Capítulo seis

Ouço os sinos natalinos soando em todos os lugares, em uma denúncia inegável de que dezembro chegou e, com ele, a melhor e mais conturbada época do ano. Com o calendário já ameaçando adentrar a segunda semana do mês, estou contando os dias para minhas merecidas férias começarem e poder ir para Canoas. Faltam apenas mais alguns dias para que eu possa me livrar desta rotina e, principalmente, me livrar de todos os problemas que venho acumulando ultimamente. Quero fugir, com a boa covarde que sou, desobedecendo minhas próprias recomendações, ignorando o que sei que devo fazer.

No momento, estou lidando com os últimos detalhes, finalizando as últimas notas, atualizando o sistema, fechando os últimos detalhes dos meus projetos de pesquisa, liberando últimos relatórios das turmas de pós-graduação. Nessa quarta-feira à tarde, a faculdade está vazia. Muitos alunos já passaram de ano, tantos outros já sabem da sua iminente reprovação e não se dão ao trabalho de dar as caras por aqui. O restante, destinados à prova final, trabalhos e quaisquer outros artifícios desesperados para conseguir alguns míseros pontos extras que garantam a aprovação no final do ano, ainda vagam pelos corredores, é por isso que estou aqui, sentada, esperando os últimos relatórios serem entregues para que eu possa ir para a casa e ter um merecido descanso.

Enquanto horário não chega, aproveito para reler minha carta de apresentação e artigo, escrito e reescrito mais vezes do que posso lembrar, antes de submetê-lo para a banca examinadora na tentativa de conseguir uma bolsa decente de doutorado, porque esse salário que estão me pagando aqui...

É quando meu celular toca e o rosto de Rebecca aparece na tela. Pela hora, sei que ela não está me ligando porque morre de saudades ou quer jogar conversa fora. Não, já conheço o modus operandi da minha amiga e sei que é de um favor que ela precisa. Atendo a chamada de áudio, estranhando não seja o vídeo dessa vez, mas quando uma pequena confusão aparece ao fundo da linha, sei que ela está no meio de alguma coisa e essa é só uma ligação rápida. Ouço uma conversa agitada em inglês antes de Rebecca perceber que atendi o telefone.

Como vai minha pessoa favorita no mundo inteiro? — ela pergunta, e posso visualizar o bico dramático e seus olhos pidões. Reviro os olhos, ainda que saiba que ela não pode ver.

— Tu não dorme nunca? — implico, arrancando-a uma risada.

Não me bate — começa, e já me preparo para a bomba. — Mas o responsável pela minha bolsa daqui precisa que o Henrique envie um formulário preenchido para aprovar a extensão do meu estágio pros próximos meses, e precisa ser até o final da semana. Eu estou ligando para ele desde segunda e nada.

Solto um grunhido e recosto na cadeira, sabendo o que vem a seguir:

— Becs...

Você pode passar no laboratório e pedir para ele checar a porcaria dos e-mails e mensagens dele?

— Rebecca...

Por favor? Por favorzinho?

— Rebecca! — Ela se cala e um sorriso me escapa. — Henrique não está na faculdade.

Ela solta um grunhido dolorido do outro lado da linha.

Saiu cedo, aquele folgado? — reclama, chorosa.

— Na verdade, ele não aparece há dias já. Mel disse que está trabalhando de casa.

Rebecca, pelo que deve ser a primeira vez na vida, fica em silêncio por mais do que segundos de uma vez. Ouço a movimentação ao fundo, e é só por isso que não preciso conferir o telefone para ter certeza que a ligação não caiu.

Quanto tempo? — ela pergunta, a voz baixa e séria como poucas vezes ouvi. Quando pergunto "o quê?", repete: — Há quanto tempo ele não aparece?

Jogo os olhos para o teto, tentando lembrar. Não estou propositalmente ignorando a existência de Henrique ou evitando cruzar ou falar com ele, apenas não tenho feito qualquer esforço para fazer-me presente pelas últimas semanas. Para ser justa, ele me procurou, com seus rotineiros convites para almoço e mensagens esporádicas, mas, depois, sumiu. Foi apenas há dois dias que Melissa entrou na minha sala surtada porque precisava de ajuda com alguma coisa do estágio e Henrique "não deveria ser perturbado", palavras da coordenadora dele.

— Não sei, quase duas semanas? — chuto, suspirando chateada. — Honestamente, o pessoal do seu departamento é muito mais legal. Eu também poderia fazer tudo que tenho para fazer de casa, mas me diz se aquele desperdício de oxigênio do Leonardo se importa? Não. No meio tempo, Henrique está trabalhando de casa com ordens diretas da coordenadora de vocês para não o perturbarem. Inveja. Estou com inveja.

E com saudades, mas não digo em voz alta. Rio ao fim do monólogo, e só então percebo que o silêncio a atingiu novamente. Ouço uma respiração pesada do outro lado da linha, seguida da sua voz preocupada.

Eu sei que você está toda investida naquele "se me quer na sua vida, coloque-me nela" — ela diz, repetindo a citação de Frida Khalo que saquei do bolso semana passada quando ela me perguntou em que pé estávamos —, mas eu realmente preciso desse documento assinado. Você pode...

— Não — falo por cima do seu pedido de que eu vá até a casa dele, mas ela simplesmente continua.

— ... a chave está na primeira gaveta da mesinha no meu quarto...

— Não — repito.

... e o código de segurança é 1928.

Suspiro, recostando a cabeça no estofado da cadeira. Fecho os olhos, apertando o ossinho entre meus olhos com a mão que não está segurando o celular.

E, por favor, me liga dizendo como ele está, tudo bem?

Balanço a cabeça para mim mesma. Posso facilmente pedir para outra pessoa fazer isso. Pedir para Calebe dar um jeito de contatar o amigo. Dizer que todo mundo merece toda folga do trabalho que conseguir e não vou interromper a dele, mas a verdade é que quero ir até lá. Quero o suficiente para sequer questionar o ridículo que é ela me dizer para pegar a chave da casa dele — que sequer sabia que ela tinha — ao invés de simplesmente tocar a maldita campainha.

Não.

Ao invés disso, apenas respondo:

— Tudo bem.

Assim que cruzo a porta, sinto o corpo peludo de Alexia se embrenhar em minhas pernas. Abaixo-me e estendo a mão, afagando seu pelo macio. A gata me permite um total de três segundos de afago antes de me atacar com os dentes afiados e sair correndo.

— Certo... — murmuro. — Henrique?

Olho ao redor, o cenho franzido ao perceber as janelas fechadas, cortinas tapando a entrada de luz. Henrique se sente enclausurado com muita facilidade e tem todas as portas e janelas abertas sempre que possível. Largo minha bolsa no sofá e termino de entrar na casa.

— Henrique? — chamo novamente, andando em direção ao quarto. No caminho, passo os olhos pela cozinha, torcendo o nariz para os pratos jogados na pia, perguntando-me que bicho mordeu esse obcecado por limpeza. Diante do quarto vazio, contorno a casa e sigo para os fundos. Abro a porta dupla que dá para a varanda e o encontro sentado, recostado na parede traseira da casa, sob a luz de uma luminária pendurada no teto, livro aberto no colo.

Seus olhos voam a minha direção, parada sob o batente da porta. Ele me encara, receoso e confuso. Esfrega um olho, abre e fecha a boca algumas vezes antes de formular a primeira frase:

— Jéssica? O que você está fazendo aqui? — Olha ao redor por um instante, confuso. — Como você entrou?

Puxo a chave do bolso traseiro, erguendo na altura dos seus olhos o chaveiro no formato de um olho grego com pimentas penduradas na corrente e, ao vê-lo, o corpo de Henrique relaxa, acenando com a cabeça. Diante da sua completa ausência de reação ao me ver, sinto-me idiota por estar aqui.

— Desculpe a invasão, mas Rebecca está tentando falar com você há dias, precisa que assine alguma coisa — explico.

Um sentimento de inquietação me atinge.

Nunca me senti fora de lugar nessa casa, pelo contrário. Passei muito tempo aqui nos últimos anos e, todas as vezes, nunca demoraram mais do que poucos minutos para que eu estivesse desfilando pelos corredores de calcinha e sem maquiagem. Não foram raras as vezes em que estive com a bunda para cima deitada no sofá, lendo alguma coisa ou preparando aulas. Menos raras ainda foram as vezes em que fiz da cozinha minha propriedade particular para usar como bem entendesse. Passei incontáveis noites naquela cama. Há uma escova de dentes minha aqui, e chá no armário, ainda que Henrique odeie — porque eu gosto e pertence a mim.

Nunca me senti fora de lugar nessa casa, mas agora, diante do seu silêncio e sua aparente incapacidade de manter contato visual, os olhos fixos na página aberta sobre o seu colo, lábios apertados em uma linha fina, preciso piscar repetidas vezes para impedir que qualquer lágrima se forme.

Não sei exatamente o que me faz sentir tão inteira e absolutamente rejeitada, mas, quando o vejo apertar os olhos fechados por um segundo e esfregar o rosto antes de me olhar, preciso travar os dentes para conseguir apenas continuar o encarando. Seus olhos estão tão desprovidos de emoção que é como encarar o completo vazio do universo. Silencioso, detentor de segredos que não me pertencem. É como se ele me olhasse, mas não me enxergasse de verdade, e isso não me magoa. Não. O que sinto é a mais pura raiva do fiasco que sou.

Sinto-me uma completa fraude quando ao redor de Henrique. Calebe teve razão ao dizer que sempre sei o que fazer; sempre tenho as respostas, sempre sei as saídas. Mas Henrique... Henrique me transforma de novo na adolescente perdida, idiota, iludida e carente que um dia fui.

— Obrigado — murmura por fim. Após alguns longos segundos de silêncio, ele recosta a cabeça na parede. — Esse foi o único motivo de você ter vindo aqui?

Não há qualquer insinuação na sua pergunta, apenas genuína curiosidade. Assinto, balançando a cabeça devagar, e ele repete o gesto, desviando o olhar. Fecha o livro, colocando-o de lado, ao chão. Puxa os joelhos para perto, apoiando os antebraços sobre eles. Estou a ponto de me virar novamente para dentro da casa, pegar minha bolsa e sair daqui quando, pelo vidro da porta, tenho um vislumbre rápido da cozinha bagunçada.

— Tu está bem? — pergunto, voltando-me para ele, incapaz de ignorar o que não deveria ser nada inusitado. Morei com Rebecca por sete anos, conheço de perto a capacidade bagunceira de um ser humano que passa tempo demais dentro de casa, mas...

Henrique suspira e nega com a cabeça, os olhos ainda distantes de mim. Espero, mas nenhuma explicação adicional vem. Dou dois passos hesitantes na sua direção e sufoco um grito surpreso quando ele me puxa para o seu colo. Henrique enlaça minha cintura e afunda o rosto no meu ombro, prendendo-me a si, os dedos apertando minha cintura com um pressão quase dolorosa. Levo alguns segundos para me recuperar do susto e, quando o faço, movo-me em seu colo até estar encaixada de frente para ele, uma perna de cada lado seu.

— Ei... — chamo, acariciando seus braços. Sua resposta vem na forma dos seus lábios subindo por minha garganta. A textura da barba, normalmente inexistente, agora um tanto áspera, arranha minha pele e me faz jogar a cabeça para trás, abrindo caminho sem contestar.

A pressão das suas mãos em minha cintura aumenta e uso as pernas para me prender melhor nele. Gemo baixo quando seus dentes alcançam meu queixo, bochecha, orelha, uma mão subindo até meu seio em um aperto desesperado. Desespero. É a única palavra que pulsa em minha mente sob seus ataque inesperado e mais bruto do que jamais foi.

Talvez eu seja uma pessoa ruim, no fim das contas, porque sei que algo está errado, porque sei esse não é o normal de Henrique na minha frente, sei que não é esse o gosto do seu beijo, sei que não é esse o calor do seu toque, sei que esse descontrole não o pertence, mas meu corpo reage, eu reajo, e quero que continue. Não o paro quando sua mão adentra minha camiseta, não o impeço quando a outra aperta minha bunda, quando ele parece me tocar em todos os lugares ao mesmo tempo, me agarrar em todos os lugares ao mesmo tempo, a cada apertão me puxando para mais perto, como se tentasse inutilmente fazer nossos corpos se fundirem. Como se eu fosse a única coisa o conectando à realidade e me deixar ir não fosse uma opção.

Cada gesto seu tem gosto de angústia, e existe uma parte minha que se deleita por se sentir necessitada. Não desejada. Não querida. Indispensável em pura urgência. Como o centro de uma galáxia, o sol onde ele orbita por um segundo que seja.

Seu corpo está rígido sob mim, contudo. Em todas as partes, menos na única que deveria. E quando pouso minha mão ali, em um apertão pouco delicado, ele ofega em um gemido um tanto sofrido que finalmente me traz de volta a uma realidade em que meu corpo pegar fogo não é a prioridade. Envolvo seu pescoço, acaricio sua bochecha e tento erguer seu rosto para mim, mas Henrique afunda mais o rosto no meu pescoço. Sinto meu peito apertar quando a umidade dos seus olhos atinge minha pele e sussurro seu nome em seu ouvido, o que faz com que ele me aperte ainda mais.

— Desculpa — diz em um fio de voz, tão baixo que mal tenho certeza de ter ouvido qualquer coisa.

— O que tu tem? — pergunto, acariciando suas costas, aninhando seu cabelo em meus dedos. — O que está acontecendo, Henrique?

Há um minuto de silêncio que parece longo demais. Posso quase ouvir as batidas agitadas do seu coração, seu corpo um tanto trêmulo em meus braços, a agitação que parece exalar dos seus poros.

— Preciso te contar uma coisa — ele murmura. Aperto os olhos, não querendo pensar onde isso está indo. — Eu não quero, mas preciso. Devia ter contado muito, muito tempo atrás, mas não sei como. Não sei por onde começar, não sei como fazer sentido. Nada faz sentido — diz entredentes, a dor tão crua escorrendo por sua voz.

Espero, alisando suas costas, o coração descompassado. Alguns minutos se passam até que ele tire o rosto do meu ombro, alguns outros segundos se passam antes que ele me olhe nos olhos. Aperta os lábios, engole em seco, fecha os olhos apertados.

— Banho — declaro, começando a me levantar do seu colo. — Vai tomar um banho e a gente conversa depois, tudo bem? — Percorro o indicador pela frente da sua camisa. — Tu não pode estar confortável dentro dessa roupa — aponto para a calça jeans e a jaqueta de couro em seu corpo.

— Não estou — confirma, um sorriso tímido despontando do seu rosto. — Banho — concorda. — Só preciso trocar a comida da Alexia.

— Eu faço isso.

Henrique nega.

— Eu cuido dela.

Assinto, um beijo na sua testa, outro singelo nos seus lábios.

Perco qualquer noção de quanto tempo Henrique fica no banho. O que sei é que a louça já está lavada quando meu celular toca com o aviso de mensagem recebida e ele ainda não voltou. O nome de Rebecca pisca na tela e recosto na pia, digitando a resposta:

Tu consegue esperar até amanhã? Henrique tá com uma cara horrível, acho que ele precisa dormir.

A resposta, estranhamente, vem de imediato. Rebecca normalmente demora duas eternidades para responder.

Ele está bem?

Ergo os olhos quando ouço-o entrar no cômodo. A toalha enrolada na cintura, cabelo úmido, o tronco despido salpicado de gotas que não foram secas. Ele me olha reticente, preocupado. Digito rapidamente um "vai ficar" e coloco o celular de lado, estendendo uma mão para ele. Henrique enlaça nossos dedos e vem, sem qualquer resistência, quando o arrasto para o quarto. Seu corpo desaba na cama e se enrosca ao meu com facilidade. Fica completamente imóvel e calado por tempo o suficiente para que eu ache que pegou no sono; até que sua voz baixa me alcança:

— Por que você ainda está aqui? — questiona. Acaricio seus fios agora já quase secos e o aperto um pouco mais.

— Porque me importo contigo, criatura — respondo com uma risada; é tudo que posso dizer para evitar um porque te amo, seu idiota. — Dorme. A gente conversa pela manhã.

Ele suspira e assente, rolando na cama, soltando-se de mim. Assisto-o se levantar, livrar-se da toalha e vestir uma boxer; abrir a gaveta da mesinha de cabeceira e engolir um comprimido com um gole de água.

— Dor de cabeça? — pergunto. Ele nega e me estende a caixa de melatonina.

— Insônia.

Passo os olhos rapidamente pelo verso da caixa e a enfio de volta na gaveta. Livro-me da minha própria roupa e ele me estende uma camiseta sua — a roxa, que eu sempre uso para dormir —, antes de voltar para a cama. Acomodo-me em seu ombro e ele me puxa para perto.

— Você vai estar aqui quando eu acordar? — sussurra.

Uma risada nervosa escapa dos meus lábios diante da pergunta absurda, porque é aqui que a constatação óbvia me atinge como uma supernova, uma soco na boca do estômago: eu não vou embora. Já tentei tantas vezes e não fui, duvido que isso mude hoje. Duvido que isso mude algum dia.

*

Não sei quanto tempo o remédio para dormir dele demorou para fazer efeito; é provável que eu tenha pegado no sono primeiro. Quando acordo, ele não está mais na cama. Após tomar um banho rápido e me enfiar de novo na roupa com que vim ontem, saio do quarto, cruzando uma casa muito mais organizada do que quando cheguei ontem. Ouço alguns murmúrios ao longe, como uma conversa baixa e incompreensível vinda da cozinha. Aproximo-me para encontrá-lo agachado, acariciando a cabeça de Alexia.

— Deu para conversar com a gata agora, foi? — pergunto, um sorriso solto nos lábios ao ver que ele parece muito melhor do que noite passada.

Embora seu olhar ainda pareça preocupado, ainda haja olheiras um tanto fundas no seu rosto e seus dedos nervosos estejam sendo estalados com certa frequência, ele parece melhor.

— Ela é uma ótima companhia — responde, meneando a cabeça. — Já respondi Rebecca — avisa, levantando-se e vindo na minha direção. — Não te agradeci por vir aqui ontem. — Sua mão vai à minha bochecha. — Você não tem ideia do quanto foi importante.

Viro o rosto e deixo um beijo na sua palma; ainda sem entender.

— Precisa ir para a faculdade agora?

Nego.

— Depois do almoço. Tu vai? Posso surrupiar uma carona?

Ele faz uma careta, deixando a mão cair ao lado do corpo.

— Não... Semana que vem, talvez. Mas você pode pegar meu carro, se quiser. Não estou dirigindo por esses dias.

Pisco repetidamente, sentindo meus olhos arregalarem. Não é que Henrique seja superprotetor com seu bebê de quatro rodas, mas, indiscutivelmente, tem um apreço fora do comum por dirigir. É isso que, finalmente, faz com que uma chavinha seja girada dentro de mim. Como se algo fizesse um click alto.

— Tu não está trabalhando de casa. — Não é uma pergunta. Puxando pela memória, consigo lembrar de talvez outras três ocasiões em que ele desapareceu do trabalho por algumas poucas semanas, e tento lembrar os motivos, porque em todas as vezes eu não o vi: visita à família no Rio de Janeiro, trabalho acumulado, qualquer coisa que demandava concentração absoluta e que não fosse perturbado.

— Não — confirma. — Não estava me sentindo bem. Precisava de uns dias de folga.

Franzo o cenho, procurando motivos para a mentira.

— O quê...

— Eu tenho uma história para te contar — desconversa. —, se você quiser ouvir. — Ele espera por alguns segundos até que eu confirme e imita o movimento da minha cabeça.

Sou levada ao sofá e Henrique parece precisar de uma dose extra de coragem para começar a falar. Abre e fecha a boca mais vezes do que posso contar, e dizer que alguém parece lutar contra demônios internos nunca pareceu tão real. É como assistir a uma batalha sendo travada no límpido azul dos seus olhos.

— Pelo amor de Deus, homem. Tu matou alguém? — brinco, e isso arranca uma risada baixa dele. Nervosa, um tanto histérica, bastante desesperada, mas uma risada.

— Não, não matei ninguém — garante. — Eu só... Perdi algumas pessoas durante a vida e não quero perder você. — Mal tenho tempo para processar a batida que meu coração perde antes que ele complete: — Sua amizade foi a melhor coisa que me aconteceu nos últimos anos, e odeio que qualquer coisa possa colocá-la em risco.

É aqui. Não em todas as outras vezes que ele disse isso. Não em todos os últimos momentos dos últimos anos. Não em todas as recusas ao longo dos meses, não em todas as vezes que tentei me aproximar e Henrique me manteve a um braço de distância. É aqui, agora, que finalmente quebro. Que não consigo impedir que uma lágrima me escorra pelo rosto. Que não consigo segurar o soluço. Que não consigo sustentar seu olhar. A última coisa que vejo antes de desviar meus olhos para o meu colo são os seus, arregalados, desesperados.

— Por que você está chorando? — pergunta, agitado.

— Danielle — sussurro, sem mal separar os lábios. Ergo os olhos para o seu rosto surpreso e confuso. Que seja. Abri as porteiras do inferno e o diabo em pessoa que venha me buscar se estiver disposto, mas eu preciso saber.

— Como você...

— Não estava bisbilhotando — começo defendendo-me. — Vi a foto quando tu me pediu para pegar a agenda no seu armário há algumas semanas.

Ele não parece incomodado. Confuso, mas não incomodado. Quero perguntar quem ela é, ou foi, mas o que sai da minha boca é:

— Tu a ama?

Henrique pisca mais vezes do que devia ser humanamente possível, encarando-me como se eu tivesse sido substituída por um alienígena. Umedece os lábios, sacode os olhos, parece procurar a própria voz quando balança a cabeça em positivo. Dessa vez não faço nenhum esforço para segurar a torrente de lágrimas.

— Uma parte minha sempre vai amar, mas... por que você está chorando? — Sua voz agora transborda desespero quando interrompe a própria linha de raciocínio. Henrique tenta me alcançar, mas escapo do seu toque, levantando-me do sofá. — Jéssica?

— Eu posso viver com incerteza — murmuro, mais para mim mesma do que para ele. — Posso me convencer que é o suficiente, que não preciso de mais. Mas não consigo... — Soluço, mordendo o lábio inferior. — Não sabendo, não tendo certeza que tu não me ama. Que pelo visto teu coração já está ocupado.

Sentado no sofá, olhando-me de baixo, o rosto de Henrique aos poucos se converte em pura incredulidade conforme absorve cada palavra do meu surto. É como se ele fosse incapaz de compreender a situação que se desenrola diante dos seus olhos, como se não me reconhecesse, como se tentasse colocar sentido em um cubo mágico e falhasse, em pensamentos desordenados.

— Quando eu disse que não te amo? — pergunta por fim. Não é uma pergunta retórica. Seus olhos complementam a questão que sua boca jogou em mim, esperando uma resposta. É quase como se duvidasse de si mesmo e estivesse considerando, por um segundo que fosse, que realmente houvesse dito tal coisa e precisasse de uma confirmação. — Quando eu disse que não te amo, Jéssica?

É minha vez de piscar abobalhada, de perder as palavras, se não saber como reagir.

— Não disse — respondo em um sussurro.

Ele afunda o rosto nas mãos, pressionando as palmas contra os olhos. Escorrega os dedos pelas bochechas e, quando me olha de novo, tem o rosto inteiro coberto pelas mãos, menos os olhos. Os olhos tão bonitos que me encaram com decepção.

— Mas você disse — acusa. — Repetidas vezes. De novo e de novo. Você disse. Toda vez que ficava esquisita, que se afastava. Todas as vezes que te perguntei qual era o problema, era isso? Quando a gente transou pela primeira vez... Você me jurou, Jéssica. E depois, todas as outras vezes. Você jurou que não significava nada, que não era nada.

Dou um passo para a frente, tentada a me desculpas e me explicar, mas o que me escapa é um projeto de grito:

— Tu tem que ser cego para não ver, Henrique! — reclamo, passando a mão pelo rosto, cabelo, jogando-a no ar. — Tem que ser cego para não ver que eu sou doida por ti! Que sou doida por ti desde o primeiro segundo que bati os olhos nessa sua cara irritantemente bonita!

— Eu sou cego! — ele rebate, frustrado, afundando a cabeça nas mãos, puxando os fios. — Eu sou. Não sei ler entrelinhas, não sei adivinhar o que ninguém está sentindo, não sei. Foi por isso que perguntei tantas vezes. E você negou em todas elas. E eu achei que estava perdendo o juízo, lendo coisa onde não tinha, cismando com uma coisa que não era real, duvidando da minha maldita sanidade, porque você me prometeu. E eu confiei em você.

Minha boca cai aberta por um segundo, mas me recupero rapidamente, apontando um dedo na sua direção.

— Não me culpa por isso — rosno. — Se tu não viu o que estava escancarado na sua frente, não é minha culpa.

Espero que ele grite de volta, que dê corda para a briga que estou alimentando, como gasolina em um incêndio desgovernado, mas Henrique limita-se a engolir em seco e suspirar cansado, derrotado. De ombros caídos, antebraços apoiados nos joelhos, a cabeça pende para frente e ele não me olha.

— Não é sua culpa — concorda, desarmando-me. — Mas também não é minha. Não posso me permitir viver questionando cada coisa que me é dita. Não posso me permitir criar teorias absurdas para justificar um desvario que você me prometeu não ser real.

Ele levanta a cabeça e seu olhar me acerta como uma flecha afiada. Traição. Ele não precisa dizer mais nada para que eu entenda que está se sentindo traído, enganado.

— Você me disse que o que nós temos era apenas uma amizade como qualquer outra, que sexo não significava nada, e eu confiei em você. Confiei em você mais do que confiei no meu senso de realidade.

— Henrique... — Digo seu nome com uma risada nervosa escapando da minha garganta, confusa e sem realmente conseguir entender o que está acontecendo.

Ele se levanta e se afasta, contornando o sofá, seguindo a passos lentos em direção ao quarto.

— Vai embora — pede, de costas a poucos metros de distância.

— Henrique...

— Por favor.

Ele não espera resposta, apenas desaparece casa adentro. Ouço o som da porta do seu quarto sendo fechada e sinto meu corpo tremer com a batida seca. Assim como Henrique, as lágrimas parecem me abandonar, restando apenas o pandemônio interno que viraram minhas emoções.

Um miado fino me alcança e desço meus olhos para Alexia, que, pela primeira vez, não me encara com seu rosto felino acusatório. Apenas vira as costas e se esgueira para onde seu dono se refugiou, batendo a cabeça na porta e miando incessantemente até sua entrada ser permitida.

Sob o som da porta sendo fechada outra vez, abraço meu próprio corpo, sentindo-me, pela primeira vez em muito tempo, verdadeiramente sozinha e muito, muito confusa.

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