BLUE JEANS

UM BREVE E NÃO EXATAMENTE CONFIÁVEL CONTEXTO, POR ANDRESA RIOS:

Blue Jeans é uma das músicas mais famosas de Lana Del Rey. Provavelmente muita gente conheceu a dona e proprietária do indie através dela. Bom, eu conheci! E foi uma música que me marcou muito, mesmo que eu não tenha entendido nada dela na época. 

Minha interpretação para essa música é quase como a interpretação de todo mundo: um relacionamento abusivo, com um cara tóxico e provavelmente viciado em jogos e adrenalina. Mas, se tem uma coisa que vocês precisam saber sobre essa música, é que ela é um quebra-cabeça de duas partes! Sim, afinal, ela tem um VÍDEO. Um vídeo perfeito, diga-se de passagem. Se você não viu, pode ir assistir agora. O vídeo-clipe de Blue Jeans é como um narrador sincero, mostrando a você tudo o que a música esconde. Sim, é sobre um relacionamento abusivo, e sim, Lana Del Rey poderia estar romantizando coisa terríveis, que tanto repudiamos. Mas, veja bem: é óbvio que tem algo errado na imagem de alguém entrando em uma piscina cheia de crocodilos atrás de um amor. Se você não entendeu a mensagem do vídeo e continua dizendo que ela está romantizando a situação, você viu errado. Não há nada de romântico nessa história de nadar com crocodilos e depois perceber que está com um deles. 

Lana Del Rey estava muito ciente de tudo o que era abusivo e tóxico em sua arte, mas ela não esconderia qualquer parte sombria de sua história apenas para ser correta. Não, ela fez muito melhor: transformou em arte. Em um vídeo poderoso e em uma letra que engana. 

Bem-vindos ao universo de Blue Jeans, na nada confiável interpretação de Andresa Rios.


... 

INÍCIO

Um pesadelo assombrou América naquela noite. Um que, mais tarde, notou ser o insatisfatório presságio de todo o mal que estava prestes a viver.

Começou com um crocodilo em uma piscina vazia. Então ali estava ela, no meio da água, sentindo a fria presença dele. Estavam submersos, respirando sem oxigênio. Era dia, mas às vezes se parecia com a noite, e quando tudo ficou escuri  dentro da água a menina acordou.

Tinha se afogado.

Recuperando o fôlego, América sentou sobre os lençóis úmidos. Respirou uma, duas, três vezes; olhou para o lado direito da cama e só se acalmou quando viu que ele ainda estava lá. Havia muito daquele sonho que ela não se lembrava e o vazio era suficientemente forte para assustá-la.

América voltou a deitar: estava segura, concluiu. Sempre estaria ao lado dele.

Era isso o que pensava.

Até aquela noite.

...

Era meio de dezembro quando América conheceu Spencer. Estava em uma confraternização da cidade — algo como um feriado ou aniversário. Sempre ia sozinha, pois era sozinha, e talvez a sua solidão tenha sido o que despertou aquela primeira conexão entre os dois, como a faísca que dá inicio à fogueira. Em dos cantos da praça, longe e perto da aglomeração, América não pôde ignorá-lo. Nem quando a banda começou, ou quando os fogos de artifício estouraram. Jeans azul, blusa branca; no momento em que o viu, seus olhos brilharam. Sentiu que precisava conhecê-lo. 

- É novo por aqui? - a menina perguntou.

Spencer disse que sim, então ofereceu um cigarro a ela. Foi a melhor apresentação que América vira desde que se conhecia por gente, e se apaixonou por ele quase que ali mesmo. Era como se, de repente, tudo o que havia feito na vida fizesse sentido; suas escolhas, suas mudanças de cidade, suas decisões precipitadas. Tudo a levava até ali, com ele, naquele momento, e nos momentos tristes de um ano depois, quando acordou após um pesadelo e o viu deitado ao seu lado na cama. Ela achou que era um bom sinal o fato de Spencer ainda estar ali, mas não era.

A presença dele nunca foi algo que fizesse bem a alguém.

...

Deitada na cama após acordar do pesadelo, América percebeu que conhecia aquela piscina, a do sonho. Foi a mesma que ela e Spencer nadaram quando completaram um mês de namoro e quiseram comemorar. Eles invadiram uma das casas ricas da cidade, qual sabiam que os donos não estavam, e nadaram por toda a madrugada, até que o sol nascesse e tivessem que partir. Foi a melhor noite da vida dela: cigarros, sexo da piscina e nenhuma preocupação. Infelizmente, teve um fim, mas Spencer prometeu a América que, um dia, compraria aquela casa para os dois. A menina riu, mas as promessas dele consumavam ser levadas a sério, e ela não imaginou o quão perigosa aquelas palavras poderiam ser para alguém que, sem ter nada, parecia constantemente disposto a conquistar tudo.

Um ano depois, ele lembrou daquela promessa. E ela também.

Desejou que Spencer nunca a tivesse feito.

...

O primeiro sinal de que as coisas estavam saindo do controle veio aos seis meses de namoro. Foi em uma tarde quente de passeios pela cidade, com garrafas de água em sacolas plástica trazendo algum frescor, enquanto conversavam sobre como gostariam de sair daquele lugar. Spencer estava insistente sobre o assunto, contando com certo rancor todos os motivos pelos quais não podiam ficar por mais tempo. Entre eles estava o tédio e as pessoas que não os entendiam. 

Era verdade que não pertenciam àquele lugar. Spencer estava constantemente perseguindo papéis, procurando dinheiro, querendo arrumar um jeito de se dar bem em coisas que a maioria das pessoas não se davam. Talvez suas frustrações estivessem começando a ultrapassar a razão, e ele não enxergava mais somente o seu fracasso; era pessoal, como se todo aquele lugar fosse o motivo de sua ruína.

— Podemos sair daqui — ele insistiu mais uma vez. 

O sol iluminava o seu roto e ele deu um sorriso. Aquele sorriso. Só por isso América perguntou qual era o plano dele.

— Roubar um carro e fugir. — ele respondeu. Ela riu.

— Muito bem, então seríamos criminosos.

O tom era de brincadeira, porque ela achava que era uma. O problema, porém, foi que ele nunca respondeu àquela provocação, e por isso América nunca soube, até que fosse tarde, que o problema fora exatamente a falta da resposta.

...

Depois do pesadelo com os crocodilos, América não conseguiu voltar dormir. Ela ficou o resto da noite olhando para o teto descascado do quarto de motel no qual Spencer morava, imaginando como seria estar naquela piscina de novo. Sem os crocodilos, claro; apenas ela. E ele. Juntos.

Lembrou de quando se conheceram, conversaram e se apaixonaram. Ele era como James Dean em um sonho adolescente, totalmente magnético. Quando falaram sobre relacionamentos, Spencer disse que o amor machucava, que era ruim. América teve vontade de curar aquela dor, de mostrar que não precisava ser daquele jeito. 

Foi sua ruína. 

Porque ele não se importava de verdade, e ela se negava a ver aquilo. O que Spencer queria, desde o começo — talvez o começo de sua vida —, era o conceito da piscina, a casa

A promessa.

América notou tarde demais que a promessa não tinha sido feita para ela.

...

No décimo primeiro mês de namoro, América encontrou no quarto de motel dele alguns papéis que ignorou. Ela não queria ler, não queria descobrir coisas que já suspeitava. Spencer andava estranho, com segredos e histórias sobre como a vida dos dois estava prestes a mudar.

— O que está planejando?

Mas ele não respondia. Sempre sorria, pegava um cigarro e inclinava o corpo para trás em uma posição confortável.

— Não é perigoso, é?

— Não, meu amor. Eu nunca te colocaria em perigo.

Mas ele a colocou. Menos de um mês depois, na noite em que ela teve aquele pesadelo, acordando de madrugada, América já estava em perigo.

...

Em certo momento da noite, América conseguiu dormir mesmo após o pesadelo. Foram trinta minutos, no máximo, mas o suficiente para o sol nascer e passar pelas cortinas do quarto. Ela acordou com o feixe em seus olhos, a movimentação pelo carpete insistindo para que seus ouvidos atentos a despertassem por completo.

— O que está fazendo?

Spencer tinha um cigarro apagado entre os lábios. Estava vestido como todos os dias, com sua interminável coleção de camisas brancas e calças jeans. Ele a olhou, suspirou e fechou o zíper da mala que arrumava.

— Preciso sair por um tempo.

América sentou ereta na cama.

— O quê? Por quê? Até quando?

Spencer sentou ao lado dela, colocando uma das mãos sobre a sua coxa esquerda. Aquilo deveria acalmá-la, mas tudo o que passou pela cabeça dela foi a quantidade de tempo que teria que ficar sem sentir aquele toque.

— Dessa vez é muita grana, América. Vamos ficar ricos.

O sorriso no rosto de Spencer foi avassalador. Quase a fez não ver o perigo que todas aquelas malas, segredos e a frase "muita grana" significada. Nada bom vinha daquela combinação.

Entrou em desespero.

— Não, por favor. Fique aqui. Nós não precisamos de dinheiro.

Mas ele partiu, dessa vez com mais uma promessa. Era segunda-feira, então teria que estar de volta no domingo à noite, já rico e louco para vê-la. América sentiu seu coração afundar ao perceber que não podia fazer nada para impedí-lo

Spencer vivia dizendo que fazia tudo por ela, mas América começou a não acreditar mais naquilo.

De algum modo, tudo sempre se tratava dele.

...

O pesadelo com os crocodilos se repetiu por toda a semana na qual Spencer ficou longe. América acordava, mas ele não estava mais lá, então ela tinha que voltar a dormir. Vestia uma de suas camisetas ou a sua jaqueta, pensando em momentos que passaram juntos. Era como se já estivesse morto, vivendo apenas em suas memórias.

Ela se lembrou da noite em que se conheceram na cidade, no dia da piscina, nas tarde de sexo e cigarros proibidos em lagos e parques, e tudo aquilo a fez se sentir bem, mas não o suficiente. Nunca o suficiente. Eram só lembranças, coisas do passado, e em geral a faziam ter certeza de que, se necessário, esperaria Spencer pela eternidade.

Se domingo chegasse e ele não aparecesse, ela o esperaria até o próximo domingo. Por um milhão de anos, pela eternidade. Até morrer. Porque nada no mundo substituiria aquela sensação, aquela chama em seu coração gelado e sem graça.

Só ele.

Sempre ele.

...

No domingo combinado para a sua volta, América sentou na calçada da frente do seu quarto de motel e ficou com as mãos juntas sobre os lábios enquanto esperava que ele aparecesse. Tinha noção de que parecia uma maluca, mas não o suficiente para voltar ao quarto e esperar como uma pessoa normal. Queria ser a primeira a vê-lo, a tocá-lo, a sentir seu sorriso queimando suas bochechas.

Quando finalmente aconteceu, com uma lanterna aparecendo no meio da noite, América reconheceu o barulho de sua moto e levantou em um pulo, sentindo a grande jaqueta dele desdobrar às suas costas. Seu rosto não passava de um sorriso ambulante, seu coração batendo forte e a fazendo tremer. Ela poderia explodir ali, de verdade, bem naquele momento, mas o farol da moto se apagou quando estacionou na frente dela, e América percebeu que o homem que a pilotava não era Spencer.

— Eu sou Rick —  o homem desceu e apertou a sua mão.

— O-onde está Spencer?

— Ele pediu para que eu te buscasse. É perigoso que ele venha até aqui, então vocês vão se encontrar na cidade. Ele disse algo sobre uma piscina que você conhece.

América mordeu o lábio inferior, em dúvida. Não parecia certo, mas ele sabia sobre a piscina e estava com a moto de Spencer, então ela concordou.

Em cima da moto, com o vento passando pelo seu rosto, ela pensou naquele crocodilo da piscina, em seus pesadelos.

Ele se parecia muito com Rick.

...

Durante todo o caminho, América pensou no modo como metade de sua alma morreu no momento em que Spencer passou pela porta de saída. Agora, ela parecia viva e completa de novo, mas só teria certeza quando o visse. Já imaginava Spencer a chamando para ir com ele, dizendo que tudo tinha dado certo. Ela iria, claro que iria. Estaria ao lado dele para sempre, principalmente depois de testemunhar como sua vida era chata e monótoma sem tê-lo por perto. Estava totalmente disposta a seguí-lo pela eternidade.

A moto parou, deixando tudo silencioso. Suas pernas estava bambas pelo tremor constante. Por isso ela não o viu a tempo, reagindo tarde demais, só se dando conta do que acontecia quando já estava no chão, sentindo o sangue correr pelo lado esquerdo do rosto.

Depois, apenas o vazio. E um sonho com crocodilos.

...

Outro sonho.

Não, não era um sonho. 

Com tudo escuro, ela reconheceu em diversas vozes ameaças e promessas. Não promessas boas, como as que Spencer fizera para ela naquela piscina, mas promessas que a fizeram chorar de medo. 

— Traga o dinheiro aqui em quinze minutos ou a sua namoradinha morre.

Uma película azul quase incômoda assombrava as bordas de uma piscina, subindo pelas paredes. Foi confuso à primeira vista, mas ganhou sentido quando percebeu que era o reflexo da água dançando através do lugar, fazendo com que parecesse muito um sonho. América tentou se concentrar o suficiente para que tudo parasse de girar, e finalmente viu Rick. Ele desligava o telefone, mas não antes de acertá-la para que o som de seus gritos atingissem Spencer do outro lado da linha. Agora havia mais sangue preenchendo os seus lábios. América cuspiu, se livrando do excesso, e então levantou a cabeça fraca para Rick:

— O que você quer?

— Meu dinheiro.

— Eu não tenho dinheiro nenhum!

— Eu sei, gracinha, mas o seu namorado tem.

A última mensagem que América havia recebido de Spencer contava o quanto ele estava ganhando dinheiro em jogos. Ele prometeu naquelas mensagens que tudo estava bem, ótimo, perfeito! Que ele voltaria em breve, mas que não poderia mais responder as mensagens por um tempo. América acreditou naquilo, mas agora percebia que não havia nada ganho em toda aquela glória: Spencer estava mais endividado do que quando saíra daquele motel.

— Eu admiro muito vocês — disse Rick de repente, puxando uma cadeira.

América notou que estavam na casa da piscina. A mesma que ela e Spencer haviam degustado de um sonho. As luzes dentro da água estavam acesas, mas o lado de dentro da residência permanecia escuro. Ela olhou para o homem à sua frente. Sabia, de alguma forma, que aquela casa era dele.

— Por quê? — conseguiu perguntar.

— Porque vocês têm coragem. Não fiquei bravo quando transaram na minha piscina, mas o meu dinheiro, garota, foi demais.

— Quanto ele te deve?

Rick pareceu surpreso.

— Você não faz a mínima ideia de como Spencer está fodido, não é? — riu. — Eu procurei o responsável por toda parte ao perceber que minha casa havia  sido invadida. Quando encontrei seu namorado, acabei simpatizando com ele. Tinha um tipo de olhar no rosto que me lembrou pessoas com quem tive ótimos negócios. Então eu ofereci uma oportunidade a ele; um emprego. Ele aceitou e me traiu. O que acha que devo fazer?

América não respondeu. Era uma pergunta retórica em uma situação retórica, mas ficou grata quando ouviu barulhos de passos e finalmente enxergou a silhueta de Spencer contra a luz. Ele havia aparecido. Seu coração se iluminou.

— Mais uma prova de coragem — garantiu Rick, levantando da cadeira para olhar seu traidor.

Spencer esboçou um sorriso.

-— Trouxe o seu dinheiro — jogou uma mala negra no chão. Parecia furioso — Agora nos deixe em paz.

Dois homens abriram a mala para conferir o seu conteúdo. Então fizeram um sinal positivo para Rick e ele balançou a cabeça, dizendo que América estava livre. Spencer correu até ela e desamarrou as fitas de suas mãos e pés. Quando levantou, tudo o que conseguiu fazer foi abraçá-lo até perder o fôlego.

— Vejo você amanhã, garoto.

América sentiu todo o corpo de Spencer endurecer. Foi como uma música sendo interrompida, um disco riscado. 

Rick já estava de costas quando Spencer respondeu:

— Eu não vou mais trabalhar para você.

O homem sorriu quase gentilmente. Então deu de ombros, suspirou e voltou a andar. Spencer e América se olharam como nunca antes, exalando paixão, saudade, arrependimento e culpa. Respiravam como se o ar ao redor deles fosse valioso demais para ser desperdiçado. Pareciam... seguros.

Tudo acabou quando Spencer beliscou o rosto de América entre suas mãos. Ele a olhou, confuso, e então baixou o rosto para o buraco de bala em seu peito. Ele também estava nela. Um único disparo que atravessou os dois como um sentimento compartilhado.

Em um segundo, eles caíram dentro da piscina, afundando na água ainda agarrados um ao outro.

E o pesadelo de América havia finalmente se tornado realidade.

...

PRÓXIMO CONTO:

Uma senhora de setenta anos é encontrada perto de uma rodovia esquecida pelo tempo. Ela fala sobre sua juventude e, enquanto três adolescentes tentam levá-la para casa, a história de um coração partido vem à tona.

EM BREVE

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