Capítulo vinte

OI, MENINESS!

Os recadinhos sempre vêm no final do capítulo, mas decidi mudar nesse. Acho que já coloquei todos os avisos de tudo que precisava no início do livro, mas acho também que esse foi o capítulo que mais amei e odiei escrever até aqui, e espero que seja o que vocês mais amem e odeiem também. Ou só amem mesmo (e me amem, e, como sempre, amem o Henrique).


Amo vocês!

Até breve <3



É como um ciclo completo, um círculo perfeito que te leva ao seu exato ponto de partida. Altos e baixos, dias e noites e, ao fim, invariavelmente você vai se encontrar no mesmo ponto de partida. Não sei se você, mas eu vou me encontrar no mesmo ponto de partida. O que, contrariando qualquer coisa que possa parecer instintiva, é um bom sinal. É o tipo de coisa que eu gostaria de saber anos atrás, que não importa a tempestade que me acometa, a calmaria vai voltar.

Talvez seja esse o motivo de eu ter escolhido o trabalho que escolhi. Porque, em certa medida, o ciclo do mar é parecido demais com o ciclo da minha mente. Potencialmente devastador diante de tempestades e tremores, pacificamente límpido e convidativo na maior parte dos dias. E sempre fui muito melhor em colocar sentido e ordem no que posso ver e tocar. A água gelada contra a pele ajuda nisso.

E é aqui onde estou agora. Mergulho novamente, deixando as ondas suaves me envolverem por um instante a mais antes de voltar à areia. Meados de fevereiro, no auge de um verão nem tão quente assim no Rio Grande do Sul, sento-me ao lado de Rebecca na canga. Solto uma risada baixa quando acompanho o olhar dela, pousado mais ao fundo no mar, onde Calebe está.

Bato o ombro no dela.

— Vai — digo, apontando com o queixo.

Rebecca não se faz de rogada. Coloca na bolsa o livro que estava fingindo ler e praticamente corre em direção à água feito uma garotinha travessa. Aproveito o espaço vazio para me deitar, o braço cobrindo os olhos, a mochila servindo de travesseiro. Sinto-a vibrar alguns minutos depois, mas não me preocupo em checar o celular, sabendo que não é Jéssica, já que ela, por algum motivo que me foge a compreensão, decidiu usar alguns dos dias de viagem para acampar no Atacama.

Ela volta em quinze dias, e não posso mentir: quando me vi sozinho, com a casa vazia pela primeira vez em meses, suspirei aliviado. Por mais que eu a ame, Jéssica está em todo lugar. É verdade que sua presença não me sobrecarregou como imaginei que fosse fazer no começo, quando alterou por completo minha rotina sem que eu esperasse, mas, ainda assim, não foi uma mudança indolor. Agora, quase um ano depois, sua ausência não se mostrou desejável como imaginei que seria. Por alguns dias, sim, abracei o silêncio e deliciei-me dele. Por alguns dias, aceitei a retomada do meu ambiente como o deixei. Por alguns dias.... E então, a saudade venceu.

Não imaginei que não a ter pendurada na bancada da cozinha trocando mensagens com Rebecca enquanto cozinho fosse fazer falta. Não me preparei para acordar, ver a cama vazia e saber que ela não chegaria da corrida em meia hora. As noites de verão começaram a parecer estranhamente frias sem tê-la ao meu lado para dividir a cama. A solidão, que sempre me abraçou como uma amiga reconfortante e segura, começou a parecer grande demais, e passei a me pegar conferindo o calendário como um garotinho ansioso pelo presente de Natal.

Em uma das noites silenciosas demais, resgatei um diário antigo, empoeirado. Sequer me lembrava de ainda o ter, mas ali estava, no fundo do armário que resolvi organizar.

Foi curioso não me reconhecer nas palavras escritas anos atrás.

Aquele, em especial, datava de uma época da minha vida que não reconheço mais. Não reconheço, mas me lembro com perfeição. Nos rabiscos um tanto descompassados, não havia frases longas e coerentes, não havia uma mente coesa capaz de explicar o inferno que estava vivendo. Naquele dia, não seria capaz de explicar o que acontecera, mas hoje eu sou.

Eu acho.

Você já conheceu o caos? Não somente a ausência de ordem, uma confusão desordenada que te tomou de assalto. Caos, no sentido mais cru possível. O desespero mais primordial, ilimitado, disforme e sufocante. O ponto de ruptura da estabilidade que precede o fim do mundo. Esse caos.

Deixe-me te explicar o que é esse caos. Para mim, ele tem gosto metálico e pulsação acelerada nos ouvidos. Na primeira vez que o conheci, ele tomou forma enquanto andava na rua a caminho do supermercado, sentindo cada célula da minha pele arrepiada, superconsciente, pinicando, retesando diante da visão de vultos que não tenho certeza se estavam mesmo ali. Afinal, faz qualquer sentido uma criança pequena correndo sozinha na rua àquela hora? Mas não importava, porque não tive tempo de formar qualquer questionamento lógico quando lógica era tudo que me faltava.

Entrar e sair, pensei naquele momento. Ou alguma coisa pensou por mim. Estava com fome e com a geladeira vazia. Estava atrás de uma embalagem qualquer de comida congelada. Entrar e sair. Por um instante, não sabia mais onde eu estava. Parado no meio do mercado, não tive certeza de como cheguei ali, um borrão enevoado impedindo-me de sequer lembrar do que eu precisava. Foi o ronco do meu estômago que direcionou meus passos, nada mais, e para o corredor errado, até uma barra de chocolate. Garrafa de vinho. Apanhei o chocolate. Eu ao menos gostava de chocolate branco? Não faz diferença. Vai. Pega mais uma. Não vai te fazer mais gordo do que você já é.

Álcool. Vinho.

Alguém esbarrou em mim, e pulei no lugar como se um raio tivesse me atingido, certeiro. Era uma mulher, bonita, eu acho, mais ou menos da minha idade. Ela sorriu e se desculpou. Ela está rindo de você. Franziu o cenho e perguntou se estava tudo bem. Alguém se aproximou dela, uma amiga, talvez. Elas estão falando de você. Estão rindo de você. Inútil. Estúpido. Álcool. Você precisa de alguma coisa para beber.

— Precisa de ajuda com alguma coisa? — uma delas insistiu, e estendeu a mão para tocar meu braço. Dei um pulo para trás antes mesmo que uma frase inteira de formasse na minha mente, o sentimento de insegurança correndo pulsante, queimando minhas veias, acelerado. Fazia tanto sentido que seus dedos fossem ser capazes de me machucar, venenosos, peçonhentos, quanto fazia sentido a necessidade de me afogar na garrafa de vodca que meus olhos nublados avistaram ao fundo; porque eu sabia, eu sabia que me embebedar causaria o torpor que eu precisava, que me proveria o silêncio pelo qual eu ansiava, uma noite de sono, escuro e paz.

E foi para onde segui, guiado, empurrado, atormentado por sussurros gritados, acusadores, afiados, dolorosos. Comandos certeiros, sufocantes, maliciosos. Sugestões dúbias, promessas vazias, punições infundadas. E quando finalmente saí do mercado, sobrecarregado demais para conseguir dar um passo sequer sem que sentisse meus olhos arderem pelas lágrimas não derramadas — não me atreveria a derramá-las, não quando se tornaram tão atreladas à fraqueza aparentemente tão inerente aos meus gestos agitados, descoordenados, desesperados.

Era como tentar respirar debaixo d'água, perdido na imensidão escura de um oceano abissal, sem saber onde era em cima ou embaixo, nadando de olhos arregalados e incapaz de enxergar um palmo à frente.

E quando os insultos encontraram os sons altos das buzinas do trânsito acelerado da avenida principal, logo se tornaram ordens convincentes demais. Um passo. Somente um passo à esquerda e estaria resolvido. Somente um passo e estaria tudo acabado. Somente um passo, e eu finalmente estaria livre do caos que se apossara de mim semanas antes e não havia me deixado até aquele momento, cada minuto mais visceralmente aterrorizante que o anterior, sufocante, doentio e devastador.

E foi o que eu fiz.

Só um passo.

Não me lembro da dor do impacto. Não me lembro de muita coisa. Lembro-me apenas de acordar no hospital, sabe-se lá quanto tempo depois. Dias. A boca seca, a mente lenta, as palavras arrastadas. O que descobri depois disso foi contado pelo psiquiatra do lugar. Não, a pancada não foi forte o suficiente para me matar, obviamente; não foi forte o suficiente sequer para me apagar completamente — por sorte, o motorista dirigia devagar e foi rápido em chamar uma ambulância. Em meio ao que foi descrito como "salada de palavras" e "pensamento tangencial", o caos ganhou nome: surto psicótico agudo.

O primeiro, não o último.

As setenta e duas horas mal foram cumpridas no hospital público com pouca estrutura. Nos seis meses que se seguiram, familiarizei-me com os itálicos, não tão agressivos na maior parte do tempo, verdadeiramente sórdidos em muitos outros. Nomeei-os, como companhias constantes pareciam merecer. Pareceu uma boa ideia. Ainda não decidi se realmente era.

Ainda não decidi muita coisa sobre aquela época, para ser justo. Nada como um transtorno não controlado para fazer com que meses a fio da sua vida não passem de um borrão disforme lentamente comendo seu juízo.

Não. Não me reconheço na pessoa que preencheu as páginas daquele diário, o primeiro que tive, tantos anos atrás. Não me reconheço naquele caos, mas sei que ele me habita — controlado, medicado, silenciado, sim, mas me habita.

Há muito tempo, prometi a mim mesmo que faria o impossível se necessário fosse para que aquele Henrique não voltasse a existir. Não foi até muito recentemente que entendi que ele é parte inegável de mim e que não deve ser apagado da minha história. Por algum motivo, Jéssica decidiu amá-lo também — por histórias, lembranças e detalhes confusos, não pessoalmente, e não consigo apagar a dúvida se esse amor se estenderia à sua existência real.

Espero nunca precisar descobrir.

A visita de Rebecca e Calebe não se estendeu, como se costume; ficaram poucos dias na cidade antes de voltarem ao Rio de Janeiro, o trabalho exigindo a presença dos dois. Ainda assim, precisei usar cada segundo livre dos dias que se seguiram para colocar em dias o material das aulas que começarão em algumas semanas, porque Lívia não tardou em me comunicar que precisaria de mim. Fui intimado a voltar ao Rio, como se passagens aéreas custassem o mesmo que passagens de ônibus.

Sempre fui incapaz de dizer não para os olhos enormes da minha irmã, então, café da manhã-banho-meditação depois, peguei um voo e vim. Aqui estou, recém-chegado do aeroporto para ajudar na situação emergencial que apareceu: Lívia decidiu que odeia o vestido de casamento. Não consigo, sequer tento dessa vez, evitar o riso frouxo, sentado no confortável sofá da loja luxuosa demais, enquanto ela parece brigar com o espelho como se o objeto se esforçasse para ofendê-la.

— Você não tem madrinhas para isso? — pergunto, tombando a cabeça, conversando com suas costas viradas para mim. — Ou a mãe?

Lívia bufa, passando a mão agitada pelo cabelo castanho antes se erguer a saia pesada e virar de frente para mim.

— Essas traidoras me abandonaram — diz, revirando os olhos. — Disseram que eu estou enlouquecendo todo mundo.

Meu sorriso se amplia e arqueio as duas sobrancelhas.

— Não me diga? Parece até que nunca casou antes.

Lívia, então, ri. Uma gargalhada alta, visceral e um tanto histérica, e sei que é por isso que me chamou aqui. Porque sempre foi assim nossa relação. Controladora por natureza, minha irmã sempre precisou de mim para debochar da sua indecisão contraditória.

— Você é o pior irmão do mundo, Henrique — determina, virando-se novamente para o espelho. Ela alisa o vestido, os olhos escaneando o próprio corpo.

— Está linda, Li. Qual o problema?

Ela suspira, prendendo o olhar no meu pelo reflexo.

— E se ele não gostar? — questiona com um fio de voz.

De todas as coisas possíveis, essa não era uma que eu esperava ouvir dela.

— É isso que está te tirando o sono? — interrogo, vendo meu próprio semblante confuso no espelho. Diante da sua ausência de resposta, rio baixo. Levanto-me do sofá, posicionando-me atrás dela, as mãos nos seus ombros. — Lívia, não existe a menor chance de isso acontecer. Você está linda, ele é um homem de muita sorte e sabe disso. Papai estaria orgulhoso de você.

Recosto a cabeça na dela, encarando seus olhos marejados com um sorriso tranquilo. Ela acena em positivo e respira fundo.

— Você vai entrar comigo, não vai?

Aperto um pouco mais seus ombros.

— Só se você decidir de uma vez esse vestido.

Lívia solta outra risada baixa, empurrando-me com o ombro.

— Não é assim que se trata uma noiva — protesta, enquanto volto a me sentar no sofá. — Você vai pagar sua língua com a Jéssica, escreve o que estou te falando.

— Não vou — discordo, balançando a cabeça em ênfase.

Ela segura a barra do vestido, arrumando a postura, e se vira para mim com um sorriso desafiador.

— Veremos — declara, saindo do meu campo de visão em passadas largas à procura da vendedora que a estava atendendo-a.

Instintivamente, puxo do bolso da calça o celular, apenas para me deparar com a foto da tela de bloqueio, uma selfie um tanto contrariada com os rostos amassados ainda na cama, cedo de manhã. O sorriso dela, contudo, é tudo que importa, e preenche a tela.

Olho a data, constatando mais dez cafés da manhã-banhos-meditação antes que ela volte.

Enquanto guardo o aparelho de volta no bolso, pego-me repetindo a rotina mentalmente, a impressão de algo estar fora do lugar; distraio-me rapidamente quando ouço a voz de Lívia novamente.

— Vamos? — Ergo o olhar para encontrá-la, já novamente vestida nas roupas com as quais veio. — Eu pago o almoço. — Indica a porta com a cabeça, estendendo o braço para mim.

Engancho o meu ao dela quando a alcanço, por alguns segundos apenas antes de ela mesma se distrair com alguma coisa e me liberar do toque.

— Japonês? — pergunta; nego com a cabeça.

— Ah, sem dúvidas. Rodízio. Você vai pagar o almoço mais caro da sua vida por ter me feito vir para cá de novo — implico.

Sigo-a em direção ao carro, sorrindo para sua tagarelice animada e desenfreada da minha irmã.

Minha mente, contudo, viaja, imaginando com uma perfeição desafiadora o dia em que será Jéssica que verei em um vestido de noiva.

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