Capítulo dezessete
— A gente carrega nove meses na barriga pra isso mesmo.
Sorrio, afastando-me para deixar que minha mãe cruze a porta da frente, balançando a cabeça para sua reclamação tão tradicional.
— Na verdade, foram sete — corrijo quando passa por mim lançando-me um olhar enviesado e nada sincero.
Não me surpreendi quando, dois dias atrás, ela comunicou que viria visitar. Demorou a acontecer, considerando que a vi pela última vez no dia das mães e, na ocasião, Jéssica não foi comigo. Elas ainda não se conhecem, não além de chamadas de vídeo. Combinamos que eu a levaria comigo ao Rio de Janeiro para o Natal, mas, agora, primeira semana de dezembro, dona Felícia decidiu estar com saudades e voou para cá.
Sei que não é somente isso. Sei que ela está aqui para ver com os próprios olhos que estou bem. Falamo-nos com frequência, mas um pouco menos nos últimos meses, por nenhum motivo em particular, entre a dedicação integral dela à organização do casamento de Lívia e as mudanças sutis de rotina que venho experimentando nos últimos meses.
O curioso de toda essa situação é ver Jéssica nervosa. Não acontece com frequência; não consigo recordar a última vez que aconteceu. Mas ela está inquieta desde que soube da visita da minha mãe.
Pergunto-me quanto tempo mais vai demorar para que ela desista de manter essa cara de mocinha comportada; a resposta vem menos de meia hora depois, quando minha mãe já a tem mergulhada em uma conversa animada e despudorada, ignorando por completo minha presença e dedicando toda sua atenção em forma de olhos brilhantes à mulher que todos os dias me arranca a mesma reação.
Com seus sessenta e tantos anos, Felícia exibe seus cabelos tingidos em uma tonalidade próxima do seu castanho natural, soltos caindo por sobre os ombros. Os olhos da mesma cor estão atentos e analíticos sobre a mulher sentada ao seu lado no sofá, e seu sorriso logo se torna cautelosamente carinhoso; é quando sei que qualquer reticência que ela queira sentir em relação à Jéssica não está encontrando lugar para florescer em seu coração.
É impossível que encontre.
Não quando Jéssica sorri dessa forma, quando seus olhos cintilam como um universo estrelado particular.
— Quando vai ser o casamento da Lívia? — Jéssica pergunta animada.
Sinto Alexia circundar minhas pernas e abaixo-me para pegá-la no colo e levá-la até sua vasilha de comida, recusando-me a interromper o tópico de conversa favorito da minha mãe.
— No final de março — dona Felícia responde com um suspiro contrariado. Afasto-me a tempo de ouvi-la reclamar mais uma vez da demora. O sonho de ter a casa recheada de crianças foi frustrado pelos dois filhos, e ela não perde a oportunidade nos lembrar disso sempre que tem oportunidade.
Lívia, mais nova que eu seis anos, não tem qualquer intenção de povoar o mundo. Um filho, talvez, faça parte dos seus planos, mas, em definitivo, não um time de futebol. Esse vai ser seu segundo casamento. Do primeiro, apesar de ter durado bons dez anos, não veio nenhuma criança; ela não fala sobre isso, mas sei que esse foi um dos motivos fortes para o divórcio. O ex-marido não lidava bem com sua ausência de vontade de abandonar a vida para dar a ele a família de contos de fada que se achava na obrigação de ter.
Quanto a mim... Sei que não serei eu a oferecer o suprimento de netos que Felícia deseja. Que Jéssica deseja.
Sei que Jessi quer ser mãe, e imaginar a possibilidade de colocar no mundo alguém que seja um pedaço de nós dois me aquece o peito, mas me desespera em igual medida.
Como posso cuidar de alguém tão dependente quanto um filho quando por vezes sou incapaz de cuidar sequer de mim mesmo? Como posso ser irresponsável de colocar no mundo alguém que corre o risco de ter a mesma vida que eu? Sofrer dos mesmos males, ter as mesmas limitações?
Porque é essa a palavra correta: limitações.
Normalidade é um termo relativo, cada um preso à sua dentro das suas próprias concepções de mundo, mas não posso e nem nego que, entre quatro paredes, ainda que não mostre abertamente ao mundo na maioria das vezes, há limitações. Há adaptações necessárias para acomodar minha mente instável, há coisas para lidar.
Não desejaria a ninguém o inferno descontrolado que minha mente se torna às vezes; não infligiria isso a alguém conscientemente, e é isso que um filho representa: colocar no mundo alguém fadado a sofrer caso herde a genética imperfeita que carrego comigo.
Como posso fazer isso com um ser inocente que de nada tem culpa?
Como posso dormir à noite sabendo que condenei alguém assim?
Mas eu sei. Sei que Jéssica quer ter filhos; conheço Jéssica o suficiente para saber que ela terá filhos se assim o decidir fazer.
Se minha mãe terá netos, é uma questão inteiramente diferente.
Quando a noite desse sábado chega, termino de acomodar minha mãe no quarto; o único da casa. Ela insistiu em dormir no sofá, mas foi ignorada, e agora está sentada na beirada da cama, assistindo-me enquanto coloco em cima da cadeira no canto do quarto a sua bolsa de mão, a mala de rodinhas no chão ao lado.
Então, viro-me para ela, seguindo a indicação dada pelos dois tapas suaves sobre o colchão, sentando-me ao seu lado. Os dedos ligeiramente enrugados tocam meu rosto, e ela me olha com uma atenção preocupada.
— Ainda não está convencida que estou bem? — pergunto, deitando um pouco o rosto na sua palma.
— Eu sei que você está bem, garoto abusado — recrimina, mas os olhos vasculham meu rosto em busca de qualquer sinal para justificar sua preocupação. — Só quero ter certeza que vai continuar bem. É a primeira vez que...
Assinto, sabendo o restante da frase. É a primeira vez em muito, muito tempo que ela conhece alguém com quem me envolvo; é a primeira vez em muito tempo que me envolvo com alguém.
— Ela sabe que...?
Confirmo com a cabeça antes que termine o questionamento.
— Até que...?
— Ela sabe. Jéssica sabe de tudo — garanto. Ela abre a boca, mas interrompo-a: — Estou feliz, mãe. Jéssica está feliz.
Ela desvia os olhos, e sei que atingi o ponto certeiro.
— Mãe... — Suspiro, dolorosamente dividido quanto ao que sentir.
Não foi acidental.
A demora para que as duas se conhecessem não foi acidental.
Construímos uma bolha durante esses meses, Jéssica e eu. Aqui, somos só nós dois. Nós dois, Alexia e intrusos esporádicos que raramente deixam minha própria cabeça. Nós dois, tardes longas de conversas despretensiosas, chá e discussões sobre livros. Nós dois, passeios de mãos dadas, cochilos no meio do dia e afagos amorosos. Aprendi a cozinhar suas receitas preferidas e fiz o meu melhor para entender os detalhes da sua tese de doutorado — falhei miseravelmente na segunda. Jéssica aprendeu a como cuidar das minhas flores e a não interferir na minha rotina tão bem estabelecida.
Desvendei seus detalhes, o vinco na sua testa quando está pensativa demais, os toques insinuantes quando está sondando para descobrir se vai ter mais de mim ou se a noite terminará em um abraço e conversas despretensiosas. E ela desvendou os meus; minha organização sistemática, meus tiques; aprendeu reconhecer nas minhas divagações aleatórias o que é papo jogado fora e o que são sinais de um discurso um tanto confuso e desencontrado.
Somos como um dueto sincronizado de ginástica artística, bem coreografado, previsível e seguro. Somos como as tais estrelas binárias que ela ama, um sistema fechado que gira em torno de si mesmo, sugando e doando em um equilíbrio perfeito, mais forte por saber que funciona melhor dessa forma. Tornamo-nos um todo, um universo particular. Mar de águas calmas e convidativas desaguando no infinito de um universo estrelado.
Mas existe um mundo lá fora.
Não foi acidental ter evitado expô-la ao meu. Jéssica já sabe de cada detalhe da minha vida inteira, todos dos quais não me orgulho. Da mesma forma que conheço sua história. Mas ela também não me levou à Viviane. É verdade, sua prima me conhece há bons anos, mas na categoria de amigo, não na de namorado. Desde que começamos essa história, nossa história, não vi Viviane; e são apenas quatro horas de distância.
Não sei o que se passa na cabeça dela, mas sei bem o que se passa na minha: não preciso que vozes externas reforcem o que as internas berram às vezes.
E, ainda que completamente sem intenção, é isso que minha mãe representa. Felícia me ama com todo o seu coração de mãe preocupada, e, ainda que não diga em voz alta, sei que não acredita que outra mulher seja capaz de me dedicar esse mesmo amor. E ela está certa. Nenhum amor nunca será como o seu — incondicional e tão arraigado —, mas isso não significa que eu não seja merecedor de outros amores.
Demorei tempo demais para me convencer disso e sinto essa certeza prestes a escorregar dos meus dedos com muita facilidade; não quero que isso aconteça.
— Ela parece feliz. Vocês parecem — minha mãe concorda, voltando o olhar para mim. — Eu só me preocupo, Henrique. De as coisas não saírem como você espera e você sair dos eixos de novo.
Balanço a cabeça em negativa.
— Não tenho quinze anos, mãe — brinco.
Ela aperta um pouco mais minhas mãos.
— É, mas você lembra o que aquela médica disse.
Suspiro, sabendo bem do que ela está falando. Lembro bem, e ela tem razão.
Demorou um bom tempo de tentativa e erro até que eu achasse a primeira combinação perfeita de medicamentos e terapia que me mantinha preso ao chão. A pior parte já havia passado — internações traumáticas demais, alucinações quase dolorosas de tão reais, uma paranoia entranhada na minha pele fundo o suficiente para ser difícil sobreviver no mundo lá fora ou confiar em uma alma viva sequer.
Dois anos depois de eu ter, a contragosto, aceitado o diagnóstico e começado, a passos de tartaruga, o tratamento, eu estava finalmente bem. Bem por meses a fio. Terminei a faculdade. Arrumei um emprego. Passei a morar sozinho, cuidar de mim mesmo.
Lembro-me bem da conversa a qual minha mãe se refere. Foi logo quando passei na seleção do mestrado e, com medo de estar tentando dar um passo maior que a perna, visitei minha psiquiatra. O que ela disse colocou as coisas em perspectiva, um pouco: ali, com meus quase vinte e sete anos, emocionalmente era como se eu tivesse acabado de me tornar um adulto. Gastei meus anos de formação tentando lidar com a doença — primeiro negá-la, depois entendê-la e manejá-la. Agora, eu precisaria aprender como funcionar em sociedade. Como ser um adulto.
Aprendi. Coisas simples, como como dar conta de um emprego e cozinhar quando chegar em casa sem me sentir absurdamente sobrecarregado; coisas mais complicadas, como como manter amizades duradouras e criar laços significativos. Com algumas, tenho dificuldade até hoje. Com a maioria, aprendi a lidar muito bem e sequer me cruzam mais a cabeça.
A parte mais difícil sempre foram as relações pessoais. E é com isso que minha mãe se preocupa, sempre se preocupou: que eu me permita depender tanto de alguém a ponto de, se tudo der errado, esse ser um fator de estresse grande o suficiente para me tirar dos trilhos.
Entendo-a, mas prometi a mim mesmo não viver mais com esse medo. Não, não tenho quinze anos, tenho muito mais que isso. E preciso agir exatamente como o adulto estável que batalhei muito para me tornar.
Levanto-me da cama e vou até o guarda-roupas. Pego o diário para que o preencha pela manhã sem precisar acordar minha mãe, e pego a caixinha aveludada escondida por detrás de algumas peças de roupa. Quando viro novamente na direção dela, ergo o cubo avermelhado na altura dos seus olhos, que se arregalam.
Ela ergue as mãos ao rosto, tapando a boca que cai aberta em surpresa.
— Quando? — É o que pergunta após alguns segundos, pousando as mãos no colo.
Umedeço os lábios, sentindo a boca seca; dessa vez, não pelo motivo de sempre, mas por um nervosismo gostoso. Sorrio, apreciando a contradição do sentimento. É bom sentir, pela primeira vez em muito tempo, uma ansiedade tão banal e comum a todos os homens: o medo de receber um "não" na pergunta mais importante da vida. Deleito-me um pouco da sensação de normalidade.
— Quando eu tomar coragem — admito, girando a caixa entre os dedos.
A próxima coisa que sinto são seus braços ao meu redor. Mal processo quando se levanta da cama e me envolve, apertando-me com mais força do que supus caber em seu corpo.
Não sei o que, no simples gesto, acarretou sua reação, mas aceito, abraçando-a de volta. Ela murmura desejos de boa sorte, e rio quando diz que posso ter um casamento duplo com minha irmã.
E, embora temeroso de estourar essa bolha em que vivo com Jéssica, saio do quarto com o peito mais leve ao ter a constatação de que talvez sobrevivamos ao mundo lá fora, afinal.
*
Sou recebido pela brisa um tanto abafada da noite. Não chega a estar quente; apesar do que Jéssica insiste em dizer, nunca realmente faz calor aqui. Nessas horas, tenho certeza de que ela não sobreviveria a um verão carioca.
Procurei-a pela casa, mas não a encontrei. Então, segui os pingos de água no chão até a porta dos fundos, sabendo que vieram do cabelo que ela parece se recusar a secar apropriadamente por algum motivo que sou incapaz de compreender. Sorrio quando a encontro.
O pequeno quintal virou um acampamento improvisado. Sobre a grama, um amontoado de lençóis e edredons que assumo serem nossa cama pela noite acomoda Jéssica, com uma camiseta que costumava ser minha favorita e agora virou sua roupa de dormir; cabelo molhado e uma caneca em mãos.
— Eu estava torcendo para dormir no sofá — comento, fechando a porta atrás de mim para Alexia não fugir.
— Cadê teu espírito aventureiro, guri? Faz uma eternidade que a gente não acampa! — protesta, abrindo espaço para que eu me aproxime.
— Você nunca vai me ouvir reclamar de não passar a noite no meio do mato — implico, e recebo uma careta em resposta.
Tiro os chinelos e sento-me sobre os lençóis, pernas esticadas que logo viram apoio para as delas quando Jéssica as joga em cima das minhas coxas, movendo os dedos dos pés em um pedido silencioso por uma massagem. Atendo-a, rindo pelo gemido baixo que escapa dos seus lábios quando pressiono os pontos doloridos.
— Tudo bem? — pergunto, indicando para dentro de casa com a cabeça.
Jéssica suspira e toma um gole do chá que tem em mãos antes de pousar a caneca no chão e menear com a cabeça. Ela ergue os olhos para o céu pouco estrelado, jogando o corpo para trás, apoiando-se em seus cotovelos.
— Sinto falta dela — admite em um sussurro. Acaricio seu tornozelo com delicadeza, sabendo que se refere à tia. — É estranho como parece que não tenho família nenhuma agora. Meus pais... — Suspira. — Faz tantos anos que a gente perdeu contato... Uma ligação educada de vez em quando, mais nada. E nem sei como isso aconteceu. Eles me mandaram para morar com a tia Cida depois daquela confusão toda, e eu nunca mais voltei pra Esperança. E eles só vieram na minha formatura e nunca mais.
Jéssica desce os olhos para mim, e dedilho sua panturrilha, sem me atrever a interrompê-la. Com um sorriso pequeno e lastimoso, continua:
— Depois que minha tia morreu... Viviane... — Balança a cabeça. — Não sei nem o que aconteceu entre minha prima e eu — completa com um sussurro.
Fecha os olhos por um segundo, abrindo um sorriso um pouco maior dessa vez.
— Mas, mesmo assim, eu estou tão malditamente feliz que parece até um crime — confessa, rindo baixo. Quando volta a me olhar, não consigo ler cada detalhe que suas íris escuras tentam me contar. — Tu me faz mais feliz do que devia ser permitido por lei, criatura.
Seus lábios formam um "eu te amo" silencioso e, sem que eu tenha a menor certeza do que estou prestes a fazer, tudo que sai da minha é:
— Casa comigo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top