5
Os dedos que apertavam seus lábios eram quentes, fortes e um tanto ásperos pela falta de uso de pomadas calmantes. Amanda abriu os olhos ao senti-los, mas seus olhos só viram mais escuridão, como se não tivesse aberto os olhos.
Ela tentou se apoiar nos cotovelos, mas outra mão agarrou seu ombro, impedindo-a. Um chiado suave no ouvido a incitou a ficar quieta.
— Não faça barulho, é muito cedo.
A voz masculina a fez lembrar-se do que havia acontecido no dia anterior, indicando que sua vida já não era tão simples como antes da cerimônia. Seus sonhos tinham-lhe dado uma trégua, mas agora a realidade estava de volta junto com ascomplicações.
— O que acontece?
— Se vista, quero aproveitar que todo mundo na casa esta dormindo.
Amanda piscou várias vezes, acostumando-se à escuridão absoluta e começou a vislumbrar o rosto do rapaz. O rosto dele está junto ao dela, e por isso seu hálito quente acariciou sua pele ao falar.
— Mas... Aonde você quer ir? Que horas são?
— É cedo. Imagino que todos ainda estão dormindo. É por isso que você me deveria mostrar a casa agora.
Callum tinha razão. Ninguém se levantaria antes das nove da manhã no domingo; especialmente depois da sua festa de aniversário, no qual pelo menos seis garrafas de vinho foram esvaziadas.
Amanda se virou e enterrou o rosto no travesseiro. Ela ainda se sentia exausta com os acontecimentos do dia anterior. Apesar de terem-se recolhido ao dormitório cedo, com ele dormindo em sua mesma cama, ela não conseguiu dormir muito.
Agora ele queria que ela abandonasse os lenções confortáveis, sendo que o sol ainda não tinha saído.
— O que você está fazendo? ― Ele sussurrou, desta vez com um tom mais impaciente, que lhe chegou aoouvido sufocado pelo travesseiro. ―Vamos, Amanda, levante-se.
Sem nenhuma delicadeza, ele lhe agarrou pela cintura, forçando-a a se levantar. Amanda sufocou um grito. O quarto deles ficava no telhado e era impossível que alguém os ouvisse, mesmo àquela hora, quando a casa inteira estava dormindo. Mesmo assim, ela quis evitar que o som saísse da sua garganta.
No começo do século, um cavalheiro nunca teria tocado a uma dama de maneira tão inapropriada, mas a educação de Callum parecia ter sido ainda menor do que ela suspeitara no dia anterior. Tudoreferente ao relacionamento sentimental e físico entre mulheres e homens foi completamente omitido da educação dos servos.
— Fique sabendo que isso foi inapropriado― ela lhe censurou em quanto abria as portas gigantes do armário. Elas rangeram como uma velha reclamando e Callum voltou a chiar para que ela não fizesse barulho.
— Não se preocupe, não há mais quartos neste andar — ela lhe tranquilizou, em quanto escolhia no armário roupas confortáveis para vestir.
Na verdade, ninguém nunca sobe aqui.
Parecia que Callum acreditou nela, porque ousou andar pelo quarto para abrir uma fenda entre as pesadas cortinas marrões que imitavam o tronco de uma árvore.
Havia mais luz do que ele suspeitava. O alvorecer se instalara timidamente e já não era noite fechada. Essa era uma das poucas vantagens do verão inglês.
Amanda alisou o cabelo emaranhado pelo travesseiro. Agora que a luz iluminava todo o dormitório, ela ficou coibida, considerava que pelas manhãs ela não tinha a melhor aparência.
No entanto, a ele, o cabelo despenteado e os olhos inchados da sonolência lhe davam um toque meigo que o fazia parecer mais ainda um menino.
Ela foi até o biombo para se esconder enquanto se inclinava para segurar a bainha da camisa e puxá-la sobre a cabeça.
— O que há aí atrás?
A voz de Callum soou ao lado do biombo, fazendo com que Amanda pulasseabaixando a camisa novamente.
— Deveria ter privacidade― ela retrucou, e com uma advertência pediu que ele fosse embora.
Longe de obedecer, Callum cruzou os braços sobre o peito para observá-la carrancudo.
— Por quê? O que você está fazendo?
Ela teve que reconhecer a ironia da situação. Era o seu primeiro dia como adulta oficialmente e em vez de ter um servo a seu serviço, ela tinha um menino teimoso que lhe dava ordens, e se recusava a obedecer as suas.
— Eu estou-me preparando para trocar de roupa.
—Ninguém nunca se esconde para fazer isso. Amanda suspirou cansada.
— É porque você vivia com jovens sem cérebro. ― disse com malícia.
— Qual é a diferença? O que as mulheres escondem? ― a pergunta foi acompanhada por um olhar lento que deslizou pelo seu corpo, praticamente nua, já que a camisola fina de verão não escondia muito. Ela ficou vermelha até sua cor combinar com a cor do biombo — e de uma falta alarmante de músculo, quero dizer. — Você não me deve ver nua, nem me tocar como fez antes não éapropriado―lhe explicou. Porque nós somosde diferentes espécies.
Callum descansou seu antebraço no eixo do biombo, enquanto erguia uma sobrancelha.
— Acho isso uma estupidez ― ele afirmou, sinceramente não entendendo o mundo se escondia atrás de suas exigências ―, porém se é isso que você quer.
Ele caminhou de volta para a cama, deixando-lhe a intimidade que ela desejava.
— Vai ser melhor que você me empreste alguns livros para que eu possa entender como o mundo funciona, isto é, tudo que as cuidadoras não nos ensinaram.
Silenciosamente, Amanda disse a si mesma que preferia arrancar todos os cabelos loiros da cabeça antes que deixar que Callum descobrisse como certas coisas funcionavam.
―Por exemplo, este livro que você tem aqui ―continuou o jovem.
Ela ouviu o som inconfundível da gaveta do seu criado-mudo ao fecha-lo.
―O monge.
— Não― ela gritou, aparecendo de trás do biombo, para se apressar e recuperar o livro. Só de pensar que Callum fosse ler a obra de Lewis cujo personagem, o monge Ambrósio degenera para força e assassinar a Antônia, ela ficou arrepiada.
— Não, este não é o mais adequado― ela continuou mais serena, vendo que ele a observava com os olhos arregalados. ―Mais tarde, te deixo outro da biblioteca que o ajudará a entender melhor o nosso estilo de vida do que este.
Ela colocou o livro O Monge de volta no criado-mudo, desejando que a gaveta tivesse chave.
— Muito bem, dona inapropriada― ele zombou. ―Você está pronta?O que vamos fazer agora?
— Vamos descer para o primeiro andar― ela lhe disse. ―Você não deve fazer barulho quando a gente passar pelo segundo andar. De acordo? Eu quero te mostrar minha sala de trabalho. Eles cruzaram a casa em silêncio, até chegarem à sala onde Amanda trabalhava. Era um lugar quase todo feito de madeira, com exceção do sofá de tecido e das poltronas acolchoadas e cobertas com tecidos azuis. A sala formava um semicírculo em uma extremidade, a que estava coberta de cristais, permitindo a passagem de uma grande quantidade de luz do lado de fora. As paredes brancas contrastavam com o azul e a madeira do mobiliário, criando a ilusão de espaço e serenidade. Aquele quarto era um de seus lugares favoritos no mundo e onde passava muito tempo. Quando ela mostrou a Callum, não podia deixar de sentir um pouco exposta.
— É aqui que você faz os móveis? ― ele perguntou observando as diferentes ferramentas dispostas em toda a sala e peças de madeira conglomerada meio cortadas, sem terminar.
— Isso mesmo― lhe disse. Amanda reprimiu um sorriso pelo modo como ele o dissera, como se não pudesse acreditar.
Ela respirou profundamente. O cheiro familiar de serragem e verniz sempre a fazia se sentir bem; e aquela ocasião não foi diferente. Ele a observou com cara de curiosidade. Seu olhar deslizou pelos braços nus da garota.
— Você duvida da minha capacidade? ― Ela perguntou, depois de se esticar e se alongar para parecer mais alta.
Callum aproximou-se de uma pequena mesa de madeira e mármore e acariciou a pedra fria da superfície, e depois deslizou os dedos pela madeira escura ornamentada. Não contente com isso, ele descansou as duas mãos na superfície e, usando o peso de seu corpo enorme, sacudiu a mesa.
Amanda olhou-o sarcasticamente. O jovem se preparou para levantar a mesa com apenas um braço, mas esteve a ponto de cair de bruços encima da mesa pelo peso que tinha.
Ele sentou-se com o máximo de dignidade possível, afastando o cabelo dos olhos com um movimento de cabeça, e se virou para olha-la.
— Sem dúvida, esta peça não foi feita por você.
— Suposição errada― ela replicou com prazer. ―Eu a terminei há pouco tempo.
Callum olhou para seus braços novamente com óbvio ceticismo, nesse momento ela começou a entender melhor suas ancestrais.
— Como você poderia criar algo tão perfeito você sozinha? Pesa quase o mesmo que eu.
Ela deveria estar chateada com sua falta de fé nela, mas a única coisa que ressoou em sua mente era a palavra que ele usou para descrever seu trabalho. Callum tinha chamado seu trabalho de perfeito. Suas bochechas queimavam exalando a euforia em seu peito.
Ele não era o primeiro a elogiar seu trabalho, na verdade ela era consciente do seu talento, e havia conseguido vender inúmeros objetos a preços exorbitantes; mas, por algum motivo, ouvi-lo de seus lábios a encheu de prazer.
— A inteligência é mais poderosa que a força.
— Você deve ser muito inteligente porque esses braços... —inesperadamente a agarrou pelo pulso com uma mão e com a outra apertou os bíceps —... os seus braços poderiam se quebrar com um vendaval.
Os dedos fortes e cálidos na pele do seu braço lhe enviavam uma torrente que lhe fazia cócegas no seu peito. Ele era pior que o vento; poderia quebrá-la mais facilmente.
Callum interpretou sua súbita seriedade como desprezo pelo fato de que ele a estava tocando novamente e a soltou de imediato. Então enrolou a camisa branca um pouco mais, revelando seu próprio músculo.
— Olha meu braço― ele lhe disse, flexionando-o para contrair o músculo. Você entende o que eu quero dizer?
Amanda revirou os olhos. Livros e histórias lhe ensinaram que os homens eram competitivos e gostavam de mostrar sua força. Verificar como algumas dessas características era verdade em Callum era fascinante. Ele nem sequer havia sido criado por homens, mas repetia o protótipo, como se essas características exclusivas masculinas, que as cientistas descreviam, tivessem o poder de modelar o comportamento.
Naquele momento, mais que nunca ela o viu como o homem que era, e todas aquelas histórias horríveis sobre sua espécie a atingiram aterrorizando-a, e deixando-a arrepiada. Ao mesmo tempo, lhe pareceu mais exótico, proibido e perigoso do que nunca.
— Eu não tenho intenção de competir com você― disse ela finalmente, cruzando os braços. ―Além disso, seus lindos músculos não ajudaram você a levantar a mesa.
Amanda percebeu que tinha sido um erro ter dito esta última frase, assim que ela viu a expressão desafiadora no olhar dele. Callum foi para perto da mesa e se preparou para levantá-la. Ele conseguiu fazê-lo dando um rugido que a fez olhar para a porta da sala. Por sorte estava fechada e a madeira maciça sufocaria o som.
Ela repreendeu-o pelo descuido, mas ele apenas sorriu orgulhoso por sua façanha e Amanda não pôde deixar de rir.
— Muito bem, te vou contratar! Você pode-me ajudar a construir meus móveis.
— Como você sabia que fazer móveis era sua vocação?
Ela se aproximou a ele para tirar o serrote das suas mãos e acariciou a ferramenta com carinho. Como explicar o que ela sentia quando estava rodeada de madeira? Quando modelava as peças e pouco a pouco estava construindo algo bonito que havia saído de sua imaginação.
— Quando eu era pequena, sempre analisava as peças dos mobiliários, onde elas estavam unidas e como eram montadas. Também estava fascinada pela maneira como a madeira muda de uma peça para outra, como se tivesse sua própria personalidade. É difícil de explicar, mas quando estou fazendo meu trabalho, me sinto completa e nesse momento entendo meu lugar no mundo.
Callum se jogou no parapeito da janela onde havia um banco, com os ombros abatidos. Por alguma razão, tudo parecia confuso ou deprimente.
— Você está bem?
— Qual será minha vocação? Minha razão de viver? ― Ele perguntou, olhando nos olhos dela como se pudesse encontrar a resposta lá. ―Eu sou um servo, mas e se eu quiser ser outra coisa? O que acontece se eu quiser ser médico? Eu não posso porque sou servo e elas já decidiram por mim que isso é o que devo fazer para o resto da minha vida. Amanda, você acha isso justo?
Ela desviou o olhar e, com um pano, começou a limpar a cadeira em que estivera trabalhando nas últimas semanas.
―Antes da bactéria, as mulheres não podiam ir à universidade e eram relegadas a atividades relacionadas ao trabalho doméstico.
Callum mordeu os lábios, inquieto.
— Desta vez as coisas serão diferentes― ele assegurou depois de refletir por um momento. ―Desta vez, ambos os sexos serão livres para fazerem o que quiserem.
Amanda duvidava que os homens permitissem que algo desse tipo acontecesse, especialmente depois de descobrir que eles tinham sido mantidos naquele estado por tantos anos. As represálias tornariam a situação da mulher ainda pior do que no passado.
Mas ela não ia discutir com ele. Amanda tinha que convencê-lo de que pensava como ele e que iria ajuda-lo a libertar o resto dos homens.
―Bem, vamos mandar essa carta.
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