☆《ECHOES OF DESTRUCTION》☆

☆《 Shane Walsh 》☆

Se Rick tava naquele estado, entrevado numa cama de hospital, era pela incompetência de alguém do outro batalhão. E se tinha uma coisa que eu não tolerava, era policial prestando serviço de merda. O filha da puta passou a informação errada, dizendo que o carro estava ocupado por dois indivíduos, mas na verdade eram três. E, porra… o terceiro maldito quase levou a vida do meu irmão.

Agora, já fazia quase um mês que Rick estava em coma, e nada de respostas, nenhum sinal de melhora, não tinha caralho nenhum. E eu nem conseguia fazer nada de útil pelo meu amigo, a não ser vir vê-lo todos os dias, e ajudar Lori com Carl e as coisas da sua casa.

As ruas de King County estavam bem vazias ultimamente, por ser uma cidade pequena, as pessoas gostavam de ir até os locais andando enquanto jogavam conversa fora, mas desde o alerta do governo nos noticiários, solicitando que quem não tinha necessidade de sair de casa, permanecesse dentro dela, a cidade ficou parecendo mais com uma cidade fantasma. Aquela doença nem tinha chegado a King County ainda, e eu esperava que nem chegasse. Ouvi no rádio que o CDC e a FDA estavam trabalhando em uma vacina, e que em breve tudo estaria sob controle.

Pelo menos as ruas estavam vazias, e as pistas ficaram livres. Ficar de lenga lenga no trânsito era algo que me deixava nervoso.

Estacionei o meu Jeep Wrangler Rubicon em uma das múltiplas vagas vazias do King County General Hospital, puxei o freio de mão, retirei a chave da ignição, peguei as flores que a Daiane e a Amanda da central me pediram para trazer e desci, batendo a porta em seguida. Aquele vaso que elas tinham escolhido era feio pra burro.

Pelo menos o Rick era querido por todos; eu gostava de saber disso. Ele era um bom xerife. Talvez eu fosse melhor, mas me contentava em ser seu braço direito. Tinha acabado de encerrar o meu turno, não havia nem ido pra casa trocar de roupa. Precisava dar um acelere no pessoal do hospital. O médico responsável pelo caso do Rick informou no dia anterior que, devido à loucura dessa doença, os pacientes mais graves seriam transferidos para o Grady Memorial, que ficava em Atlanta. Lori me ligou naquela manhã e informou que esteve no hospital e, até então, ninguém soube lhe dar informações de quando a transferência iria acontecer.

Eu disse pra ela deixar essa questão comigo, que eu resolveria tudo; Carl estava assustado, Lori devia dar atenção para o menino. Eu ouvi a voz dele no fundo da ligação, enquanto falava com sua mãe e tentava tranquilizá-la, o garoto falava algo por trás com sua tia… Anya…

Não consegui ouvir muito bem o que ela dizia, mas o tom de voz dela tinha aquela coisa maternal, que ela sempre usava com o sobrinho. Não sei por que, no mesmo instante, imagens do seu sorriso preencheram minha mente; me perguntei silenciosamente se ela estaria bem, se ainda tava com o mesmo olhar triste da última vez que a vi há alguns dias atrás. Meu peito se apertou e precisei pedir para Lori repetir o que tinha me dito.

Cortei o estacionamento e caminhei em direção à entrada do hospital, as chaves do meu carro sendo giradas em meu dedo indicador. Não ir para casa trocar de roupa foi proposital; se o corpo docente do lugar não dava respostas a um civil, a um oficial da polícia teria de dar.

Empurrei uma das duas portas de vidro da entrada e fui invadido pelo cheiro de álcool e pelo clima frio do ambiente. A coloração branca e azul claro das paredes refletia a luz do teto, fazendo tudo ficar ainda mais iluminado. Caminhei pelo longo corredor e fui cumprimentado por médicos, enfermeiras, e familiares de alguns pacientes. Ser ajudante do xerife fazia você ser um pouco conhecido demais.

Fui até a recepção e me dobrei sobre o balcão de madeira branca. O fundo do vaso repousou sobre a superfície, e um pequeno som de choque da porcelana sobre a madeira foi ouvido. O relógio redondo pendurado no alto da parede marcava exatas quatorze horas e seis minutos. Batuquei os dedos na superfície, atraindo para mim a atenção da recepcionista.

— Boa tarde, moça. Sabe me dizer se o presidente do hospital se encontra? Eu gostaria de trocar umas palavrinhas com ele.

A morena intercalava sua atenção entre mim e algo superinteressante que ela digitava no computador. Quando terminou, ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e ajeitou os óculos no rosto, empurrando-os sobre o nariz com o dedo indicador.

— Olha, oficial… — Vi seus olhos passearem pelo meu peitoral procurando pelo meu nome de identificação; o que era uma merda. Já faz um mês que eu tava ali todo dia, ela devia ter decorado minha cara e meu nome; às vezes parecia que elas faziam de propósito.

— Shane… Shane Walsh… olha, moça, eu tô aqui todos os dias, visito o paciente Richard Dean Grimes do quarto 132, vítima de um tiro na barriga, mais especificamente na parte inferior do torso, próximo ao quadril. Ele passou por cirurgia, segue em coma, e agora aguarda transferência. Quero falar com seu chefe sobre acelerar esses trâmites. Ele está ou não está? — Falei tudo de uma vez, meio sem paciência… quer dizer, muito sem paciência. Qual era o problema daquela porra? Era só solicitar uma ambulância ou um helicóptero e mandar o cara logo pra lá.

— Vou verificar para o senhor, só um momento. — A garota cujo nome eu já tinha decorado, chamada Maddie, respondeu com olhos arregalados, pegando apressadamente o telefone preto sobre a bancada e digitando algum ramal. Talvez eu tenha falado um pouco alto ou energético demais, pois virei o rosto para o lado e a outra recepcionista me encarou da mesma forma, seguida de duas enfermeiras que entregavam prontuários para ela.

Após uma conversa curta e rápida, Maddie desligou o telefone e ergueu os olhos para mim, apoiando as mãos sobre alguns papéis espalhados ao lado do teclado do computador, cruzando os dedos e inclinando-se levemente para a frente.

— Ele pediu para o senhor aguardar, está em uma reunião agora.

— Tudo bem, eu não vou a lugar nenhum. Estarei no quarto 132; me avise quando seu chefe puder falar.

Dei dois tapinhas sobre o balcão antes de me afastar andando de costas, oferecendo um sorriso para as moças, talvez como um pedido de desculpas? Não sei, eu só sorri e foda-se. Suspirei ao virar e comecei a andar na direção do quarto de Rick. O seu prontuário estava dentro da caixinha de acrílico transparente que ficava ao lado da porta, peguei as folhas e passei os olhos rapidamente antes de finalmente entrar. Constatando que o médico daquele plantão já tinha feito sua visita, e os medicamentos já haviam sido aplicados, o prognóstico continuava o mesmo; sem reação.

Eu quis socar alguém ou alguma coisa, talvez uns putos da rua, marginal por marginal, sempre merecia levar um sacode. Ajeitei o vaso de flor no braço, guardei os papéis, segurei a maçaneta e abri a porta.

Entrei no quarto e fechei a mesma atrás de mim, caminhei até a lateral da cama, o bip das máquinas ligadas ao meu amigo preenchia o ambiente, fios saiam colados do seu peitoral e se esticavam até os aparelhos, o soro pendurado no suporte pingava lentamente e entrava no seu corpo através do acesso em seu braço. O barulho do respirador que mantinha o ar entrando e saindo dos seus pulmões me deixava nervoso. Eu não gostava de hospital, nunca gostei. Me sentia sufocado, era tipo a porta pra morte, parecia que ia dar de cara com ela me esperando sentada na poltrona de qualquer quarto.

Fixei meus olhos na poltrona que tinha ali e que Lori havia passado várias horas sentada nos últimos dias, era marrom e cada dia estava em um lugar diferente do quarto, acho que era a equipe da limpeza que ficava mudando aquela coisa velha e desconfortável de lugar. As janelas e cortinas estavam abertas, permitindo a luz do sol entrar, o que era bom. Rick tava branco demais, não que ele já não fosse branquelo; aquela pele de bebê e aqueles olhos azuis sempre fizeram sucesso com a mulherada. Rick, que era bobinho demais, nunca soube aproveitar os benefícios que sua aparência trazia.

Segurei na borda da cama e me curvei levemente sobre ele, analisando seus traços, as olheiras ao redor dos olhos estavam mais fundas, o osso da clavícula um pouco mais visível. Meu amigo ficar entrevado naquela cama estava fazendo com que ele emagrecese.

— E aí, amigão… Que bom que tá vivo… que bom que tá aguentando. — Fiquei em silêncio, como se Rick fosse abrir os olhos magicamente só pra me responder. Talvez, ele abrisse mesmo, só pra me xingar de filho da puta e mandar eu mudar o disco; todo dia eu falava praticamente a mesma merda. Se tinha uma coisa que eu era péssimo, era com essa questão de sentimentos; eu me importava pra caralho, mas não sabia como colocar em palavras. Um dia me envolvi com uma doidinha que disse que minha linguagem do amor era atos de serviço, que eu demonstrava amar alguém fazendo coisas por ela. Não entendia muito bem desses paranauês, mas se fosse parar pra pensar, até que fazia sentido. Eu não era de falar, gostava mais de fazer. — Ah, desculpa, cara… eu falo a mesma besteira toda vez que eu venho aqui. — Suspirei, frustrado. Endireitei o corpo e dei mais uma olhada no meu amigo. — Todo mundo falou das flores, o pessoal da equipe toda queria ter vindo aqui, mas se sabe… a cidade tá uma loucura com essa doença se alastrando; fico feliz que ainda não tenha nos atingido, mas… estamos montando equipes, recebendo alguns suprimentos; um pessoal do exército tá pra chegar por esses dias pra nos dar um apoio… Sabe, eu até que tô gostando de ser o xerife temporário, mas aquela delegacia não é a mesma sem você, cara… precisa acordar logo, precisa voltar pra gente.

E eu falava sério. Era de cortar o coração ver Carl chorando, e a única coisa que eu podia fazer era cuidar do garoto enquanto Rick estava preso naquela maldita maca. Às vezes, dava vontade de sair quebrando todo aquele hospital e exigir que alguém fizesse algo que trouxesse meu irmão de volta. Não era nem por mim, mas pelo menino. Só que eu sabia que tudo o que podia ser feito, já tinha sido.

O quarto estava gelado, iluminado por aquela luz fria e clínica que só os hospitais têm. O cheiro de antisséptico era forte, queimava no fundo do nariz, e o som contínuo dos monitores cardíacos era o único indício de que Rick ainda estava ali, lutando. Cada vez que eu olhava para ele, o peso nas minhas costas parecia aumentar. Não era justo. Nem pra mim, nem pro Carl, nem pra Lori. 

— Olha, cara... vou deixar o vaso aqui no seu aparador, beleza? — Bati com as pontas dos dedos na cerâmica, tocando uma pétala antes de olhar para Rick mais uma vez. Um suspiro escapou, pesado. — Sei que vai parecer meio piegas, mas espero voltar aqui amanhã e ver os seus lindos olhos azuis me encarando. Então, Grimes... isso é uma ordem. Já passou tempo demais dormindo. Hora de acordar, meu irmão.

Fiquei por ali mais um tempo, sem encontrar palavras que pudessem mudar qualquer quadro clínico. Sentei naquela poltrona dura e desconfortável, ouvindo os bips do aparelho e pensando no que eu poderia ter feito de diferente para evitar aquilo. Quando Rick acordasse e processasse o estado pela informação errada que tinham nos passado, ele poderia conseguir uma boa grana por negligência.

Comecei a lembrar de nossa vida juntos. Rick e eu crescemos praticamente como irmãos. Minha mãe foi embora quando eu era pequeno, e quem me criou foi meu pai, que era o melhor amigo do pai do Rick. Então, nos tornamos inseparáveis também tipo unha e carne. Meu pai sempre dizia que éramos o cu e a calça, dupla inseparável. Mas agora Rick podia morrer, e eu ficaria. Talvez não fôssemos tão inseparáveis assim.

Foi quando ouvi uma movimentação bruta do lado de fora do quarto. Levantei da poltrona em um pulo, alarmado, o coração batendo rápido no peito. Um arrepio ruim percorreu meu corpo inteiro, sem eu nem entender o motivo. Olhei no relógio de pulso: quatorze horas e dezessete minutos. Caminhei até a porta e abri. O que vi fez meu coração disparar ainda mais. Pessoas corriam por todo lado — médicos, enfermeiras, pacientes e familiares.

Tentei parar alguém, pedir uma informação, entender que merda estava acontecendo, mas ninguém dava atenção, cada um preocupado com o próprio rabo. Eu precisava tirar Rick dali. Se eles não iam mover os pauzinhos e transferi-lo logo, eu daria meu próprio jeito. Só precisava de uma maca para levá-lo para fora. Depois disso, só Deus sabia o que eu faria. Não podia levá-lo para casa, iria assustar Lori e o garoto. Levaria para minha casa e contaria tudo depois. Era uma ideia maluca, idiota até? Com certeza. Mas não podia deixar meu irmão ali. Tinha algo errado acontecendo naquele exato momento, e era grande.

Olhei rapidamente pelo corredor e vi uma maca no final, na direção oposta à da multidão. Me apressei até ela. Minha respiração entrava e saía de maneira exasperada pelas narinas, e os pulmões já ardiam pela falta de ar. O impacto dos meus pés contra o chão fazia todo meu corpo vibrar. Quando finalmente alcancei a maca e olhei para a cafeteria, meu mundo desabou,  paralisei, encarando através da fumaça  branca a cena de horror que desenrolou bem diante de mim.

Lembra daquela equipe do exército que eu mencionei que estava para chegar e nos dar apoio? Pois bem, eles tinham chegado… Mas não estavam ajudando, não. Estavam matando geral! Fuzilaram bonito. Todo mundo: médicos, pacientes, funcionários. E eu nem sabia o porquê. Que porra estava acontecendo? Que caralhos aquilo significava?

E se já tava ruim, não podia piorar, né? Ou podia? Claro que podia! Aquela doença… eu tinha visto uns malucos nos vídeos que mandavam pros noticiários. Só de olhar o jeito de andar, eu sabia o que era. Ainda não tinha encontrado uma dessas coisas de perto, nem sabia ao certo como funcionava. O governo só nos dava informações vagas. Eram humanos enlouquecidos que viraram canibais? Sei lá. Mas uma coisa eu sabia: até aquele momento, King County tava livre disso.

Mas ai eles invadiram o hospital. A porta da cafeteria abriu e começaram a surgir aos montes, comendo os meus companheiros de farda. Foi… foi assustador. Ver um humano comer outro, rasgar a pele com os próprios dentes, as mãos abrindo a barriga, comendo os órgãos... Meu estômago sempre foi forte, mas aquilo era demais até pra mim.

Corri de volta pro quarto, sentindo minha roupa grudando no corpo de tanto suar. Eu tava nervoso, e nunca fui de ficar.

Empurrei a maca contra a porta e fui direto até Rick. Descobri ele e o puxei pros meus braços.

— Vamo lá, amigão, vamo tirar você daqui. — Tentei puxá-lo, mas bati os olhos nos fios que o prendia às máquinas. Elas que mantinham ele vivo. O que eu poderia fazer? — Droga… — murmurei, colocando ele de volta na cama.

Dei a volta na maca, fiquei paralisado, tentando pensar em algo, enquanto meus olhos corriam rapidamente do corpo pálido de Rick para os monitores ao meu lado. Minha mente não parava, os pensamentos acelerados buscando uma solução… mas no final não achei nenhuma.

— Se você vai acordar, a hora é agora, irmão… — falei baixinho, com a mente vazia, sem nenhuma ideia do que fazer.

Ouvi o barulho de botas contra o chão se aproximando do quarto, mecanismos de armas se movendo; alguém estava prestes a entrar ali. Em um ato impulsivo, me abaixei ao lado da cama. Todo o meu corpo estava em alerta, o eco do meu coração podia ser ouvido dentro do meu cérebro, as têmporas pulsavam e latejavam. Tão rápido como a pessoa entrou, ela saiu ao ver que apenas um moribundo indefeso estava ali. O oficial do exército gritou algum código e se afastou. Ainda abaixado, comecei a socar o chão de raiva, já que não podia quebrar a cara de alguém. Porra! Soquei tanto que a lateral da minha mão começou a doer. Coloquei-me de joelhos, apoiei os cotovelos na maca e juntei as mãos sobre o corpo de Rick, quase como uma súplica, pra ele, pra Deus, pra qualquer um que conseguisse me ajudar.

— Rick, se você vai acordar, a hora é agora! Precisamos de você, cara! Lori e Carl estão contando com você. Olha, eu não sei quanto tempo temos, mas você não pode desistir. Não é só por mim, é por eles também! A gente precisa sair daqui juntos! Por favor…

Encarei seu rosto imóvel, e, de repente, o som ensurdecedor de um impacto grande preencheu o ambiente; as paredes tremeram quase em um lamento de dor, o teto cedeu um pouco, derrubando areia sobre nós, o chão sob meus pés vibrou, e a energia caiu. As máquinas que mantinham Rick vivo foram desligadas.

— Não… não… não… — murmurei, ouvindo os sons de mais tiros ao fundo, distantes, talvez na outra ala do hospital.

Levantei e deitei sobre ele com cuidado, apoiando minha cabeça em seu peito e colando o ouvido sobre a região do coração. Tentei ouvir seu batimento, qualquer som que seu coração pudesse fazer, mas não tinha nada… vazio, silêncio. Rick estava morto?

— Droga, cara! Não era pra ser assim… — praticamente choraminguei, apoiando a testa no seu peito; meus olhos começaram a arder, a visão sendo preenchida por lágrimas. Como eu iria falar pra Lori que fui ali pra resolver a questão da transferência pra ela e saí de lá com a notícia do seu marido morto? Apoiei a mão no seu rosto, tocando-o pela última vez. — Não era pra ser assim, cara…

Cobri seu corpo outra vez, um nó pesado no fundo da garganta, não queria ir embora, não podia simplesmente virar as costas e abandonar o corpo do Rick ali, mas o que eu faria? Voltaria depois pra buscar seus restos pra fazer um enterro digno? Caralho, eu nem sabia se teria um depois, nem sabia como iria conseguir sair dali com vida. Como olhar Carl no fundo dos olhos e dizer “amigão, seu pai tá morto.” Talvez, fosse melhor mesmo, morrer por ali e colocar fim em toda essa agonia. Pelo andar daquela merda, a ajuda do governo seria aquela, exterminar o máximo de pessoas, ou quem sabe todas.

Retirei a arma do coldre, destravando-a; inspecionei as munições no pente e saí do quarto com ela em punho, verifiquei o perímetro e, depois de constatar que o corredor estava limpo, finalmente saí, fechando a porta atrás de mim e olhando a última vez para o meu irmão morto sobre a cama. Ainda assim, para preservar seu corpo, impedi a passagem de qualquer coisa com a maca. Aquelas coisas tinham de ser muito inteligentes para retirá-la dali e girar a maçaneta, coisa que eu não sabia se eram.

Mais daquelas pessoas doentes surgiram no fundo do corredor; eles faziam uns barulhos esquisitos, tipo uns rosnados baixinhos, era de causar calafrios. Tapei o nariz com uma toalha para não respirar a fumaça e caminhei pro lado contrário deles. Tinha que cuidar de Lori e Carl… por ele. E Anya… encarando todo aquele caos, foi seu rosto que tomou minha mente; tinha que proteger aquela garota, não importava o que iria me custar.

☆《▪︎▪︎▪︎》☆

Passei em casa somente para pegar algumas poucas roupas e equipamentos de sobrevivência: lanternas, mais munição e comida enlatada. Não que eu tivesse muitas dessas coisas; sou um homem sozinho, e na maioria das vezes minha comida vem pronta e congelada diretamente do mercado, ou peço uma pizza e como enquanto assisto a qualquer droga na TV e bebo minha cerveja. Só que agora, algo dentro de mim dizia que essas coisas sumiriam por um tempo, principalmente as pizzas e os programas de televisão.

Antes de voltar para o Jeep e trancar minha casa, parei no limiar da porta e dei uma última olhada no local. Era vazio e solitário, tinha o básico que um homem solteiro precisava para sobreviver. Era diferente da casa de Rick, que tinha porta-retratos e quadros espalhados da família. Ali era só eu e mais ninguém. Talvez quando tudo se resolvesse, fosse a hora de pensar em começar minha própria família, sossegar a bunda com uma mulher só, era exatamente isso que Rick vivia me dizendo. Só que Shane Walsh não era homem de uma mulher só, e eu não queria me casar por casar, eu queria amar! Queria experimentar aquela coisa de se sentir arrebatado, louco pela outra pessoa, saca? Tá bom, você deve ta rindo da minha cara nesse exato momento, e tudo bem, eu entendo você, sério mesmo, e não te julgo. Essa coisa de amar e ser amado não combina comigo, talvez, viver mergulhado na solidão por muito tempo me fez pirar um pouco a cabeça.

Mas, o amor… ele devia ser pra todo mundo, não devia?

Ajeitei minha mala no ombro, apoiei a espingarda Remington 870 no outro e tranquei a porta.

O caminho até a casa da mãe de Lori foi complicado. Era incrível como as coisas podiam sair de controle de uma hora para outra. Quando cheguei ao hospital, as ruas estavam vazias e desertas. Agora? Porra! Era o caos completo. Todo mundo tentando sair da cidade, ninguém respeitando a vez de ninguém, buzinas incessantes ecoavam a todo instante... Sair de King County ia ser uma dor de cabeça.

Liguei o rádio em uma estação qualquer, pegando uma música country pela metade. Ela foi interrompida quase que imediatamente pela voz do locutor: “Atenção, cidadãos. Este é um comunicado oficial do Governo Federal dos Estados Unidos. Devido à atual situação de emergência, foi estabelecido um campo de refugiados na cidade de Atlanta, Geórgia. Este campo oferece abrigo, alimentação e cuidados médicos para todos aqueles que necessitam. Recomendamos que aqueles que estão em áreas de risco se dirijam imediatamente para Atlanta e sigam as instruções das autoridades locais. A estrada para Atlanta está sendo monitorada e, até o momento, é considerada segura. Pedimos que mantenham a calma e sigam os protocolos de segurança. Novas atualizações serão transmitidas em breve.”

Precisava tirar a família de Rick dali. Apesar de não serem nada meus, eu tinha que fazer isso por ele. Se fosse o contrário, tenho certeza de que Richard Dean Grimes agiria da mesma forma.

Estacionei meio de qualquer jeito em frente à casa. O pneu derrapou sobre o asfalto, soltando um incômodo som agudo e estridente. Puxei o freio de mão e abri a porta, pulando para fora de maneira desesperada. No mesmo instante, a porta da casa foi aberta, e Lori correu para me encontrar no meio do caminho gramado do quintal. Enquanto dirigia, liguei para ela pelo celular, ordenando que começassem a arrumar as coisas — roupas, malas, comidas, tudo que fosse preciso para uma viagem longa. Eu não sabia o que nos aguardava e não podia correr o risco de deixar aquela gente passando necessidade.

Lori se jogou em meus braços, me envolvendo pelo pescoço. Fiquei sem reação de imediato, braços abertos no ar, tentando processar aquela situação enquanto encarava Dona Suzi e Carl parados no batente da porta. O garoto segurava seu ursinho de pelúcia — o mesmo que eu dei quando ele nasceu.

— Shane… o que está acontecendo? — Lori perguntou quando se afastou.

— Aquela coisa… aquela doença, chegou na cidade. As pessoas estão enlouquecidas, mordendo, atacando… preciso tirar vocês daqui. — Expliquei. — Já estão prontas?

— Anya está terminando de ajeitar umas comidas enlatadas e sanduíches na cozinha, venha… — Lori me conduziu pelo braço; seus olhos estavam desesperados e cheios de angústia. — Vamos entrar, conversamos melhor lá dentro.

A segui em silêncio, subi os quatro degraus de acesso à entrada e parei no último, me abaixando para conseguir olhar Carl de igual para igual.

— Tio Shane… — Ele começou, a voz baixa e com um tom receoso. — Você estava com o meu pai? Minha mãe disse que você estava…

Inclinei a cabeça para o lado, olhando para cima, trocando um rápido olhar com Lori. Eu tinha dito a ela mais ou menos a situação do hospital, que a energia havia acabado e as máquinas que mantinham Rick vivo foram desligadas, mas não tinha dito que achava que Rick estava morto. Eu nem sabia quais palavras deveria usar.

— É, garotão… Eu estava. — Confirmei com um pesar sufocante no peito, toquei a barra da sua camiseta de panda e ajeitei o tecido antes de tornar a falar. — O tio tentou resolver as coisas…

— Olha, meu amor… eu sinto muito. — Foi Lori quem falou, cortando a minha fala. Ela se abaixou ao meu lado, e eu me levantei, apoiando uma das mãos na cintura e passando a outra pelos cabelos. — Mas, o papai não está mais entre nós… entende?

— Por quê? — Perguntou inocente, vi quando o ursinho que ele segurava foi sutilmente apertado contra si.

— Ele foi morar no céu, querido. — Dona Suzi acrescentou, acariciando os cabelos de Carl com cuidado.

Carl não falou mais nada. Tombou a cabeça de lado e ergueu o rosto para encarar sua avó. Saquei que ele tinha entendido o peso daquelas palavras quando vi seu lábio inferior tremer. Porra! Ver aquele garotinho daquele jeito quebrou coisas dentro de mim que eu nem sabia que existiam. Essa merda de morte era uma coisa foda. Uma criança não devia ter que passar por isso; um garoto tão doce como Carl devia ser imune a viver e sentir essas coisas.

— Ei… — Segurei nos seus ombros e dei uma leve chacoalhada no menino. Ele virou o rosto e me encarou. O ursinho preso embaixo do braço, o olho cheio de lágrima. Caralho, eu era um grande filho da puta por ter que dar aquela notícia. — Seu pai não ia querer te ver triste assim. Sei que é difícil… Cara, é muito difícil… — Suspirei e ri, meio nervoso. Abaixei a cabeça, tentando controlar minhas emoções, a ficha parecendo cair só naquele instante. — Eu tô aqui, entendeu? Carl, eu tô aqui. Sei que não sou seu pai, mas conta comigo.

O menino não disse nada. Uma lágrima solitária caiu dos seus olhos e seu lábio voltou a tremer. Abri os braços, e Carl se jogou no meu colo, me abraçando apertado pelo pescoço. Ele não sabia, mas eu precisava tanto quanto ele daquele abraço. Apertei seu corpo pequeno, me xingando mentalmente por ser o portador daquela notícia pro meu afilhado.

Foi então que um movimento dentro da casa chamou minha atenção. Soltei Carl com cuidado, me coloquei de pé e limpei o rosto do garoto com os dedos antes de apoiar as mãos na cintura. Inclinei o corpo um pouco para o lado, movendo a cabeça e olhando o interior por cima da cabeça de dona Suzi.

Meu olhar cruzou com o dela, e eu senti tudo dentro de mim dar uma balançada. Uma coisa quente cresceu e empurrou a tristeza para o fundo, como se Anya exigisse que toda a minha atenção fosse só dela. Ela estava parada no batente da porta que dava acesso ao corredor até a cozinha, segurando duas latas de comida nas mãos. Seus olhos castanhos, quase negros, estavam fixos em mim. Engoli em seco; uma pressão esquisita se formava no peito, algo que só acontecia quando ela estava por perto. Desci meus olhos pelo seu rosto, pescoço, ombros e braços. Não importava quantas vezes eu visse aquela garota, sempre ia achar suas tatuagens fodas pra caralho.

Diferente das outras vezes em que a vi de calça jeans, sempre de preto ou vermelho, ali ela estava normal: shorts jeans curtos, um cropped branco com uma frase qualquer estampada e, puta que pariu! Quando deslizei os olhos pela sua barriga perfeita, tive que engolir em seco outra vez. Ela tinha um piercing que eu não sabia que existia, o que era óbvio. Precisei de raciocínio rápido para conseguir me desprender dela e do seu corpo cheio de curvas. Sua simples presença me atingiu com força, o que me deixou muito, mas muito alarmado. Forcei-me a focar em Lori, que tocava meu braço e me chamava pela terceira ou quarta vez; eu nem sabia ao certo.

Eu não devia estar olhando pra ela daquele jeito, parecia um maníaco safado do caralho, olhando pra uma menina em meio àquela situação foda que a gente tava vivendo.

Volta pro foco, Shane. Para de ser um merda.

Quando finalmente nos movemos e entramos, Anya deu um pequeno salto no lugar, e Lori se dirigiu à irmã enquanto fechava e trancava a porta da frente.

— Já terminou de guardar as coisas, querida?

— Quase. — Foi tudo que ela disse para a irmã antes de se afastar e sumir pelo corredor.

Às vezes, eu sentia que Anya queria estar em qualquer lugar, menos no meio daquela família; seus olhos pareciam suplicar por ajuda. Ou talvez fosse só maluquice da minha cabeça.

— Mamãe… pode subir com Carl e verificar se todas as nossas malas estão prontas?

— Claro, meu bem… — Dona Suzi confirmou com um sorriso nos lábios, segurou nos pequenos ombros de Carl e o conduziu pela escada, me lançando um olhar antes de começar a subir os degraus. — Com licença, filho…

Apenas acenei em concordância, e a senhora subiu com Carl. O menino estava cabisbaixo, mas enquanto subia os degraus da escada, seus olhos azuis se fixaram em mim, e eu tive muita vontade de chorar. Engoli em seco, e abaixei a cabeça, sem conseguir sustentar o olhar de uma criança.

Lori se virou para mim; ia dizer alguma coisa, pois sua boca se abriu e uma das mãos foi levantada, mas eu a cortei, apoiando as mãos na cintura. Tomando a cabeça de lado, olhei no fundo dos seus olhos, franzindo as sobrancelhas em confusão, e indaguei:

— Por que disse pro garoto que o pai dele tava morto, se eu nem te contei com detalhes o que eu vi lá?

— Olha, Shane… eu só… só queria evitar que as esperanças se prolongassem. Você disse que a energia caiu, e se as máquinas o mantinham vivo, então… — A mulher piscou várias vezes, os olhos ficando vermelhos e cheios de lágrimas. Lori fungou, limpando o nariz nas costas dos dedos.

— Ei… calma, tá legal? — Tentei confortá-la, segurando-a pelos ombros e afagando a região. — Logo vamos estar de volta; o governo vai dar um jeito nessa loucura e tudo vai voltar a ser o que era antes.

— Exceto pelo meu marido… sou viúva agora, Shane… o que vai ser de mim? — Gemeu as palavras, voz chorosa, lágrimas quase transbordando dos seus olhos.

Que merda! Se tinha uma coisa que eu detestava era ver mulher chorando, independente do motivo; me sentia um grande inútil.

— Tô aqui, vou cuidar de vocês. Da sua família. Vou mantê-los a salvo, entendeu?

— Lori! — A voz de Anya ecoou da cozinha.

A Grimes se afastou, limpando os olhos com as pontas dos dedos, secando-os em seguida no vestido florido. Sorriu para mim antes de se afastar. Não sei se devia ter ficado por ali, mas, na dúvida, acabei seguindo-a pelo corredor, sendo outra vez impactado pela presença de Anya assim que meus olhos pousaram nela. Lori adentrou no local até a ilha arredondada no centro, onde uma pequena bagunça de latas e pacotes de biscoitos acontecia. Eu cruzei os braços e me escorei na parede, observando com cautela a interação das irmãs.

— Quer verificar se os lanches do Carl estão corretos? — Anya perguntou, indicando uma bolsa térmica azul sobre a bancada. O ambiente tinha um cheiro gostoso de café recém-preparado; pensei em pedir um pouco, mas não sabia se seria uma boa hora pra querer qualquer coisa.

Lori esticou o braço e puxou a bolsa para si. Quando olhou lá dentro, sua cabeça foi balançada em negação.

— Não, Anya! — Seu tom era de repreensão e autoridade. — Tá tudo errado, irmã! Mandei você embalar os sanduíches no papel filme, não no saco de papel. Se suar e o queijo derreter, vai grudar tudo e virar uma grande bagunça.

Anya fechou os olhos por um segundo, sentindo o peso da crítica, limpou a testa com o dorso da mão e, quando abriu os olhos, deu de ombros.

— Então, por que você não pega e faz você mesma?

— Querida… estou cuidando das coisas. Você está aqui sem fazer nada. Será que pode fazer isso pra mim? Por favor?

Sem dizer nada, Anya retirou lanche por lanche de dentro da bolsa e começou a desempacotar, agora, com movimentos mais bruscos. Seus ombros eretos e as sobrancelhas levemente franzidas me mostraram seu descontentamento com a repreenda da irmã. Talvez, se eu não estivesse ali, Anya não teria ficado calada. Lori sorriu; não sei se foi impressão minha, mas senti um leve desconforto entre elas. O olhar que Anya lançou pra irmã mais velha a mataria se estivesse armado.

— Mãe! — Carl chamou, a voz abafada pela distância dos ambientes.

Lori se virou sem dizer nada e, quando passou por mim e percebeu que eu não a seguia, voltou um passo para trás e me encarou.

— Você não vem?

— Não, vou ficar aqui. Vai lá vê do que o garoto precisa. — Indiquei o corredor com um aceno de cabeça.

Lori virou-se na direção da irmã e, com um dedo em riste, pediu:

— Comporte-se.

E saiu em seguida. O vento que acompanhou o mover do seu corpo cheirava a delicadas flores.

Desencostei da parede e me aproximei da bancada me apoiando no canto da mesma, observando a garota putassa diante de mim, ela tentava organizar tudo, mas quanto mais ela mexia, mais bagunçado parecia ficar, tinha uma frustração, uma tensão em cada movimento dela.

— Porra! Qual é a dessa mulher? Meu Deus… — resmungou, não sei se pra mim ou sozinha.

Seu cheiro doce de chocolate me deu vontade de chegar mais perto, mas me forcei a ficar exatamente onde eu estava.

— Quer ajuda? — Ofereci, mantendo a voz baixa sem tentar forçar muita intimidade.

— Tanto faz... — Deu de ombros, revirando os olhos.

Beleza… pensei comigo mesmo. A garota não queria papo, então não forcei nada que pudesse invadir ou romper o espaço dela. Só comecei a ajudá-la, guardando umas latas de legumes nas caixas, depois biscoitos e sacos de pão, enquanto ela reorganizava os lanches já prontos de Carl. O garoto tinha sorte, porque Anya cuidava dele com tanto zelo, até no jeito de arrumar os lanches. Isso era bonito de ver…

Fizemos tudo em silêncio, mas, diferente de outros silêncios desconfortáveis, aquele tinha um peso. Não era pesado demais, só... denso. Confortável, de um jeito estranho. Eu sabia que estava ali com ela, sabia que estávamos juntos naquele espaço apertado, dividindo o mesmo ar. Cada movimento que ela fazia, eu acompanhava com o canto dos olhos. Porra, era impossível não notar. Anya sempre foi linda, isso nunca foi novidade pra mim. Só que, nos últimos tempos, minha cabeça andava prestando mais atenção a detalhes que antes passavam batido. Como o modo que ela jogava o cabelo para o lado, de um jeito despreocupado, ou como mordia o lábio inferior quando estava irritada ou concentrada, ou só ficava admirando a pintinha que ela tinha acima dos lábios . Meus olhos inevitavelmente eram atraídos por esses detalhes, como se algo me empurrasse na direção dela.

Continuei arrumando as coisas, mas com metade da minha cabeça já longe, vagando em pensamentos sobre ela. Eu não conseguia parar de pensar no quão diferente ela era de Lori. E não falo só da aparência. Anya tinha uma energia diferente, uma coisa mais contida, como se ela carregasse o mundo nos ombros, mas ainda assim conseguia sorrir — um sorriso que raramente mostrava, é verdade, mas quando acontecia, era difícil não ser afetado por ele. Eu sabia que ela estava chateada, dava pra perceber no jeito como os ombros dela se encolhiam enquanto mexia nas bolsas térmicas. Mesmo assim, o silêncio entre a gente não era incômodo.

Eu também não sabia o que dizer. Queria falar algo, mas era como se as palavras ficassem presas na garganta. De vez em quando, ela me olhava de canto, como se estivesse ponderando se valia a pena quebrar o silêncio. E sempre que ela olhava, mesmo que de relance, meu corpo reagia. Era sutil, mas estava ali. Eu sabia.

Tinha alguma coisa nela, e eu não conseguia identificar o que era, mas algo dentro de mim me dizia que eu teria muito tempo pela frente pra tentar decifrar aquela garota.

Foi então que, depois de muito tempo nesse jogo de olhares e silêncios, não aguentei mais. Precisava dizer alguma coisa. Fechei a última caixa, passei a fita transparente e soltei um suspiro.

— Ela é sempre assim?

Anya parou, segurando um sanduíche já embrulhado em papel-filme. Ela colocou o lanche na bolsa térmica com cuidado, como se precisasse de tempo antes de me responder. Quando finalmente se virou para mim, apoiou as mãos na bancada, arqueando uma sobrancelha de forma quase desafiadora.

— Assim como?

— Mandona. — Respondi, direto.

Ela suspirou, deixando escapar um riso curto e amargo, quase debochado. Então, revirou os olhos, balançou a cabeça como quem estava cansada daquele assunto. Finalmente, voltou a me encarar, e dessa vez havia um peso nos olhos dela, algo que me fez pensar duas vezes sobre a relação dela com Lori.

— Você não viu nada.

Aquilo me deixou pensativo. Será que Lori era sempre assim? Eu conhecia Lori há anos, e sim, ela podia ser controladora, mas me perguntei se isso não era só a superfície. Talvez houvesse algo mais profundo que eu simplesmente não via. Algo que Anya carregava sozinha, sem reclamar, sem fazer alarde. O jeito como ela falou, o peso naquelas palavras, me deixou desconfortável. O que mais existia naquela relação que eu não enxergava?

O silêncio voltou, mas dessa vez, tinha uma carga maior. Eu podia sentir que havia muito mais naquela casa, naquela família, do que eu sabia. E, por um momento, pensei em perguntar mais. Talvez estivesse sendo invasivo, mas não conseguia evitar. Anya mexia comigo de um jeito que nunca, nenhuma mulher mexeu. Mas, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela quebrou o silêncio: 

— Sinto muito pelo Rick, ele era seu melhor amigo. — A voz dela saiu baixa, quase um sussurro, mas eu senti o peso que cada letra continha, era o mesmo peso que eu carregava.

Puxei uma respiração profunda travando o maxilar, sentindo o peito apertar, uma pontada dolorosa no coração, abaixei a cabeça, quebrando o contato dos nossos olhos, fitei a pequena bagunça sobre a bancada antes de erguer a cabeça outra vez e olhar para Anya, fixamente em suas íris castanhas.

— Ele era seu cunhado, sinto muito também.

Anya desviou o olhar, passando a mão por cima da fita que já estava perfeitamente colada na caixa de papelão.

— Vou sentir falta dele… às vezes… parecia até que o Rick era mais meu irmão do que a própria Lori.

Não consegui evitar, me aproximei parando nem de frente para ela, tive vontade de tocar seu cabelo, colocar uma mecha atrás da orelha, mas me segurei… porra… como me segurei, seu cheiro de chocolate era ainda mais forte e mais gostoso de perto. Apenas busquei seus olhos com os meus, e os sustentei, indagando:

— Por que?

Antes que ela pudesse responder, ouvimos batidas fortes na porta da frente, como se alguém estivesse desesperado. O som das batidas, ou socos, preenchia a casa toda, cortando o ar até nós como uma faca afiada. Nos entreolhamos rapidamente, e ela saiu primeiro da cozinha; eu fui logo atrás. E foi aí que as coisas começaram a virar uma grande merda…

Anya abriu a porta da frente e, por um segundo, parecia tudo normal. Mas, antes mesmo que ela pudesse abrir por completo, uma daquelas pessoas doentes avançou contra a abertura. Quase derrubando Anya para trás, a coisa veio com tudo, aqueles rosnados inconfundíveis, os mesmos que tinha ouvido no hospital mais cedo, os dentes desesperados tentando morder qualquer coisa à frente. Tentando morder Anya!

Meu corpo reagiu antes que eu pudesse pensar. Em um movimento rápido e desesperado, puxei Anya para trás de mim. Estava tão nervoso que não medi minha força e acabei jogando Anya contra a parede com um pouco de violência. Assisti seu corpo bater contra a superfície, mas não tinha tempo para parar, não tinha tempo para pensar.

Me coloquei entre ela e a coisa que tinha os olhos esbranquiçados, segurando-a pelos ombros, enquanto suas mãos tentavam me alcançar e sua cabeça se movia, tentando morder meus braços. A boca nojenta, cheia de saliva, tentava alcançar minha pele.

Ouvi gritos em pavor, olhei de relance para o alto da escada e vi Suzi, Lori e Carl parados no topo, gritando como se o mundo estivesse acabando, o que, na verdade, já tinha acontecido, mas não era hora para pensar nisso. Eu precisava agir logo, ou aquilo acabaria me mordendo. Mas o que eu faria? Nunca tinha matado ninguém. Em toda a minha carreira como policial e depois como ajudante de xerife, eu tinha disparado minha arma apenas cinco vezes, e nenhuma delas foi um tiro fatal. Mas ali, no centro daquele hall de entrada, eu teria de decidir. Era matar ou morrer, e, bem… morrer agora não era uma opção.

O infectado era mais forte do que eu esperava. Quase me derrubou; segurar aquele desgraçado com uma mão só enquanto tentava desesperadamente sacar a arma na cintura com a outra foi um esforço do caralho. Eu precisava de mais força, de espaço, mas não conseguia segurar o doente e pegar a arma ao mesmo tempo.

A coisa rosnava. Encarei seu rosto e, então, seus olhos, que, ao mesmo tempo que pareciam perdidos em um vazio sem fim, também pareciam transbordar em puro ódio. Sua boca abria e fechava, os dentes batendo rápido; gotas de saliva acertavam meu rosto, e fios da própria baba se formavam nos lábios que abriam e fechavam. A pressão do corpo dele sobre o meu me forçava a ir para trás aos poucos, e, quando dei por mim, minhas costas batiam na parede ao lado de Anya, que seguia olhando tudo paralisada, com os olhos arregalados e a respiração afoita.

Consegui sacar o revólver, destravei a arma usando o polegar e mirei em uma região qualquer do corpo. Eu ia matar alguém, ia matar uma pessoa!

Apertei o gatilho, e o som seco do disparo se amplificou no ambiente apertado, fazendo as paredes tremerem. O projétil atravessou o abdômen do infectado, mas ele não caiu; sua ânsia em me alcançar parecia ainda maior, e a raiva parecia ainda mais intensa. Porra! Que caralho aquela coisa era? A doença fazia as pessoas virarem um tipo de mutante? Olhei de canto de olho para o meu lado, e Anya tinha desaparecido. Agradeci a Deus por alguns segundos por ela ter finalmente saído do transe e fugido dali.

Atirei outra vez, e uma terceira, e uma quarta. Mas a coisa continuava em pé, ignorando totalmente os quatro tiros que eu tinha dado no peito. Merda, merda, merda! Por que essa desgraça não morre?

Mas então Anya reapareceu no meu campo de visão como uma bala; ela segurava uma simples faca de cortar pão nas mãos e, sem hesitar, fincou a lâmina no crânio infectado, bem no topo da cabeça, enterrando a faca até o cabo. A coisa soltou um último rosnado estrangulado e seus braços perderam as forças antes de finalmente desabar aos nossos pés, deixando o silêncio embalar a sala outra vez.

Nossas respirações estavam pesadas, e era o único som audível no ambiente. Virei-me para ela, olhando-a de cima a baixo, segurei seus braços, sentindo o quanto sua pele estava quente, meus olhos correndo por todo o seu corpo.

— Você está bem? Ele te machucou? — perguntei, o medo ainda pulsando nas minhas veias.

Anya fez o mesmo comigo; seus olhos vasculharam meus ombros, meu peito, meu rosto, suas mãos tocando minha pele como se precisassem se certificar.

— Estou bem, e você? — Sua voz era firme, mas eu podia sentir o tremor dos seus dedos enquanto me tocava. As palmas estavam suadas e quentes.

Apenas balancei a cabeça em um "sim", ainda sem conseguir falar, tentando processar a porra toda que tinha acabado de acontecer. Anya estava viva, eu estava vivo. A família do Rick estava a salvo; isso era tudo que importava. Eu a puxei para um abraço, o corpo dela quente e trêmulo contra o meu. Suas mãos foram em minhas costas e senti quando os dedos agarraram forte em minha camisa. E, por um segundo, o caos lá fora e ali dentro pareceu se dissipar. Segurei-a com força, sentindo o coração dela bater tão rápido quanto o meu.

Bom… acredito que você deve estar imaginando o que vem pela frente, certo? Se fosse uma série de TV ou um filme de terror, teria uma música sinistra por trás, a câmera focaria em nossos rostos e aí a cena seria cortada. Mas aqui? Aqui a realidade é um pouco mais crua, e como você sabe… era só o começo da merda toda; ainda tinha muito mais.

🌶🍫《▪︎ Primeiro capítulo e um pov bem gostosinho do Shanix pra vocês. Falar que amei escrever ele... pqp... Shane, Shane... não mexa comigoooooo.

🌶🍫《▪︎ Espero que tenham gostado, não esqueçam dos coments e das estrelinhas.

🌶🍫《▪︎ O início de tudo que eles não sabiam com o tavam lidando é tão... gostosinho... nossa 🫦

beijos, da mama Hana.

❤️

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