cabelo dela e ela tentaria fazer o mesmo - pularia ao redor dele, baixinha demais para conseguir. Naquele momento, entretanto, apenas a respiração deles quebrava o silêncio.

Ela bufou depois de mais um tempo e então abaixou-se, soltando as amarras da sandália de salto que usava e tirando-as dos pés. Sem os centímetros extras, ela voltava a ter a mesma altura familiar que Richard lembrava, o que a tornava impossivelmente adorável.

- Isso é bom. - Ela sussurrou, mexendo os pés descalços no chão. Em alguns pontos seus pés estavam vermelhos, machucados.

- Você odeia saltos, disse que só causam dor. - A curiosidade o fez falar. - Por que está usando?

- É preciso. - Ela abriu um sorriso triste e baixou os olhos para os pés. - Dylan é muito alto.

Richard revirou os olhos, querendo estrangular o pequeno deus Eros e, em seguida, estrangular a si mesmo por perguntar o que não devia. Seu coração sangrava ao imaginar Jennie perto do namorado, alta o suficiente para sorrir para ele e então beijá-lo.

A cidade de Manchester era milhares de pontos luminosos que se estendiam ao infinito do olhar: parecia que o céu estava espelhado no chão, formando uma linda visão. Foi nela que Richard focou o olhar, respirando pesadamente para esquecer outros pensamentos que doíam horrivelmente. O silêncio se manteve até que Jennie sobrar ar quente sobre o vidro do elevador, embaçando-o.

Com a ponta do dedo, ela desenhou um "#" sobre a pequena parte do vidro que embaçou. No quadrado superior direito, desenhou um minúsculo X e então virou o rosto hesitante e cheio de expectativa para Richard. Ele conhecia muito bem aquele olhar, já que era o mesmo que ela usara para seduzi-lo e usá-lo para o que necessitava na época. Por alguns instantes, hesitou, entretanto, como sempre, o olhar de Jennie o fez ceder: desenhou uma pequena bolinha no espaço inferior esquerdo.

Ela respondeu marcando um X no quadrado do meio. E então, aos poucos, o mundo exterior começou a desaparecer, tornando-se nebuloso enquanto os dois continuavam a jogar, desenhando sobre o vidro. O silêncio se manteve por certo tempo, porém, logo ele foi quebrado quando Richard confundiu a bolinha pelo X e, ironicamente, completou uma linha de X que fez Jennie ganhar. Chocado pela sua distração, riu de si mesmo e ela o provocou, dizendo que o último inverno de Manchester havia congelado seus neurônios eternamente.

Assim, a cada nova partida, soltavam-se mais um pouco e, depois de muitas, parecia que o tempo não havia passado, que ainda estavam um ano antes: no décimo jogo, estavam lado a lado, os corpos se esbarrando; no vigésimo estavam colados um no outro, o braço dele passando sobre o ombro dela toda vez que tinha que marcar um quadradinho no vidro, quase abraçando-a por trás.

E então, repentinamente, uma coruja passou voando perto do elevador. O susto de Richard com o surgimento repentino da ave fez Jennie ter uma crise de risos intensa. Sem conseguir respirar e com lágrimas nos olhos, ela estava tão vermelha que ele não resistiu e gargalhou junto. Entre a misteriosa coruja e o riso, todo o constrangimento desapareceu e o assunto entre eles passou a flutuar entre tópicos que conheciam e amavam: os animais, os livros de Percy Jackson e os Olimpianos, os novos doramas coreanos e a política internacional.

As imposições econômicas dos Estados Unidos contra a China se tornaram o tópico principal por longos momentos, os dois jovens debatendo quais as consequências daquilo para o mundo. Em seguida, Richard imitou a Primeira Ministra britânica em um de seus discursos em defesa do Brexit o que fez, em resposta, Jennie resmungar o quanto aquela proposta era insensata depois de tantos anos integrando a União Europeia. A economia do país estava em jogo e, junto com ela, os investimentos da família Kim em toda a Europa.

Os minutos, que antes se arrastavam por horas, tinham ganhado a capacidade de passarem mais rápido que o normal. Hipnotizado pela voz dela, por toda a cumplicidade e habitualidade das discussões, pelo riso, o coração de Richard inchou de amor, levando embora as memórias ruins. Minúsculas partes de si ainda gritavam que o que estava fazendo era perigoso, que não deveria se deixar levar daquela forma, que ficaria destruído quando saíssem daquele elevador e tudo voltasse ao normal, no entanto, calou todas essas vozes. Sentia-se confortável e livre depois de tanto tempo e só queria aproveitar cada instante daqueles sentimentos. Choraria depois, quebraria depois - ali, com ela, estava completo.

- Você não pode comparar as trilhas sonoras de Titanic e Dunkirk. - Richard resmungou, quando o assunto mudara mais uma vez. - São temáticas diferentes e compositores diferentes.

- Eu sei disso, mas as duas causam tensão e angústia em muitos momentos. - Ela abraçava o próprio corpo enquanto falava, esfregando as mãos nos braços descobertos. - E em ambos os filmes as cenas de destruição são muito bem acompanhadas pela música de fundo.

- Ainda assim, acho as duas muito diferentes. - Era um hábito notar o que ela fazia, do que ela precisava e, inconscientemente, se abaixou e, ainda falando, abriu sua mochila e tirou uma jaqueta. - É impossível estudar ouvindo a trilha sonora de Titanic. Já tentou ler enquanto chora?

Os dois riram ao mesmo tempo que Richard conseguiu soltar o fecho travado de sua velha jaqueta. Então, ele ficou frente a frente com Jennie, seus corpos separados por apenas uma fina camada de ar, e girou a jaqueta até poder pousá-la sobre os ombros dela.

- Passe o braço pela manga. - Sussurrou, concentrado em vesti-la para que não sentisse mais frio. - O outro agora.

Foi somente quando ela estava usando sua jaqueta - a qual ficava grande a ponto de que as mangas sobrassem em excesso e o cumprimento escondesse quase o vestido rosa por inteiro - que Richard notou o quanto estavam próximos. Ela tinha o olhar intenso, carregado de sentimentos, e parecia transmitir tanto carinho que ele se arrepiou. Toda a atenção de Jennie estava voltada para ele e apenas para ele, seu rosto contemplativo causando o descompasso no coração do jovem.

- Rich. - O sussurro foi quase inaudível e a voz rouca dela fez Richard tremer. - Eu senti sua falta.

Foi como receber um soco no queixo: ele imediatamente se afastou dela, seu coração se fechando de novo. Quais eram as intenções dela em dizer aquilo, de enganá-lo mais uma vez? Um ano antes, ela precisara dele, mas e naquele momento? Era divertido brincar com o coração do garoto mais pobre da escola? Jennie parecia um anjo, era possível que fosse tão perversa?

Richard se lembrava muito bem de quando se falaram pela primeira vez. Em um intervalo, ela se aproximara enquanto ele lia e então fez dois pedidos: que ele a ajudasse com a matéria de física e que a ensinasse um pouco de português, língua que ele sabia devido à mãe. Dois meses depois daquilo, ela participaria de uma competição internacional de física em Portugal, uma para a qual Richard fora convidado a participar, mas que jamais teria dinheiro suficientes para ir. Ela sorriu feliz quando ele aceitou ajudá-la pelos dois meses que se seguiriam.

Não era como se Richard nunca tivesse admirado Jennie: ela era, sem dúvida, uma das meninas mais bonitas que já tinha visto, exótica com seus traços asiáticos. No entanto, foi somente quando se aproximaram que ele perdeu o coração. Todos os dias de tarde se encontravam na saída da escola e iam para a biblioteca, onde ficavam até a noite cair. Já na primeira semana a conexão dos dois era incrível: entre os momentos sérios de estudos, riam com as tentativas falhas dela de falar português e conversavam sobre suas vidas. Antes do fim do primeiro mês estudando juntos, trocar mensagens até tarde e sair durante os horários livres e nos finais de semana havia se tornado um hábito para os dois.

Ela conhecera os pais de Richard quando visitara a casa dele. O ambiente modesto, o jantar simples e as conversas em família não haviam assustado Jennie, que permanecera radiante de felicidade todo o tempo. Naquela noite, ela inventou uma desculpa para os pais e dormiu na casa de Richard - o fato de ser uma sexta-feira permitiu que passassem a madrugada acordados na sala, assistindo filmes de terror e comendo. Eventualmente, ela adormecera e Richard a carregou para seu quarto, voltando logo depois para a sala, onde se apertou para cochilar algumas horas no sofá.

Ele tinha se apaixonado. E então a paixão se transformou em amor. Quando o inverno chegou e eles decidiram tomar sorvetes em uma praça, Jennie que tinha entrelaçado seus dedos nos dele. Quando eles se encontravam, ela o abraçava e, na hora de ir embora, deixava um beijo sobre sua bochecha. Quando o pequeno cachorro de Jennie precisou ser sacrificado, tinha sido no colo de Richard que ela chorara por horas seguidas. Como ele poderia imaginar que ela não sentia o mesmo por ele?

Mas então, os dois meses se passaram. A competição chegou e Jennie passaria uma semana em Portugal por causa dela. Na noite anterior à viagem, os dois foram ao cinema e, pela primeira vez, ele a levou para casa em sua bicicleta. Aquele era o momento do qual Richard mais se arrependia, quando ela o olhou com carinho, parada diante do portão da mansão que chamava de casa, e ele não teve a coragem de dizer o que sentia, de se arriscar e roubar dela um beijo. Ao invés disso, ela sorriu, beijou-o na bochecha e entrou em casa.

Por coincidência, o dia em que ela voltaria de viagem era pouco antes do dia dos namorados, então Richard planejou tomar coragem e se declarar nesse dia. Durante a semana que ela passara fora, muitas vezes tentou falar com Jennie, mas se surpreendeu ao perceber que tinha sido bloqueado em todas as redes sociais e também estava impedido de ligar, entretanto, como o bobo apaixonado que era, acho que, para se concentrar na competição, ela havia se desligado do mundo. Poderia dizer tudo o que sentia quando ela voltasse.

Porém, quando Jennie finalmente voltou, ela o ignorou por completo. Na escola, passou ao seu lado como se não soubesse quem era, nas redes sociais ele continuava bloqueado. Há exatos um ano, no fatídico dia dos namorados, Dylan tinha se ajoelhado no meio da escola com flores e pedido Jennie em namoro. Ela aceitara e o coração de Richard se partira.

Todas as memórias voltaram brutalmente quando ela disse que sentia falta dele, fazendo a raiva e a tristeza se expandirem insuportavelmente. Por isso, não se arrependeu quando sua voz saiu grossa e rude:

- Você é muito hipócrita dizendo isso. - A expressão dela também se transformou, o rosto adquirindo traços duros e tristes. - Precisa de mim para o quê agora? Quer aulinhas de qual matéria?

- Por favor, não vamos falar disso agora. - Ela resmungou, fechando os olhos.

Richard riu maleficamente.

- E em que outro momento seria? Você tem a audácia de dizer que sente minha falta depois do que fez? Me usou e simplesmente sumiu da minha vida sem uma palavra de explicação! - Ele fechou as mãos em punhos fortemente. - Sequer pensou em mim por um único segundo?

- Você não sabe o que aconteceu, não tudo. - Ela apontou o dedo para ele. - Não sou um monstro sem coração como está dizendo.

- Tem certeza disso? - Ele cruzou os braços sobre o peito, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam se formar. - Você fez questão de fingir que eu não existia, que nada tinha acontecido! Você me usou e me jogou fora como um lixo!

- Eu nunca usei você! Fui sincera cada segundo que passamos juntos!

- Mentirosa! - Richard sentiu quando uma lágrima escapuliu e secou-a de imediato. - Você sabia que eu estava sendo sincero e só fingiu. E-Eu... Eu estava apaixonado por v-você... Você não tinha c-como não saber disso, Jennie. E-Eu amava você...

Ele viu quando o queixo dela tremeu e ela começou a chorar, suas grandes bochechas vermelhas como um tomate. Richard também chorava, extrapolando sua dor para fora, quando ela perdeu totalmente a compostura e berrou:

- EU SABIA! CLARO QUE SABIA! EU AMEI VOCÊ TAMBÉM, RICHARD! EU AMEI E ACHO QUE AINDA AMO!

No instante em que disse isso, cobriu o rosto com as mãos e chorou compulsivamente. Richard, por outro lado, estava chocado demais para reagir, seu cérebro em curto-circuito com o que tinha acabado de ouvir. Trêmulo e com o choro travando a voz, sussurrou:

- O q-quê? E... E Dylan?

- Você não sabe de tudo. Não sabe. - Ela ergueu o rosto. Estava tão triste que o coração de Richard se partiu de novo. - Meu namoro com Dylan é uma farsa. Sempre foi, desde o primeiro dia. Somos bons amigos que fingem namorar.

- E-Eu não entendo.

- Nossas famílias são ricas, Rich. Elas têm negócios juntos e nosso namoro solidifica essas relações. Sumir da sua vida era a única solução.

- Solução para o quê? - Ela negou com a cabeça e Richard gritou, desesperado: - Por tudo que é mais sagrado, me diz a verdade! Por que você sumiu? Por que me deixou, Jennie? Por quê? Por que fez iss...

- PORQUE VOCÊ PERDERIA SUA BOLSA DE ESTUDOS! - Ela gritou, cortando-o. Respirou fundo e continuou: - Naquele dia que você me deixou em casa, minha mãe te viu e me avisou que alguém como você não podia ser meu amigo. Quando tentei argumentar, ela ameaçou te fazer perdeu a bolsa de estudos na nossa escola. E você sabe, sabe que ela teria o poder para isso.

A cabeça do jovem rodou e ele achou que poderia desmaiar. Jennie continuava olhando-o, as lágrimas cobrindo cada vez mais suas bochechas e ele, bem, ele tinha perdido a capacidade de pensar. De todas as vezes que pensou naquilo, que se perguntou o porquê de ela ter feito o que fez, tantas vezes teorizou que sua mente apaixonada havia criado uma fantasia, jamais poderia imaginar a verdade por trás das ações de Jennie.

Foi nesse momento que o elevador voltou à vida, começando a descer lentamente em direção ao térreo. O som dos mecanismos se mesclou às fungadas que ambos emitiam, ainda parados nas mesmas posições, cada um perdido em seu próprio choro. Foi quase impossível, mas Richard formou algumas palavras sussurradas:

- Por que não me falou?

- Você teria conseguido se afastar de mim se eu tivesse dito? - Os olhos dela brilhavam tanto. - Porque eu não teria. Não conseguiria. E era seu futuro em jogo.

O elevador passava pelo andar 18 quando Richard fechou os olhos. Jennie estava quebrada diante de si, mas não sabia o que fazer. Em minutos estariam fora daquele elevador e a vida teria que voltar ao normal. Será que voltaria? Como ele conseguiria voltar à escola e não pensar no que Jennie havia feito para salvá-lo, permitindo que continuasse em uma das melhores escolas do país sem pagar uma Libra por ela. Era uma terrível balança: de um lado seu futuro acadêmico e profissional, do outro a pessoa que amava. Seu coração nunca esteve tão apertado.

Abriu os olhos.

- Jenn...

Não teve tempo de completar a palavra. Ela o puxou pela gravata e então, no instante seguinte, suas bocas estavam coladas. Inicialmente, foi apenas isso, um encostar de lábios úmido pelo choro, porém o mundo explodiu em fogos de artifício e o beijo se aprofundou. Ele a puxou mais para perto e intensificou o beijo, segurando seu rosto entre as mãos e perdendo-se no perfume de rosas que ela emanava.

Jennie enterrou as mãos no cabelo de Richard e saltou para o colo dele, sendo prontamente recepcionada. Ele a segurou pelas coxas e a encostou contra a parede do elevador enquanto ela apertava suas pernas ao redor dele. O beijo se tornou desesperado, os lábios e as línguas batalhando por mais espaço, por mais tempo unidos. Era um momento de entrega, de dizer sem palavras tudo o que não tinham dito. Toda a dor que ambos haviam passado, a saudade dos momentos juntos, as palavras de eu te amo que nunca tinham sido ditas: o beijo calava todas elas.

Os andares passavam, o térreo cada vez mais próximos. Tinham um minuto juntos, talvez até menos, mas isso só fez com que tudo fosse ainda mais intenso e brilhante. Por alguns instantes, não eram mais Richard e Jennie, mas sim um corpo só, um coração só. Desesperado, com as lágrimas ainda inundando e salgando o beijo, ele se afastou e encostou a testa na dela.

Agarrados, o olhar de um preso no outro, Jennie segurou o rosto de Richard entre as mãos e o cobriu de beijos. Secou as bochechas dele e sorriu ao mesmo tempo que chorava:

- Não ouse me esquecer. - Sussurrou.

6° andar. 5° andar.

- Nunca. - Era uma promessa. Ele a encarou, jurando aquelas palavras em seu coração. - Nunca.

3° andar. 2° andar.

Richard permitiu que Jennie descesse do seu colo, ajeitasse seu vestido bagunçado e pegasse sua sandália do chão. Ambos tinham as respirações descompensadas quando, nos últimos segundos que tinham juntos, ele pousou uma trilha de beijos sobre o rosto dela: um sobre a testa, um na ponta do nariz, o último nos lábios.

Térreo.

As portas do elevador se abriram e imediatamente Jennie fugiu por elas, passando pela pequena multidão que havia se formado no rol de entrada do edifício, provavelmente esperando que os elevadores voltassem a funcionar. Com o coração batendo rápido, a mente em branco e os olhos úmidos, Richard teve apenas um curto pensamento.

Ela não tinha devolvido sua jaqueta.

[4.984 palavras]








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