☆《CROSSED DESTINIES》☆
☆《▪︎ Anya Bennett ▪︎》☆
O silêncio no carro só era quebrado pelos soluços baixinhos de Carl e pelo motor do automóvel. Não eram aqueles silêncios gostosos, que deixam sua mente pensar em paz. Era uma coisa pesada, sufocante, que esmagava e mostrava o quanto não éramos absolutamente nada. Apertava o peito como um torno. O sangue de um Grimes nas minhas mãos, braços e roupa começava a secar e a grudar na pele; a sensação de repuxamento era ruim e estava me deixando agoniada. Eu precisava de um banho, precisava tirar aquela coisa de mim. O cheiro de metal estava impregnado em minhas narinas e começava a ficar no carro também.
Eu tinha que acordar daquele pesadelo. Apenas acorde, Anya!
Matar aquela coisa… aquela pessoa doente… tinha mexido com camadas dentro de mim que eu nem sabia que estavam ali dentro do meu corpo, mas eu não tinha tempo de organizar ou sentir qualquer coisa agora. Meus problemas e questões podiam esperar, porque Carl, no meu colo, chorava com o rosto enterrado em meu peito e agarrado ao seu ursinho de pelúcia, e Amélia, que encarava o horizonte através do vidro, precisavam de mim. E, por eles dois, eu seguraria um mundo inteiro sozinha e os meus próprios sentimentos que se fodessem.
Como se não bastasse para Carl perder o pai e para Amélia perder o irmão… tivemos de assistir à horrenda morte dos pais da minha amiga e avós do meu sobrinho.
Shane e Lori queriam seguir direto pela rodovia, saindo de King County o mais rápido possível. A cidade estava um caos; conseguir sair do nosso bairro já foi um sacrifício e tanto. A loucura parecia ter atingido todas as pessoas, ricas ou pobres, e elas gritavam desesperadas nas ruas, enquanto assistiam àquelas coisas comendo seus familiares. Eu só tinha visto na TV até então, e com aquele borrão na imagem.
Mas, naquele dia em questão, eu vi de perto… um cara abriu a barriga do outro com as próprias mãos, puxando as tripas e outros órgãos para fora, comendo-os como se aquilo fosse algo normal, como se fosse o único alimento. Enquanto o sangue escorria pela calçada e caía na guia, os gritos da vítima se afogavam no próprio fluido que também vazava pela sua boca. Aquela imagem ficaria na minha cabeça para sempre, me assombraria pelo resto da minha vida — como um relógio parado, sempre me lembrando daquele momento exato em que tudo mudou.
QUE MERDA TAVA ACONTECENDO COM A HUMANIDADE?
Eu não concordei com Shane e Lori; queria passar na casa de Amélia, esperar por ela e pelos seus pais, que já eram senhores de idade. Era o certo a se fazer, era o mínimo que minha irmã devia ter pensado: cuidar dos seus sogros, já que Rick não estava mais aqui. Ela não era o exemplo de esposa e nora, de mulher a ser seguida? Mas não ali; ali ela tava pensando somente no próprio rabo.
Fiquei ainda com mais ódio de Shane por perceber que ele estava pensando como a chata da minha irmã. Eram os pais do melhor amigo dele; era da Amélia que a gente tava falando, eu não podia deixá-los para trás. Foi de tanto bater de frente com eles e dizer a Shane que iria sozinha e andando até a casa da minha amiga que, com um revirar de olhos e um cantar de pneus, Shane desviou o trajeto.
E se não tivéssemos chegado a tempo, suspeito que Amélia também estaria morta. Os gritos da senhora Grimes, que segurava a mão do esposo, puxando-o para si na tentativa de livrá-lo da boca maldita daquele maluco desgraçado, ainda rodavam como uma sinfonia do terror dentro dos meus ouvidos. Ela e Amélia tentaram salvá-lo, mas foi em vão, porque logo os gritos atraíam mais daquelas pessoas. Se não fosse por mim e por Shane descendo do carro para ajudá-la, eu estaria chorando a morte da minha amiga também.
Enquanto o carro avançava devagar, parando vez ou outra, fitei Lori e Shane, extremamente quietos no banco da frente, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Não vi Lori derramar uma única lágrima em relação à perda do marido. Até eu, que não era nada mais que uma simples cunhada, tive vontade de chorar. Eu gostava do Rickão; ele era legal e cuidava de mim como um irmão mais velho, como a minha irmã deveria fazer. Por um segundo, desejei que fosse Lori no lugar de Rick; seria uma perda menos dolorosa. Mas, tão logo pensei nisso, tratei de afastar aqueles pensamentos cruéis da minha mente. Não era justo pensar tal coisa, era?
Minha mãe estava muito quieta, sentada ao meu lado esquerdo, com os olhos arregalados e parecia sempre em alerta, mergulhada em um medo que a deixou até sem palavras — o que, modéstia à parte, era ótimo; tudo que eu não precisava em um momento como aquele era a dona Suzi enchendo minha paciência e colocando fim a ela. Amélia, por sua vez, tinha a cabeça escorada no vidro, assistindo às árvores e aos demais carros passando lentamente do lado de fora. Seus olhos estavam vermelhos e marejados, e eu sabia que ela não conseguia escapar das imagens que tínhamos acabado de presenciar, que ela estava presa naquele momento macabro. Eu queria gritar por ela e por Carl. Queria arrancar aquela dor deles dois, mas o que eu podia fazer, além de tentar mantê-los vivos?
— Vai dar certo… — sussurrei, mesmo sem acreditar de verdade. Inclinei a cabeça para encontrar os olhos da minha amiga. Ela me olhou e piscou, enquanto uma lágrima escapava, deslizando por sua bochecha. Pensei em limpá-la, mas meus dedos ainda estavam sujos com o sangue da mãe dela.
— Eu… eu não sei o que fazer, amiga… O que vai ser de mim agora? — murmurou Amélia, a voz embargada e cada vez mais fraca.
Segurei sua mão, apertando-a com força. O sangue seco na minha pele marcou a dela.
— Não há nada que possamos fazer agora, Méli. Sobreviver é tudo que importa. O resto a gente descobre depois. Eu… eu sinto muito por Rick e pelos seus pais. Estou aqui com você, tá? Conta comigo.
Amélia forçou um sorriso, fungando o nariz. Ela balançou a cabeça em um "sim" tímido, limpando as lágrimas novas que insistiam em cair. Senti Carl se encolher mais contra o meu corpo. Olhei para meu sobrinho, seus olhos ainda brilhavam de tanto chorar.
— Ei, Carluco… — murmurei, acariciando os fios escuros do seu cabelo antes de deixar um beijo no topo da sua cabeça. — A tia vai cuidar de você também, tá? Logo tudo isso vai passar, e a gente vai voltar pra casa, combinado?
Carl apenas balançou a cabeça, em silêncio. Ele parecia completamente traumatizado.
Eu queria ter palavras melhores, algo que pudesse apagar tudo que aquele garotinho nos meus braços havia visto. Mas o que eu poderia dizer? Nem eu conseguia esquecer o som da carne sendo rasgada, os gritos dos avós dele ou os rosnados daquela coisa que invadiu nossa casa. Pela segunda vez na minha vida, eu estava com medo de verdade. A primeira foi quando meu pai morreu. Por um instante, agradeci por ele não estar vivo para ver tudo isso acontecer.
Ficamos abraçados novamente, envolvidos por um silêncio triste. Mas, de repente, a voz de Lori atravessou o carro como uma faca cega, com um corte torturante e errôneo. Quase revirei os olhos, mas apenas a encarei pelo retrovisor.
— Anya!
— Sim?
— Sua mão.
— O que tem minha mão?
— Está suja de sangue, e você está com ela nos cabelos de Carl.
— Nossa! Sério? — Estreitei os olhos, apertando as sobrancelhas, mas segui com a mão exatamente onde estava, fazendo carinho nos fios de cabelo do meu sobrinho. — Nem percebi…
— Irmã, vai sujar.
Fechei os olhos por um segundo antes de responder. Contar até três nunca funcionou comigo. Talvez até cem começasse a ajudar…
— Por que não veio você aqui atrás então? Pra cuidar do seu filho, acalmá-lo? É o que estou fazendo, me desculpe se minhas mãos estão sujas… É porque eu precisei salvar minha amiga e tentei salvar seus sogros enquanto você ficava aí, segura dentro do carro. — Falei, tentando conter minha raiva.
— Eu… eu… — Minha irmã começou a gaguejar, quebrando nosso contato visual. Baixou os olhos para as mãos que estavam sobre as coxas e começou a agitá-las, visivelmente alterada. Era sério isso? Sério que Lori ia fazer uma cena? — Eu estava abalada, tá! Por isso não consegui ajudar. Ver meus sogros ali e a notícia do Rick… eu… eu… me travei!
A voz grossa de Shane reverberou pelo carro apertado pela primeira vez desde que tínhamos lutado juntos com aqueles infectados. O policial seguia muito quieto, compenetrado na estrada, como se tivesse se perdido em si próprio depois de toda a merda que vivemos. Uma mancha vermelha em seu rosto era o mesmo sangue que me sujava. Sua roupa também estava manchada; tínhamos lutado lado a lado pelos pais dos nossos melhores amigos.
— Lori… Calma.
— Olha… pelo amor de Deus! — resmunguei, olhando em volta pelas janelas.
— Anya, por favor! — minha mãe chamou minha atenção, mas fingi que ela nem estava ali, ou acabaria mandando todo mundo tomar bem no centro do orifício anal.
O carro desacelerou até parar de vez, e o ronco do motor morreu. Quando olhei para frente, vi o motivo: uma fila interminável de carros, com pessoas começando a sair como se tivessem desistido de esperar. Eu também tinha desistido, ou era só porque não suportaria dividir mais o mesmo ar com Lori um segundo que fosse.
Sua presença era quase tóxica para a minha existência.
— Quer dar uma andada, Amélia? Esticar as pernas?
— Sim… — minha amiga fungou. — Eu quero.
— Não saiam do carro! — Shane bradou do banco da frente, virando-se sobre o assento a tempo de ver Amélia escorregar para fora.
Ajeitei Carl no banco ao lado da minha mãe, que me olhou com sua cara costumeira de repreensão e, então, puxou o neto para si. Praticamente revirei os olhos e tombei a cabeça para frente para observar o Walsh, que me fitava intensamente; certeza de que seu olhar teria me sacudido pelos ombros se tivesse mãos.
— Sinto muito, Shane… mas olha só... — Retruquei com um sorriso satisfeito no rosto quando me pus de pé do lado de fora do carro. — Eu já saí! Tarde demais… — Bati a porta e pude jurar que ouvi Shane bufar.
O calor da tarde e o cheiro de gasolina recém queimada pelos motores dos múltiplos carros parados ao nosso redor tomaram conta dos meus sentidos assim que enchi os pulmões com o ar ali de fora. O falatório alto, misturado ao som das buzinas, formava uma sinfonia ensurdecedora que chegava a doer os ouvidos. Pessoas passavam apressadas, trombando umas nas outras; o desespero e a confusão eram evidentes em cada rosto que eu via. Mais à frente, duas famílias discutiam alto, trocando insultos enquanto brigavam para decidir quem arcaria com o prejuízo da batida de seus carros. Tudo era uma loucura completa. Dei alguns passos ao lado de Amélia, tentando ajustar nossos corpos àquele caos.
Ouvi Shane chamar meu nome com a mesma intensidade de antes. Virei a cabeça e o vi sair do carro, caminhando em minha direção com passos rápidos e determinados. Ele estava claramente irritado: o maxilar travado e os olhos cravados em mim, como se eu fosse algum tipo de desafio. Quando parou à minha frente, seu corpo ficou tão perto que quase tocava o meu. Por um segundo, senti um arrepio percorrer minha espinha.
— Pedi pra ficar no carro, não pedi? — perguntou, a voz baixa, desafiadora. Seu tom quase me rasgou em duas.
Apertei os olhos e ergui o queixo. Eu não ia ceder. Não ia voltar para aquela droga de carro, pelo menos não agora. Lori me desestabilizava, e eu precisava fugir. Já tinha entendido seu joguinho: ela mexia comigo, eu surtava, e automaticamente me tornava a errada da história.
— É, pediu sim… Mas se eu ficar mais um segundo no mesmo ambiente que Lori, eu vou acabar perdendo meu réu primário… Senhor policial — respondi, deixando a ironia escorrer pelas palavras.
Shane respirou fundo, esfregou as mãos pelo rosto e depois as apoiou na cintura, sustentando o peso do corpo com uma perna só. A luz alaranjada do sol da tarde batendo nele o deixava com uma aura ainda mais sensual, mais bonito, mais másculo… Minha nossa, olhando bem pra ele... Quando foi que esse maldito ficou tão gostoso? Minha boca chegou a encher de água.
Que? Para de ser doída, Anya, e ficar se perdendo em devaneios infundados. Foco... Apenas mantenha o foco!
Ele me olhou diretamente nos olhos, tão intenso e tão profundo que eu quase fraquejei. Era aquele tipo de olhar que fazia parecer que ele estava tentando decifrar alguma coisa em mim.
— Qual o problema com vocês duas?
— Nenhum… — Dei de ombros. — Afinal, ela é perfeita, né? Pelo visto, você também a vê assim…
Fiz menção de me virar e sair andando, mas senti a mão dele no meu braço. Era um toque firme, mas não agressivo. Ele segurou com cuidado, como se não quisesse me machucar, mas, ao mesmo tempo, deixasse claro que não me deixaria sair assim. Seus dedos queimaram a minha pele, como o toque de uma chama viva que não só aquece, mas consome.
— Ei! Eu não vejo e não acho nada, tá legal? — disse, me encarando de perto. A seriedade no tom da sua voz me fez hesitar. — Só tô preocupado com você, tentando manter todo mundo seguro, junto. As pessoas…
Shane olhou ao redor, como se examinasse se havia alguém prestando atenção na nossa conversa. Então, inclinou-se para mais perto, e eu senti sua respiração quente resvalar na minha pele. Todos os pelos do meu corpo se eriçaram.
— Elas não são confiáveis.
Por um instante, não consegui responder. Meu coração acelerou, e, quando percebi, meus olhos estavam fixos na sua boca. Nos lábios carnudos que ele mordia levemente enquanto esperava uma resposta. Shane percebeu, porque seu olhar vacilou e também parou nos meus lábios por um segundo longo demais.
— No momento, eu não confio em mim mesma — falei, em um tom baixo, quase sussurrando.
Havia algo entre nós, silencioso e opressor, impossível de nomear, mas poderoso. Eu sentia isso ganhar espaço, tomar proporções cada vez maiores sempre que aquele maldito policial ficava perto demais. Foi assim na cozinha da minha casa, enquanto arrumava nossas comidas, e estava acontecendo de novo. Como se uma força invisível e muito idiota me puxasse para ele, tive vontade de tocar seus braços, de sentir o músculo duro do bíceps sob meus dedos. A palma da minha mão chegou a formigar de tanto desejo. Mas me segurei… EU TINHA DE ME SEGURAR.
Como se percebesse o que estava acontecendo, Shane deu um passo para trás, quebrando o momento, mas manteve o olhar fixo no meu, como se quisesse dizer algo e não conseguisse encontrar as palavras. Ele sorriu de lado, daquele jeito sacana, e abaixou a cabeça em seguida, esfregando a nuca com uma das mãos. Uma coisa quente se espalhou por todo o meu corpo, e, sem explicação, eu quis ficar ali, bem perto daquele homem. Mas não fiquei. Respirei fundo e me virei antes que o silêncio se prolongasse, começando a me afastar. Quanto mais longe de Shane Walsh eu ficasse, mais segura eu estava.
— Não vão muito longe! — ele gritou atrás de mim, preocupado.
— Tá bom, senhor policial! — respondi por cima do ombro, sem olhar para ele.
Caminhei até Amélia, que estava a poucos passos à frente. Meu coração ainda estava acelerado, mas não era o momento de pensar nisso. Havia coisas piores acontecendo, coisas que podiam realmente nos matar.
O caos reinava à nossa volta. Vozes se erguiam em discussões, pessoas iam e vinham entre os carros como se corressem contra o tempo. Quando alcancei minha amiga, segurei sua mão e entrelacei nossos dedos. Não era algo comum entre nós, mas, naquele momento, parecia o único gesto capaz de dizer que ainda estávamos ali. Juntas. Inteiras. E que, enquanto estivéssemos assim, talvez pudéssemos sobreviver.
Passamos a andar juntas por entre os veículos, cruzando com todo tipo de pessoa: algumas sorriam, educadas, até gentis. Outras lançavam olhares duros, daqueles que faziam você se sentir desconfortável só por existir.
O mundo lá fora era um inferno quente e desordenado, mas, de um jeito estranho, eu preferia assim. Pelo menos ali ninguém esperava que eu fosse perfeita, e eu não precisava aturar a Lori.
☆《▪︎▪︎▪︎》☆
Já estávamos andando entre os carros havia pelo menos uns vinte minutos, mas o caos continuava o mesmo por toda a rodovia. As buzinas não cessavam, como se ficar apertando aquela porcaria fosse abrir milagrosamente um caminho por entre o mar de veículos à nossa frente.
As pessoas estavam no limite. O calor sufocante da tarde tornava tudo ainda pior, com o ar pesado e os mosquitos voando incessantemente ao nosso redor. Se vacilássemos, aquelas merdinhas entrariam na boca ou no nariz. O sol estava prestes a se pôr, mas a temperatura permanecia alta, como se o mundo tivesse decidido nos sufocar mais um pouco antes de apagar as luzes.
Amélia caminhava ao meu lado, como uma sombra. O rosto pálido, os olhos vagos, analisando tudo ao redor. O medo e a tristeza dela eram quase palpáveis, pesados no ar, mas minha amiga ainda mantinha o que restava de postura. Mesmo assim, os ombros caídos e os olhos avermelhados denunciavam o que ela estava sentindo.
Amélia tinha me salvado tantas vezes dos meus próprios problemas insignificantes. Eu só queria poder retribuir agora, de alguma forma.
— Sabe o que é mais difícil? — perguntou de repente, quebrando o longo silêncio entre nós. Sua voz saiu baixa, enquanto ela mantinha os olhos fixos no chão.
Virei o rosto para ela, diminuindo o passo.
— O quê?
Ela respirou fundo antes de continuar. Quando finalmente ergueu o olhar, havia uma dor crua nas suas íris.
— Não ter um enterro. Não ter um corpo pra se despedir. — Sua voz tremeu, quebrada. Cada palavra parecia carregada de indignação e frustração. Eu entendia. Perder quem amamos já é insuportável. Não poder se despedir devia tornar tudo mil vezes pior. — Dá a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, eu ainda vou vê-los. Que o Rick vai aparecer com meus pais no carro a qualquer momento. E isso… — Ela fez uma pausa, fechando os olhos com tanta força que parecia tentar conter algo insuportavelmente doloroso. — Isso mata, amiga. Isso corrói.
As palavras dela me atingiram como o golpe de uma marreta. Ver Amélia sofrer assim era devastador. Eu queria desesperadamente dizer algo que a confortasse, mas as palavras não vinham. Eu, que tinha enterrado meu pai recentemente, sabia bem como era essa sensação de esperar vê-lo em uma esquina qualquer. Mas para Amélia, que nem sequer tinha tido a chance de se despedir, aquilo devia ser um peso insuportável.
Parei no lugar e fiz Amélia parar também. Puxei-a para um abraço apertado, sentindo seus ombros tremerem contra mim. Apertei mais forte, como se pudesse protegê-la de tudo aquilo.
— Ô, amiga… Eu queria tanto poder tirar essa dor de você.
Ela se afastou devagar, forçando um sorriso enquanto limpava o rosto com a costa das mãos.
— Só de saber que posso contar com você, já ajuda muito.
Eu admirava Amélia mais do que conseguia expressar. Ela não tinha medo de falar dos próprios sentimentos, de admitir suas dores. Sempre foi assim, aberta, vulnerável de um jeito bonito e raro. Eu, por outro lado, era um livro fechado, trancado e cheio de páginas rasgadas. Talvez fosse isso que me fazia querer tanto ser como ela. Ou talvez fosse a família dela. A forma como Rick e os pais a tratavam era o oposto da minha experiência. Enquanto Amélia era calmaria, eu era tempestade. Ela era doce como açúcar, e eu… bem, eu era azeda como limão.
E talvez fosse exatamente essa diferença que nos tornava melhores amigas. Uma completava a outra.
Foi então que avistei Shane. Ele estava mais à frente, desviando das pessoas e dos carros com passos firmes e um olhar atento. Ele parecia tão seguro de si, tão focado, que quase dava a impressão de saber exatamente o que estava fazendo. Mas eu sabia a verdade. Shane estava tão perdido quanto qualquer um de nós.
Quando ele me viu, parou por um instante. O olhar fixo no meu, como se quisesse me dizer algo sem nem precisar abrir a boca. E lá estava de novo, aquela coisa entre nós, crescendo. Uma força insistente, tomando conta de mim, toda vez que Shane Walsh estava por perto.
Amélia percebeu. Limpou os olhos mais uma vez, soltou um suspiro e, com um sorriso sutil, bateu de leve o ombro no meu.
— Acho que o Shane gosta de você.
Desviei o olhar de Shane e encarei Amélia, arqueando uma sobrancelha.
— Legal, eu também gosto dele. É um cara bacana.
Amélia bufou, cruzando os braços e revirando os olhos, como se o que acabara de dizer fosse tão óbvio que só eu ainda não tinha notado.
— Não, amiga. Digo gostar… homem e mulher… sexo, pegação…
— Quê? — Soltei uma risada baixa, incrédula. — Tá maluca? Shane não faz o tipo que ficaria com garotas como eu.
Ela me lançou aquele olhar de lado, o famoso olhar "Grimes", o mesmo que Rick dava quando queria provar um ponto sem precisar dizer nada. Era um olhar desafiador, como se Amélia conseguisse enxergar em mim algo que eu mesma não queria ou não podia admitir.
— E você? Ficaria com ele?
Abri a boca para responder, mas hesitei. Lancei um olhar rápido na direção de Shane, que agora estava conversando com um senhor de chapéu de pescador e duas mulheres loiras. A mais velha sorria para ele, claramente encantada, enquanto ele, com as mãos na cintura, parecia explicar algo. Estava de costas para mim, então não dava para saber se ele sorria de volta, mas…
A aparência daquele homem, somada ao uniforme que abraçava seus músculos de forma quase indecente, devia abrir não apenas portas, mas também algumas pernas.
Tive vontade de revirar os olhos com meus próprios pensamentos, mas respirei fundo. Um gosto amargo invadiu minha boca e desceu queimando pela garganta.
Que merda é essa?
— Em!! Anoca… ficaria com ele? — Amélia insistiu, a voz doce, mas tinha um tom travesso.
— Claro que não! — respondi rápido, tentando soar firme.
— Tá bom… e eu sou o Batman.
— E eu o Lobo Mau da Chapeuzinho Vermelho.
Amélia riu, balançando a cabeça em negação. Eu era péssima com piadas, e meu humor para essas coisas era praticamente nulo. Ainda assim, pelo menos consegui arrancar uma risada dela.
— Já não fui com a cara dela, sabia? — Amélia comentou, cruzando os braços e apontando com o queixo na direção de Shane.
O senhor de chapéu tinha desaparecido dentro do trailer, acompanhado pela loira mais nova, enquanto Shane continuava conversando com a mais velha. Ele gesticulava com uma das mãos na direção do nosso carro, provavelmente explicando algo.
— Também não… — resmunguei, cruzando os braços enquanto nos escorávamos em um carro. Do outro lado da rodovia, Shane e a loira pareciam presos em um teatrinho patético. — Aposto que ela nem tá ouvindo o que ele tá dizendo. Olha o jeito que ela olha pra ele… Tá escrito na testa dela: “ME COME, SENHOR POLICIAL.”
Fiz uma voz fina e uma careta exagerada, imitando a loira que parecia prestes a se jogar nos braços de Shane ou fingir um desmaio só para ele segurá-la. Amélia soltou uma risada curta, mas logo parou, talvez temendo que alguém ouvisse.
— Será que dá pra vocês tirarem seus traseiros da minha caminhonete?
A voz rouca e arrastada cortou o som ambiente como uma faca.
Viramos ao mesmo tempo, como se sincronizadas, e demos de cara com o dono da voz. Ele estava parado entre a porta aberta e a lataria de uma picape velha, nos encarando com olhos azuis faiscantes de irritação. Todo o corpo dele parecia tenso, como se carregar raiva fosse sua atividade favorita.
Ele olhou brevemente para mim antes de cravar a atenção em Amélia, com uma intensidade que beirava o desconforto.
— Isso aqui é sua caminhonete? — Perguntei, arqueando uma sobrancelha enquanto examinava a carcaça atrás de mim. Se aquilo ainda andava, era um milagre. A lataria azul estava mais enferrujada que uma lata esquecida no fundo do mar. Continuei, apoiando a mão na lataria quente. — Poxa, desculpa aí. Só achei que tava abandonada, sabe? Igual o dono.
Amélia deu uma risada anasalada, abafada, mas o suficiente para o homem franzir ainda mais o rosto. Se ele já parecia irritado antes, agora fervilhava. Era quase divertido. Quase.
— Anda, sai fora! — Ele insistiu, jogando uma das mãos no ar, impaciente.
— Ei, Darylzinho! — Outra voz, mais descontraída e com um tom provocador, soou logo atrás.
Outro homem surgiu ao lado dele, claramente mais velho, com um sorriso que parecia preso no rosto. Diferente do primeiro, ele exalava despreocupação. Passou o braço por cima do ombro do outro e o puxou para perto, ignorando completamente a expressão de quem não estava nem um pouco no clima.
— Achou diversão e nem me chamou? — Perguntou, rindo alto.
Ele deu uma tragada longa no cigarro que segurava entre os dedos, e logo o cheiro de maconha preencheu o ar. Era inconfundível.
Droga.
Eu estava sem nada havia dias. Semanas, talvez. Tudo aconteceu tão rápido que nem tive chance de passar no beco para pegar mais. Pedir isso para Shane? Fora de questão. Meu estoque tinha acabado, assim como qualquer esperança de escapar por alguns instantes dessa realidade miserável. Mas aquele aroma...
Ah, aquele aroma.
Podia reconhecê-lo em qualquer lugar, mesmo no meio de uma multidão. Ele invadiu minhas narinas como uma memória agridoce, acendendo uma necessidade quase desesperadora. Minhas mãos ficaram suadas, o coração acelerou, e uma coceira interna zombava da minha incapacidade de aliviá-la. Eu precisava de um trago. Só um traguinho.
— Isso é maconha, né? — Amélia perguntou, apontando para o cigarro com um gesto despreocupado.
— É, sim — respondeu o mais velho, apoiando o polegar no cinto da calça, com um sorriso fácil e inclinando o quadril na nossa direção. — Quer um trago, gracinha?
Minha boca ficou seca.
Amélia respondeu:
— Eu quero.
Antes que eu pudesse reagir, Amélia já estava se inclinando sobre a caminhonete para pegar o cigarro da mão dele.
Enquanto isso, o outro, o mal-humorado, com a cara fechada e os olhos que pareciam nunca ter conhecido um sorriso, apenas observava em silêncio. O olhar dele, afiado como uma lâmina, me julgava sem sequer dizer uma palavra.
— Como eu faço? — Amélia perguntou, encarando o baseado. Ela lançou-me um olhar, um pedido silencioso de aprovação e talvez de socorro.
Eu engoli seco. O coração disparou mais rápido, e a boca, completamente seca, só fazia a vontade crescer, mais intensa, mais desesperada. Parte de mim sabia que não devia, mas outra… Ah, a outra só queria o alívio. Mesmo que fosse apenas por um momento.
— Não devia fazer isso, Amélia. — Tentei advertir, mais por mim mesma do que por ela. — Quantas vezes te ofereci antes? Nunca quis. Não é sua praia, lembra?
— Amiga… — Ela desviou os olhos de mim, a voz trêmula, hesitou por um instante, mas então soltou uma respiração pesada e negou com a cabeça. — Que se foda. Todo mundo que eu tinha medo de decepcionar está morto. Eu sempre quis ser mais como você, acho que chegou a hora.
As palavras dela caíram em mim como pedras. Eu sabia que ela estava tentando se encontrar em um mundo que não fazia sentido mais, mas aquilo… Aquilo pesou mais do que qualquer coisa. Eu era o exemplo dela? Quase ri da ironia.
— Então, é só botar na boca e tragar?
Eu vi a brecha. Com um movimento rápido, peguei o baseado de sua mão, apertando o papel fino com dedos que já tremiam. Tentei manter a voz firme, mas algo dentro de mim já havia vacilado.
— Não é tão simples. Você precisa tragar forte, como se estivesse respirando pela boca. Vai encher os pulmões com a fumaça e segurar o máximo que conseguir. Assim, a brisa vai ser maior e vai durar mais. Tipo isso…
Levei o cigarro até os lábios e fiz exatamente o que disse. A fumaça queimou minha garganta de forma familiar, e um alívio imediato se espalhou pelo meu corpo. Estendi o cigarro para Amélia, que tentou imitar meu gesto, mas logo tossiu violentamente, soltando a fumaça em surtos entrecortados.
Observei ela devolver o cigarro para o homem e fiquei quieta na minha. A fumaça ficou presa por mais alguns segundos, enquanto uma leveza tomava conta de mim, como se meus braços e pernas fossem feitos de algodão. Era isso. O caos ao meu redor se apagou, os gritos, as buzinas, o peso da culpa… Nada mais importava. Só o silêncio confortável dentro de mim.
Quando senti que não conseguia mais segurar, virei o rosto de lado e soltei a fumaça bem devagar, com um gesto quase ensaiado, que eu já tinha feito várias vezes. O homem calvo riu alto, batendo na lataria do carro como se tivesse assistido a um espetáculo.
— É isso aí, garota! — Ele gargalhou, parecendo genuinamente feliz por me ver fumar. — Eita, que essa princesa tem pulmões de ferro! Não acha, Darlynda? — O mais velho praticamente enforcou o outro com o braço, rindo como se aquilo fosse a coisa mais divertida do mundo.
O outro, o mau humorado de cara fechada, me olhou de soslaio. Eu tinha certeza de que ele não dava uma boa trepada há anos, e só isso explicaria tanta amargura. Estalou a língua no céu da boca, claramente irritado, e se desvencilhou do aperto como se aquilo fosse um crime. Devia odiar apelidos bonitinhos, ou talvez… fosse ciúmes? Olhei de um para o outro, especulando. Não eram irmãos, eram? Se fossem namorados, até faria sentido o olhar raivoso. E, se fossem, tudo bem por mim. Toda forma de amor valia, afinal.
— Podiam fumar essa merda pra lá, não podiam? — rosnou, cruzando os braços e apontando o queixo na nossa direção.
— Estressado, Darlynda? — provoquei, inclinando-me para frente e apoiando as mãos na lataria do carro. A sensação de leveza na cabeça fazia tudo parecer mais engraçado do que deveria. Intercalei meu olhar entre os dois, segurando um sorriso. — Tá com ciúmes do seu namorado aqui? Relaxe, ele não faz o meu tipo. Nem o da minha amiga.
— Tá maluca, sua esquisita? — Ele quase gritou, jogando as mãos para o alto, indignado. Trocou o peso entre as pernas, tombou a cabeça para o lado e lançou um olhar fulminante para Amélia antes de completar: — Esse idiota aqui é meu irmão mais velho, infelizmente.
— Irmãozinho ingrato! Mas bem que você não vive sem mim! — retrucou o mais velho, rindo como se tudo fosse uma grande piada.
— Infelizmente… — o mais novo murmurou, abaixando a cabeça. A última palavra saiu quase sussurrada, amarga como o resto de sua postura: — De novo.
Amélia tossiu, levando a mão à boca com um som abafado. Inclinei-me ligeiramente em sua direção, tocando seu braço, preocupada.
— Tá bem?
— Sim… — resmungou, limpando a garganta com um som áspero. Seus olhos pousaram no cigarro quase apagado entre os dedos do homem do outro lado da caminhonete. — Posso tentar de novo?
— Nunca fumou? — A voz do mais novo surpreendeu, carregada de um tom quase… curioso? Gentil, para os padrões dele, pelo menos.
— Primeira vez — admitiu Amélia, lançando-me um olhar rápido. — Já vi a Anya fumar antes, mas nunca tive coragem.
— Devia continuar assim — ele retrucou com a mesma rispidez de antes, arrependido por ter demonstrado interesse.
— E quem é você pra me dizer o que eu devia ou não fazer? — Minha amiga rebateu, erguendo uma sobrancelha em desafio, o canto dos lábios curvando-se em um sorriso que misturava provocação e nervosismo.
O mais novo balançou a cabeça, exalando um suspiro pesado.
— Não sou ninguém — murmurou, a voz carregada de sarcasmo. Ele fez uma pausa, os olhos desviando de nós como se o assunto já não tivesse mais importância. — E, se quer saber? Foda-se.
— Anya! — A voz de Shane cortou o ar como um trovão, grave e carregada de um descontentamento inconfundível. Sua energia me atingiu em cheio, percorreu meu corpo como uma descarga elétrica, e o velho conhecido peso do julgamento voltou a me esmagar. Minha mãe e Lori sempre estavam descontentes comigo. Sempre. Assim como Shane estava agora.
Eu senti a presença dele antes mesmo de vê-lo. Um calor quase sufocante se aproximava, pesado como um búfalo raivoso. Quando me virei, Shane já estava ali, tão perto que meu nariz quase encostou em seu peito. O ar exasperado que ele soltou pelas narinas fez os fios soltos do meu cabelo balançarem.
— Shane… — murmurei, incapaz de desviar o olhar. Seus olhos queimavam de raiva, mas havia algo hipnótico neles. Droga, ele ficava ainda mais lindo assim, com a mandíbula travada e os músculos do pescoço tensos. Ou talvez fosse só a maconha falando… como da outra vez…
— É sério isso? — Seu tom saiu como um rosnado.
— O quê? — Indaguei inocentemente, inclinando-me para frente e pousando a ponta dos dedos em seu peitoral.
Vi o momento exato em que ele prendeu a respiração, os músculos se contraindo debaixo da camisa no instante em que minha mão o tocou.
— Fumando maconha… — Ele quase cuspiu as palavras. — Levou a Amélia pra isso… com dois homens… desconhecidos.
— Não são desconhecidos… — Amélia interveio apressada, a voz fina e nervosa. — Eles são… são…
Porra. A gente estava fumando com os caras e nem sequer perguntou o nome deles? Que belo exemplo eu era.
— Merle. — O mais velho quebrou o silêncio, um sorriso cínico se formando enquanto ele apontava para si mesmo com o polegar. — Merle Dixon. Esse aqui… é meu irmãozinho querido, Daryl.
Pronto, agora os desconhecidos tinham nomes. Não eram mais apenas estranhos, eram... colegas. Sim, colegas parecia mais aceitável que amigos. Merle era bem legal, afinal, não é qualquer um que divide um baseado com completos desconhecidos. Já Daryl... bom, ele precisava urgentemente encontrar alguém para aliviar toda aquela tensão estampada em sua cara fechada e amarga.
— Volta pro carro. — Shane ordenou.
— Não quero. — Rebati, dando um passo à frente, desafiando-o.
Seus olhos escureceram. Ele respirou fundo e falou mais baixo, daquela maneira intensa que fazia minha pele formigar.
— Anya... por favor.
Meu corpo reagiu antes mesmo que minha mente acompanhasse. Subi nas pontas dos pés, sentindo o calor que emanava dele enquanto meus lábios pairavam perigosamente perto do seu queixo. Sussurrei:
— Me obrigue...
A linha de tensão que se formou entre nós parecia eletrificar o ar. Shane inclinou a cabeça ligeiramente, os olhos percorrendo meu rosto com uma intensidade que me fez arfar.
— Garota... — Ele sussurrou de volta, cada palavra como um aviso. — Não me faça te jogar no ombro e te arrastar pra lá.
Ele estava quente, e eu queimava junto.
— Vamo, amiga. — Amélia interveio, segurando meu braço com firmeza. — Já tá escurecendo. Melhor a gente voltar, ficar todo mundo junto.
Queria sair, mas meus pés pareciam âncoras cravadas no chão. Estava presa. Não naquele lugar, mas nele. Na força que Shane exercia sobre mim sem nem perceber.
Antes de me virar, encarei-o mais uma vez. Ele ainda me observava, os braços cruzados, a postura rígida, mas os olhos... ah, aqueles olhos pareciam me despir por completo.
Merle riu, aquele riso rouco e debochado que parecia ecoar no ambiente. Daryl apenas balançou a cabeça, como se estivesse cansado de tudo aquilo.
Eu me afastei devagar, os passos pesados como se a cada um deixasse parte de mim para trás. Mas, no fundo, eu sabia. Isso não terminaria aqui.
E, por algum motivo que eu não queria admitir, mal podia esperar para o que vinha depois.
☆《▪︎▪︎▪︎》☆
A lua estava alta, sua luz prateada caindo sobre o amontoado de carros na rodovia. Encostei no canto do trailer, traguei o cigarro e soltei a fumaça para o lado, inclinando um pouco o rosto enquanto observava o céu. A noite estava limpa, sem nuvens, e o breu deixava as estrelas mais vivas. Sempre gostei da noite. Era a minha parte favorita do dia. Me sentia parte dela, talvez porque também fosse sombria, cheia de segredos… e, como eu, solitária.
Não sei bem quando ou por quê, mas Shane e o senhor de chapéu de pescador — que agora sei que se chama Dale — resolveram se juntar a outros sobreviventes. O nosso pequeno grupo virou uma quase multidão. Com Dale vieram duas loiras oxigenadas, Andrea e Amy. Tá, oxigenadas não, dava pra ver que eram loiras naturais, mas a mais velha, Andrea, não perdia uma chance de rodear Shane e de sorrir pra ele toda faceira. Meu ranço por ela estava crescendo tanto que eu quase soltei um “tá no cio, amada?”.
Ah, também apareceu uma família, os Peletier. O pai, Edmundo, ou “Ed”, como a esposa chamava, tinha aquele tipo de jeito que dava vontade de quebrar um galho seco na cabeça dele. Sério, se esse cara aparecer morto, deixo claro que não fui eu. Aí tinha a garotinha, Sophia, que era uma fofa. Ela logo ficou amiga de Carl, e foi a primeira vez que vi meu sobrinho sorrindo ou falando desde que tudo desabou. E, por fim, a mãe da menina, a esposa de Ed. Uma mulher simples, já com seus 40 e poucos anos, cabelos curtos, que parecia o oposto do marido: acolhedora, gentil, quase maternal com todo mundo.
Também apareceu o Theodore, que logo deixou claro que preferia ser chamado de T-Dog. Cara legal, cheio de piadinhas. E tinha o Glenn… um coreano fofinho, com cara de bebê. Ele e T-Dog arrancaram boas risadas de mim e da Amélia. Amy, irmã de Andrea, também se aproximou, e até que a garota era bacana. Pareciam gente boa. Dale dizia que, juntos, éramos mais fortes, e que, em grupo, teríamos mais chances de chegar a Atlanta, encontrar a tal base do governo e nos protegermos. Um defendendo o outro, sabe?
Merle e Daryl acabaram se juntando ao grupo também. Shane não gostou nem um pouco, mas eu quase bati o pé pelos dois. No fim, não sobrou nada pro Walsh fazer além de engolir o orgulho e deixá-los ficar.
Minha mãe e Lori? Quase me deserdaram por isso. Principalmente minha mãe. Quando sentiu o cheiro de maconha em mim, ela surtou. Me chamou de vergonha na frente de todo mundo, como sempre fazia. Lori, claro, correu pra consolar nossa mãe, como a filha perfeita que é. Tive vontade de enfiar o dedo na garganta e vomitar aos pés das duas, mas não valia a pena gastar minha brisa com elas. Quem sabe quando eu ia conseguir fumar de novo, né?
Pra evitar mais dor de cabeça, peguei outro cigarro com Merle e me afastei um pouco do pessoal. Eles tinham arrastado os carros pro canto da pista, dividido comida e bebida, e agora estavam lá, conversando. O engarrafamento continuava parado, exatamente como estava há cinco horas. Será que algum dia a gente ia sair daqui? Talvez nunca.
E ainda tinha o Shane... Eu não sabia merda nenhuma sobre o que estava acontecendo comigo, mas toda vez que o desapontava, uma frustração tomava conta de mim. Porém, eu queria desafiar ele, testar até onde ele iria. Meu corpo pegava fogo perto de Shane, um desejo quase insano de ser tocada pelas suas mãos — e talvez fosse isso que me fazia provocá-lo tanto. Queria que ele me tocasse. E já tinha sacado duas coisas: fumar maconha me deixava mais corajosa, mais ousada — quase beijei o maldito queixo dele mais cedo. E Shane? Não era imune a mim. Ele podia se fazer de durão, mas o corpo e os olhos... ah, esses não mentiam.
Traguei mais uma vez e fiquei apreciando o som do vento batendo nas folhas ao redor, o ruído dos grilos e demais insetos, as vozes das pessoas mais baixas e afastadas, as buzinas finalmente cessando.
Não ouvi passos, mas senti a presença dele antes mesmo de Shane entrar no meu campo de visão. Meu coração acelerou, batendo como um louco desenfreado. Engoli o excesso de saliva que se formou em minha boca. A sombra de Shane deslizou pelo chão até cobrir meus pés, como se já estivesse ali há muito tempo, apenas me observando.
— Podemos conversar? — Sua voz grossa e baixa cortou o ar da noite.
Observei-o minuciosamente, meus olhos deslizando por seu corpo, que parecia ainda mais lindo e pecaminoso sob a luz da lua. Shane não usava mais o uniforme de xerife manchado com o sangue do senhor e da senhora Grimes. Estava com uma calça de moletom cinza e uma blusa azul escura, as mangas puxadas até os cotovelos. Suas mãos estavam nos bolsos da calça, e eu podia ver o relógio preto em seu pulso, e o conjunto de veias que subia pelo antebraço. Porra… que homem gostoso…
A postura imponente dele, parado ali, me encarando, esperando minha resposta. O perfume forte e marcante, com um toque cítrico invadiu meus sentidos e fez meu corpo
tremer, vibrando em resposta à sua presença. Meu ventre girou, e senti minha intimidade pulsar somente com a imagem daquele maldito policial diante de mim.
Soltei a fumaça para o lado outra vez, e
esbocei um sorrisinho sacana.
— Conversar ou me dar um sermão?
Porque, se for a segunda opção, xerife,
economiza seu fôlego.
— Anya. — Ele tirou as mãos do bolso da calça e cruzou os braços, a postura rígida, deu um passo à frente, ignorando totalmente o que eu tinha acabado de dizer. — O que foi aquilo mais cedo?
— Aquilo, o quê? — Perguntei, arqueando uma sobrancelha. — Eu estava socializando, distraindo Amélia; ela precisava esquecer o que viu.
— Socializar? Com um cara que parecia prestes a te vender mais problemas junto com aquele baseado?
Revirei os olhos, jogando o cigarro no chão e esmagando-o com o pé. Desencostei do trailer e também dei um passo à frente.
— Merle não me vendeu nada, a maconha era dele; só fumamos juntos. Tem algum problema nisso, Shane? Você sabe que eu fumo, eu gosto, me relaxa. Ajuda a fugir… — Expliquei, fechando os olhos antes de terminar a frase.
Ele se inclinou na minha direção, invadindo meu espaço de um jeito que fazia minha respiração ficar presa.
— Te ajuda a fugir de que, Anya?
— Nada… deixa pra lá…
Shane deu mais um passo, e eu também, nossos corpos quase colados, o calor da sua pele envolvendo a minha, seus olhos presos nos meus começaram a deslizar pelo meu rosto rapidamente, parando vez ou outra em meus lábios. Minha boca ficou seca, e minha garganta travou. Que porra a gente estava fazendo?
— Sabia que você tem cheiro de problema, menina? — Sua voz saiu como um sussurro provocante, seguido de um sorriso safado, meio de lado.
— Sério, xerife Walsh? Eu digo o mesmo de você…
Seu cheiro ficava ainda melhor e mais forte de perto; estávamos tão perto que sentia meus seios resvalarem em seu peitoral duro. Deslizei a pontinha da língua pelos lábios e vi Shane travar o maxilar, tombando a cabeça de lado, analisando as tatuagens do meu pescoço, ombro e colo, seus olhos brilharam com a luz da lua e escureceram em seguida. Meu sangue ferveu… merda… minha calcinha estava encharcada.
Mas, antes que eu pudesse dizer ou fazer mais alguma coisa, um som distante cortou o ar, mas logo pairou baixo sobre nós. Meus olhos desgrudaram de Shane e se voltaram automaticamente para o som, mas não nos afastamos; pelo contrário, Shane segurou firme em minha cintura e me puxou para perto. Estávamos tão juntos, que apoiei minhas mãos em seu peito e assistimos aos helicópteros voarem rascantes por cima de nós. As lâminas dos rotores cortavam o ar com um estrondo, fazendo a terra vibrar sob nossos pés.
Algo me dizia que aqueles helicópteros não vieram nos oferecer ajuda, e logo minhas suspeitas foram concretizadas.
Eles voaram até Atlanta, e, com vários zumbidos altos o suficiente para serem ouvidos à distância em que estávamos da cidade, explosões tomaram forma, colocando os grandes arranha-céus de Atlanta no chão. A cidade começou a arder em chamas; uma dança caótica do próprio inferno de luzes vermelhas e amarelas irrompia a escuridão do horizonte. Outros zunidos cortantes, e então mais estrondos e mais fogo.
Logo, Atlanta se resumiu a absolutamente nada.
— Mas… mas que porra! — Shane rosnou, afastando-se.
Eu estava em choque, paralisada. Minhas pernas ficaram pesadas, meu peito se apertou e eu só conseguia encarar a destruição que se iniciava diante de mim.
— Anya… Vem! — Shane entrelaçou seus dedos nos meus e praticamente me arrastou.
O Walsh manteve minha mão presa à sua, e eu o segui no automático, sem conseguir desviar meus olhos do filme de terror que se desenrolava ao vivo do outro lado. O vento trouxe a fumaça e o cheiro de queimado, e as luzes de Atlanta eram como manchas douradas que se apagam num piscar de olhos, tornando tudo uma grande cidade fantasma.
O que estávamos fazendo ali? Estávamos apenas vivendo o fim do mundo, como quem assiste a uma peça de teatro, aplaudindo o caos sem saber o que fazer para mudar o roteiro.
Olhei para o céu uma última vez antes de abaixar os olhos para a estrada, onde o grupo estava reunido, observando a cidade ser destruída. O brilho das explosões refletia no rosto de Shane, em seu semblante de pavor e incredulidade. Por um instante, tudo parecia perdido e, ao mesmo tempo, irremediavelmente real. Procurei Amélia e Carl com os olhos, e minha amiga segurava nosso sobrinho nos braços, enquanto Lori seguia abraçada à nossa mãe. Como se sentisse que estava sendo observada, minha irmã virou o rosto na minha direção, e nos fitamos por um segundo.
Eu estava tão abismada com tudo que nem senti Shane me puxar para seus braços e me proteger em um casulo de músculos. Lori seguiu ali, com os olhos estreitados para mim, e por um segundo tive medo dela, do modo como nos olhou… foi estranho, foi… mas não foi isso que me fez parar de respirar. O que me fez parar foi o fato de que o mundo estava acabando, e não havia nada que pudéssemos fazer a respeito. Só assistir, literalmente…
O apocalipse não era uma escolha, não era algo que eu conseguiriamos evitar. Estávamos dentro dele, e nada mais fazia sentido.
Sabe, às vezes eu paro e penso que tudo isso não passa de uma grande piada. E a piada? Bem, é justamente a gente aqui, tentando se segurar em pedaços de uma humanidade que já não existe mais.
E, no final das contas, o que resta senão continuar?
Isso não passa de mais uma noite no fim do mundo. Atlanta estava caída, para onde vão nos mandar agora, autora? Algo me diz que isso é só a ponta do iceberg
🍫🌶《▪︎ Quero falar pra vocês, que a ideia não era fazer eles flertar desse jeito, eles iriam discutir. Mas gente!!! Eles são dois safados! Não podem chegar perto um do outro que tão cheio de tesão e flertando!! socorro!!
🍫🌶《▪︎ Alguma coisa me diz, que se continuar assim, não vai demorar pra eles ficar juntos, ou vão acabar explodindo.
🍫🌶《▪︎ Não esqueçam de comentar e votar! Vocês não são fantasmas, caralhudos!
🍫🌶《▪︎ Espero que tenham gostado do capítulo de hoje. Bjos Bjos, ate o próximo.
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