CAPÍTULO 1

Ariel

— Romeu, por que você ainda não está pronto? — pergunto, assim que abro a porta do apartamento.

O garoto está esparramado no sofá, jogando videogame com aquelas roupas de mendigos que a gente usa quando ninguém está vendo. Respiro fundo, coloco as chaves e minha pasta sobre a escrivaninha, tentando não focar no caos dominando o ambiente.

— Nós estamos atrasados para a apresentação. — Bato palmas, assustando-o. — Diz para mim que por baixo dessa camiseta furada e manchada de ketchup, tem uma roupa digna de um baile da realeza.

— Não enche, pai! — ele resmunga, arrumando o gorro de lã ridículo na cabeça.

"Ser pai é a melhor coisa do mundo", foi o que todo mundo me disse quando a minha peguete chiclete do ensino médio ficou grávida e tive que assumir essa responsabilidade, aos 17 anos. Ninguém quis saber de fato a minha opinião sobre o assunto, eu me deixei levar pela emoção de ter um filho e acabei esquecendo a outra coisa que havia se tornado importante para mim.

Anos depois, quando eu continuava preso em um casamento sem amor, as pessoas também usaram esse discurso logo que Carla anunciou a segunda gravidez. Não estou reclamando dos meus filhos, Ana Júlia e Romeu são como o ar que respiro e faria tudo de novo para tê-los comigo, mas estou cansado dessa vida exclusiva à paternidade, sem tempo para respirar um pouco, sem pensar nas 1001 tarefas que devo fazer no dia seguinte.

— Romeu disse que não vai a essa coisa chata de criança remelenta. — Ana Júlia surge no corredor, me tirando dos pensamentos obscuros e trazendo de volta à realidade.

Ela não fez isso? Ah, fez sim. Colocou o vestido vermelho que compramos semana passada. Deslizo as duas mãos sobre o rosto, tentando não dar curto-circuito.

— Para onde a mocinha pensa que vai com essa roupa? — Estreito os olhos, balançando a cabeça e suspirando longamente. Meu Senhor, eu devo ter jogado pedra na cruz!

— Para a sua apresentação no shopping. — A garota me olha como se eu fosse um idiota, ao mesmo tempo que exibe um sorriso de contentamento, enquanto rodopia pela sala. — Estou bonita, papai?

Fecho os olhos, massageio a têmpora, encaro o chão algumas vezes, abro a boca para falar algo, mas a fecho antes que me arrependa. Puxo o ar e o solto lentamente, ignorando o celular vibrando no meu bolso.

Eu não vou me estressar! Recito o mantra, mas ele não tem o efeito esperado e xingo Carla mentalmente, não gosto de culpá-la por ter me deixado, só que hoje estou exausto demais para ignorar esse fato.

Um belo dia, ela acordou decidida a investir mais a fundo na carreira como cantora e eu a estava atrasando com meus sonhos tão pequenos, fingi não estar afetado durante os últimos cinco anos, porque achei que Carla merecia uma chance de ter seus sonhos realizados.

Nós fizemos um acordo, as crianças ficariam sob minha responsabilidade até que ela se estabelecesse, então compartilharíamos a guarda e seguiríamos com nossas vidas. O problema dessa promessa é que nunca foi — nem será — cumprida, não que eu esteja disposto a deixar meus filhos com ela no universo estranho em que vive, por isso não cobro nada e cuido deles como um pai decente deve fazer.

— Papai — sinto a mão de Aninha me puxar —, então, eu estou bonita?

— Está perfeita, não fosse o fato de que compramos esse vestido para a festa de Natal, na casa da vovó, mas isso é um mero detalhe — digo, sem conseguir conter o tom irônico, depois a encaro, sério: — Vá trocar de roupa, agora!

— Mas, papai...

— Nada de "mas, papai", Ana Júlia! — falo, incisivo, ela sai pisando alto de volta para seu quarto, enquanto me sento no sofá ao lado do adolescente rebelde, tomando o controle de suas mãos e desligando a tv.

— Poxa, pai, eu estava terminando a missão. Que merda!

— Olha a boca, Romeu — reprendo e ele faz uma careta desgostosa. — Vá trocar de roupa e dar um jeito nessa sua cara amassada, sairemos em quinze minutos.

— Eu já disse que não...

— Desde quando você toma decisões aqui? — O encaro sério e ele baixa a crista. — Até onde me consta, o pai sou eu e precisa seguir as minhas ordens.

— Devia ter aceitado o convite da mamãe para passar essa merda de Natal com ela e aquele namorado babaca. — Sei que suas palavras são apenas para me atingir, mas não vou cair no seu joguinho. — Assim, não precisaria bancar a babá da pirralha, ir a essa apresentação chata e... meu Deus, não precisaria ir pra fazenda dos meus avós no fim do mundo, ver todos aqueles parentes chatos.

Reclino a cabeça no encosto do sofá, revirando os olhos, para a sorte do meu filho estou sem a menor paciência para seus dramas hoje.

— Ah, é muito bom saber o quanto você aprecia nossa família. — Levanto, pegando os copos espalhados pelo chão e ele não sai do lugar. — Aliás, acho que precisa aceitar o convite da sua mãe, se quiser ir para lá, ainda dá tempo.

Tiro o celular do bolso de modo teatral e finjo procurar o número da Carla e dou minha última cartada, tentando soar despretensioso.

— Só precisa lembrar que sua querida mãe vai te obrigar a ir a todos os eventos beneficentes, aos shows, vai ter que abraçar todos aqueles amigos esquisitos e chamá-los de tios, sabe como ela ama exibir para a imprensa que os filhos apoiam a carreira dela. — Seguro seu ombro, forçando-o a me encarar e finalizo: — Então, a escolha é sua.

— Você é péssimo, pai. — O garoto bufa, frustrado, e se levanta. — Não pode me obrigar a ir a essa apresentação de pentelhos que nem sabem tocar direito.

— Disse o próximo Mozart com o Cello empoeirado — desdenho, usando o mesmo tom dele e me viro, sério, para olhá-lo. — O que ainda está fazendo aqui? Tem dez minutos, Romeu, ou eu vou te arrastar para o carro vestido como um mendigo e ninguém vai me impedir de fazer isso.

Minha ex-esposa não é um exemplo de mãe, mas isso nunca importou para mim. Ela nunca foi e nem será o amor da minha vida, eu perdi a oportunidade e agora já é tarde demais para correr atrás do prejuízo. Quanto a Carla, ela é uma estrela em ascensão, ovacionada por todos e vez ou outra passa o fim de semana com os filhos em algum lugar onde as pessoas possam "flagrá-los" juntos sendo uma família feliz. Minha irmã, Ariadne, garante que a mãe dos meus filhos nunca teve a intenção de tê-los de volta, talvez esteja certa.

Entretanto, eu me culpo por ter sido imbecil o suficiente para transar sem camisinha naquela noite, interrompendo não só os meus sonhos como os dela, então prefiro não reclamar do quão injusta a vida foi. Amo os meus filhos, apesar de me encherem o saco e querer deixá-los na casa dos meus pais por tempo indefinido, no fim, é só isso que importa.

Mentiroso! Minha mente acusa, mas finjo não perceber. Tornei-me um especialista em ignorar o sentimento incômodo que surge de vez em quando, me lembrando das escolhas erradas que fiz.

Tomo banho, visto meu terno em tempo recorde e o meu celular volta a tocar desesperadamente.

— Ariel, pelo amor de Deus, onde você se meteu? — Ouço a voz da minha chefe um tanto tensa. — As crianças começaram a chegar e o ônibus está esperando aqui na frente. Tem ideia do pandemônio que isso aqui virou com quinze crianças comigo, a tia Glória e todos os instrumentos musicais?

— Desculpa, Érica — digo, já saindo do quarto e chamando meus filhos. — Aninha, Romeu, estamos atrasados. — Eles surgem arrumados, mas com as caras amarradas. — Estou chegando, aguentem aí. Aqui, essa garotada adora dificultar a minha vida, mas prometo chegar em dez minutos.

— Tenha cuidado, você não é o Ayrton Senna, e tem duas crianças para cuidar — Érica comenta, rindo, já sabendo que eu vou dirigir feito um maluco, mesmo morando bem perto do centro comunitário.

— Coloquem um sorriso nesse rosto, estamos indo há um concerto de Natal e não a um funeral. — Arrumo a gravata na frente do espelho da sala, pego minha pasta sobre a mesa junto com a chave do carro.

— Pai, eles nem sabem tocar direito — Romeu argumenta, como se tivesse lhe ofendido profundamente. — Não sei por que você age como se estivéssemos indo ao show do Two Cellos com ingressos esgotados.

— São meus alunos, tenho orgulho deles. Entenda isso, garoto. — Dou-lhe um tapa na cabeça. — Vamos.

— Eu queria que o senhor fizesse uma trança em meus cabelos, papai. — Ana Júlia usa seu tom chantagista com os olhões castanhos que lembram cada vez mais a Carla. — Por favorzinho!

— Aninha, meu amor — passo as mãos pela barba, que acabo de lembrar não ter feito —, estamos muito atrasados, que tal se o Romeu fizer, hein?

— Ah, mas ele sempre faz torta — ela choraminga, cruzando os braços sobre o peito.

— Não faço nada — Romeu diz, com um sorrisinho debochado, calçando os tênis. — É o conceito do penteado, você não entende nada, pirralha.

— Eu luto caratê, não se esqueça disso, irmãozinho. — Ana Júlia faz um movimento com as mãos e balanço a cabeça, tentando não rir.

— Já chega! — Abro a porta e indico a saída. — Precisamos ir.

O trajeto até o centro comunitário é curto e meus filhos continuam brigando até chegarmos. Nos juntamos aos demais no ônibus e é nesse momento que eu me arrependo por não ter aceitado a proposta para tocar na orquestra sinfônica da capital.

A quem estou tentando enganar? Eu amo o que faço, mesmo que os meus alunos me levem à quase loucura — e os meus filhos também, nunca trocaria isso por um pouco mais de dinheiro, mesmo que seja tentador. Só preciso de férias, duas semanas na casa dos meus pais e consigo recuperar a sanidade, ou a perco de vez.

Esse é o meu último compromisso de trabalho e amanhã viajaremos cedinho para passar o Natal no interior com a família. Estou tentando não pensar nas lembranças que serão reacendidas, assim que eu colocar os pés naquelas terras, ou mesmo nos questionamentos das minhas tias sobre arrumar uma "mãe" para os meus filhos.

Pelo amor de Deus, que mulher, em sã consciência, vai querer um homem divorciado, com dois filhos e nenhum tempo para si mesmo? Nenhuma, só preciso ter bons argumentos e esquecer, de fato, o que larguei para trás em nome da família que construí.

A apresentação é emocionante e me recrimino por ter cogitado cancelá-la dias atrás, agora temos muitas pessoas interessadas em nosso trabalho e isso é incrível. Temos um coquetel para os convidados e converso um pouco com alguns pais, depois saio em busca dos meus filhos.

— Romeu, onde está a sua irmã? — Interrompo seus sorrisos bobos para uma garota e ele me olha feio.

— A vi agora há pouco com o crush, aquele garoto do Cello. — Seu tom irritante me dá nos nervos. — Que foi? Ela está crescendo.

— Cala a boca e pare de brincar com fogo — digo, entredentes, segurando o seu braço. — Para onde eles foram?

— Calma, pai — ele ri —, era brincadeira, a Aninha está bem ali com a tia Glória, fica sossegado.

— Por que você tem que ser tão irritante, Romeu? — Estreito os olhos para o garoto que se diverte à minha custa.

— Ser seu filho é um bom motivo? — indaga, com a mão no queixo. — Até que a pirralhada toca bem. Parabéns, pai, fez um ótimo trabalho!

— Vindo de você, fico lisonjeado. — Aperto seu ombro e ele ri. — Já está pronto para voltar a tocar?

— Sem essa, pai — ele desconversa, fugindo como sempre. — Vamos mesmo viajar amanhã de madrugada?

— Óbvio que sim, seus avós estão morrendo de saudade. — Olho na direção de minha filha e a encontro sorrindo, empolgada com alguma coisa que Glória lhe diz. — Arrumou a sua mala e a da Aninha?

— Err... — Romeu encara o chão e dá uma resposta sussurrada: — Esqueci, pai.

— O que eu faço contigo, garoto? — Mordo o lábio, pensando se vou ter tempo de dormir em algum momento antes de pegar a estrada.


Olá pessoas, sei que não venho aqui a muuuuitooo tempo, mas resolvi postar um pedacinho do meu último lançamento na Amazon por aqui e deixar vocês um tantinho curiosos.

Não esquece de deixar seu comentário sobre o que achou do capítulo e... volto a qualquer hora/dia com outro capítulo. Beijos!

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