Capítulo 34 Meu eterno amor

Após seis meses de tratamento eu já estava livre daquele fixador que tanto incomodava, a cada curativo ficava agoniada por sentir a sensação de choque que dava quando as pinças de metal esbarravam naqueles ferros. Fiz mais uma cirurgia, e então pude finalmente voltar para casa, agora só teria retornos periódicos até que finalmente pudesse ter alta do tratamento. 

Otávio também teve alta, já conseguia dar uns passos com auxílio e as coisas agora estavam entrando nos eixos. Meu pai se mostrou um ótimo administrador, até voltou a estudar para entender melhor sobre a parte administrativa da empresa, pois agora exportávamos carne para fora do país. O frigorífico era bem exigente e precisávamos seguir alguns protocolos, mas Fabiano e os demais funcionários estavam empenhados em entregar um produto de qualidade.

Rodolfo foi apresentado como patrão, achamos melhor assim, embora fosse do conhecimento de todos os funcionários que estávamos em fase de negociações sobre a compra. Com isso, ele vinha me ver a cada quinze dias e já se inteirava do andamento dos negócios. Para ser sincera, nunca pensei que fosse tão organizado e entendesse tanto de administração, ele e meu pai se deram muito bem. 

Rafael e Otávio não se assumiram publicamente, mas a família agora sabia de seu envolvimento, o pai do ruivo ainda estava relutante com a ideia, mas ao menos respeitava a decisão do filho. Já a sogra, era como uma mãe para o ex-baladeiro, que agora finalmente tomou um rumo na vida. Manu e Fabiano se assumiram com direito a pedido em um jantar de família, buquê de flores e discurso sobre respeito mútuo e honra. O peão parecia até que nunca havia pedido uma moça em namoro, estava todo tímido, nervoso e atrapalhado. Era bom ver todos se entendendo.

— Oi, Cíntia, entre — disse tia Tereza quando apareci em sua porta naquela manhã de sexta feira.

Eu acordei bem cedo depois de uma noite movimentada por sonhos estranhos. Na maioria deles Otávio estava presente, então decidi visitá-lo antes de ir para o escritório, eu só queria saber se estava tudo bem. Era dia de vacinação de gado e teríamos muito trabalho pela frente, então seria uma visita breve.

— Bom dia — falei para o tio Joaquim, que estava tomando café na cozinha.

— Veio ver o seu amigo teimoso? — Tio Joaquim virou a xícara de café na boca. — Boa sorte, ele está impossível essa semana.

— Ele ainda está naquele clima? — perguntei à tia Tereza, que confirmou em um aceno com a cabeça.

Eu sabia que ele não estava com um humor muito bom aquela semana, estava passando por uma fase de revoltas, e para complicar, tentou se levantar sozinho e acabou caindo. Rafael estava cuidando, tirou uns dias para ficar na fazenda, aliás, se mostrou um ótimo companheiro, só não estava tendo sorte com seu paciente, impaciente.

— Não adianta ficar com essa teimosia!

A voz de Rafael ecoou pela casa, chamando nossa atenção.

— Eles vão brigar outra vez — disse o Fabiano pegando um pedaço de bolo, depois de me cumprimentar e tomar a benção com seus pais.

Tio Joaquim ao ouvir o início da discussão, se mostrou pensativo, de cenho franzido balançando a cabeça negativamente. Tia Tereza tentava desviar nossa atenção com um assunto aleatório e Fabiano foi logo saindo, iria ajudar meu pai e Rodolfo que havia chegado na noite anterior.

— Vou lá falar com Otávio — ajeitei minha postura com um pouco de dificuldade. Estava de tala gessada, que nada mais é do que uma tala de gesso revestida com uma faixa para limitar o movimento e proteger o osso em recuperação de uma fratura, assim como o curativo resultante de uma cirurgia. Eu já havia me acostumado com aquela muleta, era ruim de usar, mas ao menos conseguia andar. Diferente de Otávio, que trocava alguns passos somente com auxílio, o que era motivo de todos aqueles surtos de nervosismo. A recuperação dele seria bem mais lenta.

— Oi — falei ao me aproximar do quarto, onde os dois tinham uma conversa acalorada.

— Bom dia — Rafael me cumprimentou com os olhos marejados — Como você está?

— Eu estou bem, sonhei com Otávio essa noite, acordei agoniada e resolvi passar agora pela manhã para vê-lo.

— Eu caí outra vez — disse Otávio, com um semblante abatido. — Tentei me levantar sozinho, desequilibrei e caí.

— Mas você não...

— Eu não posso levantar sozinho — ele me interrompeu. — Era para estar junto dos peões, montado em meu cavalo tocando gado agora e também não posso. Eu não posso sequer sair dessa cadeira e ir até o banheiro sozinho, preciso de ajuda para tomar a merda de um simples banho. Estou cansado de ver as pessoas me olharem com pena, estou farto de me sentir um inútil, eu quero a minha vida de volta.

— Eu nunca te olhei com pena — Rafael murmurou se sentando na cama, apoiando a cabeça com as mãos olhando para o chão, visivelmente perdido.

— Eu já te falei para não ficar perdendo tempo comigo, Rafael. Não tenho nada a te oferecer sequer posso fazer planos porque não sei se um dia vou conseguir retomar a minha vida.

— Eu não vou me afastar, você está sensível, eu sei, caiu e isso dói, no físico, no orgulho, na alma. Mas não adianta me tratar mal achando que vai conseguir me mandar para longe por que eu não vou! Não estou aqui por pena, bota isso em sua cabeça, eu posso sim pegar um avião e ir viver minha vida em qualquer lugar do mundo, mas quero estar aqui ao lado do cara que... — Rafael respirou fundo ao notar que os pais de Otávio agora observavam aquela conversa. — Se tiver que fazer dieta, faremos juntos, se tiver que entrar novamente em um centro cirúrgico eu estarei ao seu lado segurando a sua mão e ninguém vai me impedir disso. Se tiver que passar a vida toda andando com apoio, eu serei esse apoio, mas não vou sair da sua vida só porque você resolveu brigar com o mundo!

— Eu estou doente droga, de corpo e de alma — disse Otávio com a voz embargada.

— Eu sei, meu pai também ficava revoltado, agitado e tivemos que ter muita paciência. Diferente de você, ele não conseguia se comunicar com facilidade, não conseguia sequer parar em pé, e quando a doença se agravou, foi aprisionado no próprio corpo por anos. Você está progredindo e sabe que vai ter a sua vida de volta, só não tenta me afastar, porque eu sei que não é isso que realmente quer, e se eu sair por aquela porta de malas feitas porque me mandou embora, te garanto que não volto mais.

Rafael saiu do quarto deixando o ruivo cabisbaixo na poltrona, eu com a consciência pesada, a mãe em lágrimas, e o pai? Ele se aproximou do filho, se abaixou para ficar na mesma altura e segurou a sua mão.

— Filho, eu nunca fui bom com palavras e você sabe disso. Quando soube que estava se envolvendo com um rapaz, senti vergonha, depois raiva, depois culpa, pensei que tivesse falhado como pai. Eu sou um cara chucro, cabeça dura, tem coisas que não entram em minha cabeça, e sei que é difícil lidar comigo por conta disso. Mas não sou cego e vi todo esse tempo o esforço desse jovem para te ver bem. Ele não tinha obrigação nenhuma de estar aqui, a família dele não tinha a obrigação de ajudar e te acolheram, fizeram por você o que, eu, seu pai, jamais conseguiria. O Rafael não é uma moça que vai gerar meus netos como sempre sonhei, mas é o companheiro que a vida te deu, e que você aceitou. Ele tem sido um exemplo de paciência e cuidado que talvez uma moça não fosse ter contigo, então eu não peço, eu exijo como teu pai que o trate com respeito.

— Eu nunca mais vou poder montar em um rodeio, e...

— Você ainda vai poder montar em um cavalo. Talvez não consiga fazer as mesmas coisas de antes, mas está vivo, vai poder andar e retomar as rédeas de outra maneira. A vida não é só rodeio, aqui na fazenda tem outras coisas que pode fazer. Lá fora tem muita coisa, então pare de ficar se lamentando e vamos reagir que o tempo não para.

— Mas pai, eu...

— Você me escuta, Otávio! Não quero saber se escolheu uma moça ou um rapaz para viver, eu criei um homem, e esse homem vai honrar e respeitar seu cônjuge como eu respeitei a minha. Se você não gosta dele, como ele gosta de você, então vai abrir o jogo e ser sincero. Não quero mais ouvir voz alterada dentro dessa casa, não quero que o trate como acabou de fazer, eu não te dei esse exemplo.

— Pai, é que...

— Você não gosta dele?

— Eu...

— Responde Otávio.

— Gosto, ele ficou ao meu lado todo esse tempo me cuidando e isso me fez gostar como nunca gostei de nenhuma menina — Otávio assumiu, baixando a cabeça diante do pai.

— Então você vai se desculpar com o rapaz e parar de ser criança. Já são meses de luta, e ainda serão meses ou anos, não importa, vamos enfrentar juntos e você vai tratar o Rafael como ele merece. Seja o homem que teu pai te educou para ser, o rapaz não tem culpa de suas limitações e está aqui por amor, então retribua, ou o deixe ir para que encontre quem faça isso.

Tio Joaquim se levantou e saiu do quarto nos deixando de boca aberta.

— O que foi isso? — perguntei surpresa.

— Um homem simples dizendo com suas palavras que ama seu filho, independente de suas escolhas — tia Tereza sorriu se afastando. — E lhe dando um belo puxão de orelha — completou a distância.

— Eu também te amo, meu pai.

Otávio desabou de costas na cama, em lágrimas.

▬☼▬

Aquele dia já começou tumultuado, e pelo visto, muita coisa ainda estava para acontecer. Depois de visitar o Otávio, que agora estava mais calmo e até se desculpou com Rafael, me apressei a ir para o escritório tinha umas notas para lançar no sistema, mas o computador resolveu não querer ligar. Por sorte o Fabiano passou por lá e me deu uma mão com a máquina eu precisava muito dos arquivos que fiz o favor de salvar somente nela. Já estava uma pilha de nervos com a audiência do acidente que se aproximava, não conseguia me concentrar no trabalho, aliás, em nada, acredito que era isso que me causava insônia e pesadelos.

— Cintia, socorro, eu preciso muito falar contigo! — Emanuelle chegou, afoita, invadindo o escritório.

— Calma, mulher, respira — falei com um sorriso. — O que foi?

— O Fabiano, ele me chamou para sair e...

— Manu, eu acho que é melhor...

— Não. Escuta, eu preciso daquele seu pó do capeta, ele quer me levar para jantar e depois quer ir no motel. Eu nunca nem vi um homem nu, está me dando dor de barriga, e...

— Manu, não...

A garota, eufórica, andava de um lado para o outro não me deixando falar, e também não prestava atenção nos olhares e gestos que eu fazia.

— Amiga, estou igual quando você me ligou falando que o Rodolfo era grande e estava armado no quarto. Eu não sei o que fazer com as mãos, não sei o que dizer lá na hora, tenho medo dele não gostar de mim e... Cíntia, o homem fica animado, parece que tem quatro pares de mãos, e ainda me aperta com força fazendo sentir aquele trem que parece ter vida própria, ele me...

Manu empalideceu quando o peão saiu de trás da mesa.

— Era um cabo solto, pode ligar o computador que vai funcionar.

— Eu tentei avisar — desviei o olhar para a tela do computador que finalmente ligou.

— Bom dia, Manu — ele ajeitou seu chapéu, a olhando com as bochechas coradas.

— Misericórdia!

A garota fugiu da sala.

— Quatro pares de mão? — eu ri o encarando.

— Vá se lascar! — ele jogou uma bolinha de papel amassada em mim. — Pózinho do capeta, é cada coisa que vocês inventam.

— Ué, peão, não gosta de inovar?

— Está com tempo sobrando, Cíntia?

— Não, mas estou amando te ver com vergonha — eu ri jogando a bolinha de volta. — Não sabia que...

— Eu não vou falar sobre isso contigo — ele abriu uma pasta de papel e começou a folhear uns documentos em sua mesa. — E pare de rir, eu sei muito bem o que estou fazendo.

— Não magoa a minha amiga, Manu não é como as outras meninas.

— Eu sei, não estou brincando com ela, pode acreditar nisso.

— Fico feliz em saber.

— Manu tem despertado o melhor de mim — afirmou, curvando o canto da boca, como fazia quando ela aparecia em seu campo de visão. — Demorei a enxergá-la como mulher, sempre a via como uma menina peralta que nunca cresceu. Só que depois que ficamos mais íntimos eu aprendi a vê-la de outra forma. Parece lenda, mas, aquela maluquinha me domou.

— Quem diria — cantarolei. — Vai com calma, tigrão, ela está insegura.

— Se voltar aqui, e eu sei que vai voltar, vocês adoram trocar figurinhas — ele me olhou por cima da pasta que estava folheando. — Se puder, a tranquilize, não vai acontecer nada sem o consentimento dela, eu posso esperar até que esteja pronta.

— Que príncipe encantado, gente!

— Ah, Cíntia, vá trabalhar!

Fabiano deixou a sala aos risos.

— O que foi isso? — perguntou a secretária ao esbarrar com o peão na porta.

— Nem tenta entender, não recomendo — balancei a cabeça, tentando segurar o riso em vão.

Maria era funcionária antiga, optamos por manter todos em suas devidas funções, deixei que meu pai resolvesse essas questões, ele conhecia o pessoal melhor do que eu. A moça tinha por volta de vinte e cinco anos, era casada com um vaqueiro ali mesmo da fazenda e trabalhava no escritório desde os dezesseis. 

Nunca fomos próximas, ela não era muito de se misturar, e só agora eu soube que sofria com as piadinhas sobre ser albina, motivo pelo qual se excluía. Se tivesse sabido antes, teria tentado uma aproximação, mas enfim, agora estava tendo a oportunidade de conhecer pessoas que sempre moraram ali, mas nunca trocamos nenhuma palavra.

— Eu preciso que assine esses documentos — disse ela me entregando uma pasta. — O seu Rodolfo disse que o pessoal do escritório lá da cidade vai precisar.

— Bem lembrado, ele me mandou mensagem e acabei esquecendo de responder — falei abrindo a pasta com vários documentos. — Onde eu assino?

— Aqui, e, aqui.

Ela apontou o local das assinaturas, dessa vez não fiz questão de ler, estava com a cabeça cheia de problemas e a mesa cheia de trabalho.

— Chegou um carro — ela avisou observando a janela.

— Pelo visto o dia vai ser longo — sorri entregando a pasta em suas mãos.

Maria saiu da sala, então, peguei o celular para responder as mensagens do Rodolfo, mas sequer consegui abrir o aplicativo ao ouvir aquela voz, que foi invadindo o espaço de repente.

— Cíntia, me desculpe, ela não esperou...

— Tudo bem, Maria, eu falo com ela — respondi observando minha ex-sogra parada a minha frente.

Por pouco não a reconheci, nem de longe parecia aquela madame que por tantas vezes me olhou com superioridade. Suas roupas eram simples, o cabelo preso em um rabo de cavalo, unhas por fazer, definitivamente aquela senhora não era mais a mesma. Mas eu sabia o motivo, cidade pequena as notícias correm como a velocidade da luz, o que o povo não sabe ele inventa. 

Chegou aos meus ouvidos, que assim que aconteceu aquela tragédia, ela se separou, a família vivia da imagem e as filmagens de toda aquela baixaria se tornou um escândalo sem tamanho, assim como a notícia do meu sequestro relâmpago e a confissão de Wendy sobre a participação da sogra nas mentiras postadas. 

O marido acabou lhe dando as costas, e como não tinha nada em seu nome, tampouco no do casal, ela acabou se prejudicando financeiramente com o fim da união. Eu soube que recebia uma pensão alimentícia, mas não era o suficiente agora que cuidava do filho em recuperação, então, sem mais opções ela se mudou para o apartamento que Raul havia comprado para nós, onde mal aparecia, já que passava muito tempo no hospital cuidando do filho.

— Bom dia — falei fazendo um sinal para que se sentasse.

— Bom dia — disse ela, correndo o olhar pelo cômodo, antes de fixar em mim.

— Em que posso ajudar?

— Eu não vou tomar o seu tempo, também não posso demorar. O Raul... meu filho, está com a Romana, ela reveza comigo quando tenho que resolver alguma coisa fora do hospital.

"Na saúde e na doença", pensei. — E como ele está? — perguntei.

— Se recuperando, e você?

Olhei para a muleta no canto da parede, e voltei meu olhar para ela.

— Eu estou bem.

— Cíntia, eu demorei a te procurar porque precisava fazer isso de coração aberto. Não é fácil estar aqui, mas sinto que preciso te pedir perdão por tudo o que lhe fiz.

— Não precisa fazer esse sacrifício — me levantei com dificuldade e peguei a muleta, antes de caminhar até o balcão. — Aceita um café, ou uma água?

— Um café, por favor.

Servi uma xícara, adocei do jeito que ela gostava e entreguei em suas mãos.

— Não é nenhum sacrifício, eu não soube me expressar. É muito difícil admitir que está errado, eu... eu precisei quase perder um filho para enxergar o quanto minhas atitudes eram prejudiciais. Me culpei todos esses meses por essa tragédia, se não tivesse deixado minha arrogância falar mais alto, talvez vocês estariam vivendo suas vidas... — ela olhou para a muleta embaixo de meu braço e depois para meu rosto. — Sem sequelas.

— Todos aprendemos grandes lições, eu ainda tento superar os traumas, mas sei que um dia não passará de uma lembrança ruim.

Ela se aproximou, virou o restante do café em sua boca e colocou a xícara sobre o balcão.

— Eu insisti no casamento, porque sabia que o Raul nunca encontraria uma moça feito você.

— Uma moça sem classe, que seria a vergonha da família? — perguntei me encostando na parede, enquanto a observava.

— Não, jamais, é que...

— Uma moça que não sabe se vestir, tampouco se comportar como uma dama da sociedade? Que não serve para acompanhar o próprio noivo em jantares finos, sendo substituída pela amante dele? Engraçado como essa mesma sociedade ao qual eu não me encaixava, hoje me manda convites e mais convites de eventos, será que eram eles, ou a senhora que não me queria por perto?

— Cíntia, eu...

Ela tentou argumentar, mas não dei espaço, eu precisava botar para fora o que sentia.

— A senhora não me deixou sequer escolher a mobília do apartamento em que eu e seu filho iríamos morar. Até meu vestido de noiva não podia ser do meu gosto, o buquê, enfeites da igreja, músicas, pratos para a festa, nada! Eu não pude curtir os preparativos do meu próprio casamento, não pude viver aqueles momentos que seriam únicos, porque a dama da alta sociedade não permitiu.

— Eu já me desculpei por isso.

— E acha que um pedido de desculpas vai apagar toda essa merda?

— Eu vivia em um mundo de ilusões e acabei me contaminando, as influências...

— As mesmas pessoas que naquela época a senhora me mantinha longe, por não me "encaixar" naquele mundo, são as que me mandam convites de reuniões, chá da tarde e jantares, hoje. Eu nunca me deixei contaminar, e acabei descobrindo que nem todos são arrogantes e prepotentes como a senhora era comigo.

— Fui tão vítima quanto você, acha que tive muitas escolhas? Acha que a droga da minha vida foi fácil? Eu vivi para manter a integridade da minha família enquanto meu marido se jogava nos braços de suas amantes e depois chegava em casa fedendo a perfume barato tocando em mim. Nunca podia recusar senão sofria as consequências, suportei horrores ao lado daquele homem e hoje estou sozinha com meu filho doente. A família aparece esporadicamente, nem mesmo os amigos do clube nos visitam, e é isso, estamos isolados, a única coisa que interessa para eles, é evitar que ele vá para a prisão e vire um escândalo que cause mais uma mancha no nome da família. Não tenho mais amigas, todas me viraram as costas, não me resta mais ninguém.

— Colher o que se planta é a lei da vida, mas acho que a senhora já sabe disso.

— Eu sei que você me odeia, e não vou contra isso.

— Eu não te odeio, só não faço questão de termos contato, e também não esqueço todas as suas intromissões e como isso me prejudicou.

— Eu só queria que meu Raul fosse feliz, me julgue se quiser.

— A senhora queria o Raul o tempo todo embaixo de suas asas, queria decidir tudo por ele, comandar sua vida como uma criança incapaz de fazer isso — falei rancorosa. — Conseguiu o que queria, está satisfeita? Porque se ele está naquela situação hoje, parte dessa culpa é sua.

— Está sendo cruel com uma mãe, que...

— A minha mãe também tem sentimentos, dona Eugênia, a mãe do Otávio, e elas não estão tentando justificar seus erros cometendo outros.

— Eu vim aqui de coração aberto para te pedir ajuda, não tinha a intenção de te ofender. Estou desesperada e não tenho mais a quem recorrer.

— De quanto a senhora precisa?

— Não vim pedir dinheiro, vim pedir o teu perdão, e...

— E?

— O advogado me informou que existe uma grande possibilidade de o Raul ser preso, e isso seria terrível na situação em que ele se encontra.

— Tá, e a senhora veio até aqui para o quê exatamente?

— Se conseguirmos um acordo, devido ao seu estado mental, pode ser que ele cumpra o processo em liberdade, se ao menos você ajudasse, eu sei que é difícil, mas é uma menina de coração bom, eu... eu quero cuidar do meu filho e na cadeia não vão me deixar fazer isso.

— Está me dizendo que veio até aqui para pedir que eu ajude o teu filho a se livrar da justiça?

— Você está sendo egoísta, está com um cara rico que te ajuda, não precisa se preocupar com nada, o que sobrou para o Raul?

— Em primeiro lugar, dona Eugênia, o meu namorado tem uma situação financeira muito confortável, sim, mas isso é mérito dele, e não significa que tenha que me bancar, eu trabalho para pagar minhas contas como sempre fiz. Não que lhe deva satisfações, mas é que não quero mais buxixos com meu nome como aconteceu no passado. Em segundo, olhe para mim, eu pareço bem? O Otávio parece bem? Ah, a senhora não sabe porque nunca o visitou, não é mesmo? Nunca foi lá ver se a família precisava de auxílio.

— Agora está sendo injusta, eu não tenho como ajudar.

— Injusto é um rapaz de vinte e dois anos ter sua carreira interrompida de uma forma tão brutal, ter que conviver com a dor física, psicológica, enquanto luta para permanecer ao menos um minuto em pé. Injusto é ele não poder fazer as necessidades básicas sem ter que pedir que alguém o ajude, ver a vida passando sem saber se um dia vai conseguir chegar pelo menos perto do que era, antes de levar aqueles tiros que o seu menino injustiçado deu.

— Me desculpe, eu estou nervosa — ela começou a chorar. — Como mãe, me dói saber que meu filho pode ir parar atrás das grades por amar demais, eu prefiro ir presa no lugar dele. Você tem ótimos advogados, pode ao menos tentar fazer essa troca, eu não me importo, o Raul é jovem e tem uma vida pela frente, eu não tenho mais nada a perder.

— A senhora foi uma pessoa muito cruel para mim, e sabe disso, mas também sabe que não tenho o poder de interferir no trabalho do juiz. E mesmo que tivesse, sinceramente, não sei se o faria, pois eu sei, que se fosse, eu, no lugar do teu filho, se fosse Otávio, a sua família não mediria esforços para metê-lo em uma cela. Então se quiser ir até a casa dele e pedir que aliviem o lado do seu filho, fique à vontade, mas recomendo que não vá hoje, pois o jovem que ele baleou, caiu ao tentar andar e está bem irritado.

— Você vai ficar bem, o Otávio vai ficar bem, o meu filho perdeu a perna, teve órgãos internos danificados e sua saúde jamais será a mesma. Ele já está pagando, não é justo ficar preso, eu te imploro, desista do processo, ele não merece ser trancafiado em uma cela feito um criminoso, meu filho é doente!

Toda aquela discussão me deixou muito nervosa, eu sabia que uma mãe iria até o fim do mundo por seu filho, mas aquela cena me trouxe lembranças ruins, e ao passo que ela argumentava, isso só foi piorando.

— Se a senhora não se importar, eu tenho um compromisso — falei verificando o relógio de pulso. A verdade é que só não queria estender aquela conversa, eu já estava à beira de uma crise de ansiedade.

— Cíntia, eu estou desesperada, não sei mais o que fazer, se é humilhação que você quer, eu me humilho, me prosto aos teus pés, mas ajuda meu filho! — disse ela caindo de joelhos à minha frente.

— Por favor, dona Eugênia, não precisa disso, eu...

— Eu me humilho, não tenho vergonha de fazer isso, sei que ele te ama, e se algum dia puder perdoar meu filho, tente visitá-lo. Eu vejo que ele só vai conseguir seguir em frente se te pedir perdão olhando nos olhos.

— Por favor, vá embora! — gritei, entrando em desespero.

— O Raul te ama, Cíntia, ajuda meu filho! — ela implorava agarrando minha perna. — Não nos vire as costas!

Maria veio correndo, eu hiperventilava me sentindo sufocada, chorava sentindo um formigamento subir pelo corpo e o coração disparado.

— Cíntia, o que aconteceu?

— Eu te imploro, não nos vire as costas!

— Vou ligar para seu Luíz — Maria correu para o telefone.

— Me solta!

"Minha Cíntia, meu eterno amor"

A imagem de Raul todo retorcido, ensanguentado, com o olhar fixo em mim, dizendo aquela frase que se repetia em minha cabeça me perturbava. E sua mãe à minha volta me pedindo perdão incessantemente me fez entrar em colapso e tentar fugir da sala. 

Larguei a muleta e saí me apoiando em tudo o que via pela frente, eu só queria me ver livre daquele lugar apertado, o problema é que quando cheguei na escadaria da frente do escritório, me desequilibrei e caí. Foi tudo muito rápido, em um momento estava buscando socorro ao ar livre, e em outro, o mundo se apagou.

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