Capítulo 31 Megera



ESTE CAPÍTULO CONTÉM CENAS QUE PODEM SE TORNAR UM GATILHO, (SEQUESTRO E ACIDENTE). CASO SE SINTA DESCONFORTÁVEL PODE PASAR PARA O PRÓXIMO.

 O homem ao volante estava completamente fora de controle, seu olhar sinistro e desvairado transformava Raul em um estranho. Eu implorava em desespero, que ele parasse. Mas ele ignorava meu clamor, costurando pelas ruas movimentadas como os olhos fixos no trânsito caótico à sua frente. E lá atrás, sirenes uivavam, mais de um carro de polícia nos seguia de perto, mas Raul não parecia se importar. Ele acelerava, fazendo manobras absurdamente arriscadas, como se cada curva fosse um desafio a ser vencido, e eu sentia o pânico crescendo a cada instante. O que havia acontecido com ele? O que o transformara em uma máquina desgovernada, capaz de atropelr quem quer que fosse que cruzasse o seu caminho.

— Pare, você vai bater! — eu gritava apavorada, quando ele corria na contramão.

— Você é minha, só minha. Vamos para longe e viver essa vida que sempre sonhei. Quero me casar, ter filhos, serei o melhor marido que você poderia ter.  

— Eu fico contigo, Raul, mas por favor, pare — implorei.

— Eu não vou para a cadeia, Cíntia!

— Não, você não vai. Nós vamos para nossa casa, lembra? O nosso apartamento, vamos recomeçar do zero... só nós dois.

— Mentirosa, você só quer me iludir — Raul começou a chorar ao volante.

— Não, eu falo sério. Vamos para nossa casa, só eu e você e... mais ninguém.

— Promete?

— Sim.

— Seremos felizes, minha princesa. Eu e você, juntos como está escrito nas escrituras — ele finalmente começou a reduzir a velocidade. — Você é a minha metade.

Um barulho alto me chamou a atenção e atrás dele veio uma sequência avassaladora, eram os policiais atirando.

— Droga!

— Pare, Raul, eu te imploro!

Mais disparos, me encolhi amedrontada, mas isso parecia não afetar o motorista ao meu lado.

— Desistam seus otários — ele gritava, voltando a acelerar. — Felizes para sempre, eu e minha garota.

Seu semblante era algo sinistro, olhar estreito, sorriso fino elevando o canto da boca, definitivamente eu não conhecia o homem ao meu lado. Raul praticava corrida de kart, ele não tinha medo da velocidade, era apaixonado por tudo o que envolvia corrida automobilística, acredito que isso facilitou sua fuga. 

Era astuto e se esquivava com uma habilidade impressionante, executando cavalinhos de pau e subindo nas calçadas como se desafiando as leis da gravidade. Era um verdadeiro pesadelo sobre rodas, até que, de repente, ele se lançou em uma estrada de chão. O coração acelerou ao perceber que era a mesma trilha que eu havia cruzado com Otávio e Manu apenas algumas horas antes, a estrada que nos levava para a fazenda. 

A ideia de que ele poderia estar indo para minha casa começou a assombrar minha mente. Meus pais, meus amigos, Rodolfo... O desespero crescia. Ele não podia chegar até lá, não com uma arma na mão, descontrolado e violento. Não, definitivamente não podia.

— Raul, eu faço tudo que você quiser, mas pare o carro — implorei mais uma vez.

A poeira da estrada era intensa não permitindo a visão atrás de nós, dificultando o trabalho da polícia. Raul pulava os relevos da estrada com aquele carro correndo feito um louco, ao menos ali não tinha movimento. A polícia atirava, mas parecia que alguma coisa desviava as balas, sei lá se não miravam para acertar por ter refém ali dentro, também não tive tempo de pensar nisso.

— Não atende! — ele gritou, quando meu telefone tocou.

O aparelho havia caído na lateral da porta em algum momento da fuga, olhei para a tela acesa e vi a foto de Rodolfo aparecendo. Eu atendi, já estava tudo perdido mesmo.

— Socorro! — gritei aflita.

— Desliga essa merda! — Raul deu um tapa em minha mão.

Ele não conseguiu derrubar o celular, coloquei no viva-voz e joguei novamente no canto da porta.

— Cíntia, vai ficar tudo bem, meu amor, fique calma.

— Desliga!

Raul tentou me atingir novamente com aquela arma, mas, em um movimento desajeitado, ela caiu entre seus pés. Meu coração disparava, e eu mal conseguia ouvir a voz de Rodolfo do outro lado com aquela gritaria — o som do carro zunindo sobre o cascalho solto, tiros ecoando como trovões, sirenes uivando como bestas famintas. Era uma cena de puro horror, um pesadelo vivo.

— Diz pra minha mãe e meu pai que eu amo eles! — eu gritei, a voz tremendo de desespero.

— Não, por favor!

— Eu te amo, Rodolfo, não se esqueça disso — falei em lágrimas, quando o carro passava em alta velocidade próximo a uma ribanceira. Não pensei duas vezes, levei a mão até seu cinto, e desconectei.

— Não!

Ele gritou me impedindo de fazer o mesmo com o meu, e então, em um impulso... puxei o freio de mão.

— Cíntia! — Raul gritou, mas tudo o que eu via era o mundo girando.

O carro capotou violentamente, saiu da estrada e caiu barranco abaixo. Mesmo com os airbags inflados, era como se meus ossos se quebrassem em mil pedaços, coisas me acertavam, o homem ao meu lado era lançado de um lado para o outro, e quando o carro finalmente parou, eu já estava perdendo a consciência.

"Mãe", chamei em pensamento, o eco da palavra preso na garganta como um grito abafado. A boca estava tão seca que parecia colar os lábios, e cada tentativa de falar gerava uma tosse violenta que me fazia cuspir algo quente e espesso. Era sangue? O gosto metálico enchia minha boca, e o desespero tomava conta de mim, enquanto a sombra da dor se aproximava, ameaçando engolir tudo ao meu redor. 

Naquela altura o corpo já não doía, os olhos abriam e fechavam enquanto tentava me manter lúcida.

"Ajuda", eu clamava em pensamento, não conseguia soltar uma única palavra.

— Aai — um gemido abafado me chamou a atenção. Era Raul do lado de fora em uma cena de horror.

Ele tinha sangue por todo o corpo e estava contorcido no chão. Nunca vi algo tão terrível em toda a minha vida, não consegui chamar, só movia os olhos presa entre as ferragens.

— Minha Cíntia — ele sussurrou, me buscando com o olhar. Aquela cena nunca saiu de minha cabeça. — Meu eterno amor.

Raul  se contorcia, sua voz foi se apagando aos poucos, como uma luz se extinguindo na escuridão. Minha mente, em um turbilhão de emoções, clareava e escurecia, lutando para compreender a realidade diante de mim. O raciocínio começou a se desvanecer, enquanto tudo ao meu redor se tornava um borrão de desespero e impotência.

— Me perdoa.

Essa foi a última frase decifrável que ouvi de seus lábios, e enquanto ele me encarava fixamente, a dor em seu rosto se intensificava, transformando-o em uma sombra do que um dia foi. Estava desfigurado, consumido pelo sofrimento, agonizando assim como eu.

— Me perdoa, Raul — sussurrei, enquanto seus olhos se fechavam diante de mim.

Em minha mente vinha a imagem de Otávio sagrando, Emanuelle chorando com ele nos braços. Lembranças do meu pai me abraçando quando retornei, aquele momento agora parecia tão distante. E minha mãe... eu tinha que ter escutado seus conselhos, agora era tarde demais. 

— Aqui!

Uma voz lá no fundo me fez abrir os olhos.

— Ele está vivo, olhem a garota!

Tentei me comunicar, mas foi em vão, eu não conseguia, só via vultos de pessoas se aproximando, não demorou muito já não existia mais nada, somente o vazio.

"Desculpa mãe"

Essa frase ecoava em minha cabeça, lá no fundo da consciência.

— Está me ouvindo?

Dizia uma voz grave jogando uma luz em meus olhos, mas eu não conseguia responder.

— É o filho do deputado e a noiva.

Outra voz grave.

— Qual o seu nome? Você precisa ficar comigo, entendeu?

— Mãe — soltei um murmúrio fraco.

Eu não sabia quanto tempo havia se passado, não era um local de fácil acesso. Abria e fechava os olhos, uma voz grave de um homem debruçado no chão segurando a minha mão falava comigo até que começaram e fazer uns barulhos altos, tiveram que cortar a lataria do carro.

— Moça, estamos... teremos... está me ouvindo?

Eu me esforçava, dizia alguma coisa que minha mente não acompanhava, e os ecos de vozes variadas também não faziam sentido. Apertava a mão daquele homem, como se fosse minha única esperança de vida, e ele falava palavras de consolo, bem, eu achava que era, seu tom de voz era calmo, não me lembro de ter soltado sua mão uma única vez, até perder a consciência.

▬☼▬

Uma sensação estranha percorreu meu corpo, senti um baque muito forte e tentei abrir os olhos, mas não obtive sucesso. Dor, muita dor, nunca senti nada igual, e a angústia de tentar abrir os olhos, tentando me comunicar e não conseguir, era um tormento. Estava tudo muito distante, muito confuso, vozes à minha volta, barulho, movimento, choro, mas nada daquilo me despertava o suficiente para sequer conseguir abrir os olhos.

"A mãe está aqui, minha filha."

A voz de minha mãe ecoava distante em minha mente em meio a aquela escuridão em que me encontrava.

"Você vai sair dessa, princesinha do pai."

Cheguei até sentir a carícia feita pela mão de meu pai em meu rosto, mas o sono era tão profundo que não consegui reagir.

"O que eu faço da minha vida sem você?"

A voz de Rodolfo ecoava pela minha mente, e mais uma vez não consegui responder. Eu apenas ouvia lá ao longe, distante, cada vez mais distante, até que tudo ficou calmo, escuro, silencioso. Uma vez ou outra ouvia alguma coisa a minha volta, mas nada que fizesse sentido. Não sentia dor, medo, tristeza, nada. Era só um sono profundo, um vazio que foi se dissipando aos poucos até que, por fim, consegui enxergar a luz.

— Oi.

Pisquei várias vezes tentando me acostumar com a claridade. Estava tonta, bastante sonolenta, mas já conseguia manter os olhos abertos.

— Mãe — falei para aquela figura feminina que mexia comigo.

— Ela já vem — a mulher respondeu, jogando uma luz irritante em meus olhos.

— Quem é você? — perguntei, levando a mão até o rosto, mas a mulher bloqueou meu movimento.

— Não mexe, é a sonda de alimentação. Não pode tirar.

— É ruim.

— Eu sei, mas é preciso — ela esboçou um sorriso discreto dando tapinhas leves sobre minha mão. — Sou a doutora Nilza, está sentindo alguma coisa?

— Minha mãe, ela se chama Nilza.

— Eu conheço a sua mãe. Ela está sempre aqui, segurando a sua mão. E seu pai... eu o conheço também. Você é uma pessoa muito querida, sempre cercada de visitas. 

— Precisou dar uma saída, mas já volta.

Corri o olhar pelo quarto e a confusão tomou conta de mim. Se não estivesse vendo com meus próprios olhos, duvidaria da sanidade que ainda me restava. Aquela parede com um retângulo de vidro, a poltrona azul, o armário, era tudo exatamente igual; eu estava em um quarto idêntico ao que o pai do Rodolfo ficava. E quando a enfermeira se aproximou da cama, tive a certeza de que era o mesmo local, eu só não sabia como, nem quando fui parar ali.

— Avisou ela? — a doutora perguntou, se afastando com uma nova figura vestida de branco que não notei estar por ali antes. A outra ficou no quarto trocando as medicações, verificando aquela máquina barulhenta e anotando alguma coisa em sua prancheta. Me senti um rato de laboratório.

Ainda estava muito sonolenta, talvez pelas medicações, sei lá, mal falaram comigo e já me deixaram sozinha. Não consegui me manter acordada, acabei adormecendo outra vez.

"Cíntia!"

"Otávio!"

Ele estava caído no chão, havia muito sangue, pessoas corriam à sua volta, mas ninguém o socorria. Tentei chegar mais perto, mas era como se não conseguisse sair do lugar.

"Cíntia!"

Ele continuava me chamando, mas era inútil tentar correr, me sentia cansada, impulsionava meu corpo, até tentei voar, mas não conseguia; ele estava cada vez mais longe.

— Otávio!

— Calma, filha, estou aqui!

— Mãe! — eu respirava acelerado, sendo acolhida pelos seus braços. — Mãe, o Ferrugem, ele...

— Ele está bem.

Quando ouvi aquela frase, desabei em lágrimas. Ele estava vivo! Meu amigo não havia morrido. Um turbilhão de emoções me invadiu, e eu mal consegui respirar. Tentei me levantar, mas a enfermeira me segurou e foi só então que notei a perna com aqueles fixadores de metal.

— Não pode se levantar.

— O Otávio... eu atravessei a rua, ele pediu para não ir, o Raul atirou no Otávio!

— Calma, filha, não pode se agitar assim!

Minha mãe tentava me segurar enquanto a enfermeira mexia naquelas máquinas barulhentas, mais profissionais vieram e demorei a me acalmar. Eu estava sendo dopada.

"Seremos felizes, minha princesa. Eu e você, juntos, como está escrito nas escrituras. Você é a minha metade."

"Eu não vou para a cadeia, Cíntia."

"Não atravessa a rua."

Acordei agitada mais uma vez, atormentada pelos pesadelos. Mas, ao sentir o abraço firme do meu pai, as lágrimas vieram. Chorei, mas desta vez foi de alívio por estar novamente em seus braços. Era como se eu tivesse renascido. A enfermeira voltou, mas não me fez dormir. Ela e os outros conversaram comigo até que eu conseguisse me acalmar.

— Está se sentindo melhor? — perguntou meu pai, que estava sentado à beira de minha cama segurando minha mão. Em pé ao seu lado, minha mãe me olhava preocupada.

— Isso tudo não foi um sonho, foi?

— Infelizmente, não — respondeu ele, olhando para baixo.

— O Raul... ele...

— Ele sobreviveu, fique calma — interveio minha mãe.

— Por favor, não mintam para mim — pedi, aflita.

— Ele está em coma. Eu nunca mentiria para você.

Fechei os olhos, permitindo que uma lágrima escorresse. Não queria que tudo terminasse assim. Embora não me lembrasse de cada detalhe, as memórias que me vinham à mente me deixavam culpada. Eu sabia que poderia ter evitado isso; fui ingênua e teimosa. Agora, enfrentava o preço dessa escolha, que era alto e doloroso. Com certeza levaria muito tempo para superar esse sentimento, e ainda não compreendia a profundidade daquela tragédia.

— Acabou, filha, vai ficar tudo bem agora — meu pai acariciou meu rosto com a voz trêmula.

Após aquele momento intenso a psicóloga foi falar comigo, e foi assim que descobri que tive uma parada cardíaca ainda na ambulância logo que fui resgatada. Meu coma era induzido, me apagaram por oito dias até que começassem a reduzir os sedativos. 

Passei por uma cirurgia na tíbia esquerda, um dos ossos abaixo do joelho, tive uma fratura externa e vários ferimentos pelo corpo. Graças ao cinto de segurança e ao airbag não levei a pior, como o Raul, que teve uma de suas pernas amputada, fratura de quadril, costelas e outras mais leves. Seu coma era devido ao traumatismo craniano, o médico alertou a família para a gravidade de seu quadro clínico, agora era só esperar que reagisse.

Otávio foi atingido por dois tiros à queima-roupa: um feriu seu baço, enquanto o outro atingiu sua coluna, resultando na perda dos movimentos do corpo. Ao receber a notícia, um profundo arrependimento me consumiu; sentia que era culpa minha, fruto da minha falta de coragem. Agora, as pessoas que eu amava estavam sofrendo por causa do meu erro. No auge do meu desespero, uma luz de esperança surgiu quando soube que Rodolfo não estava ali porque, naquele exato momento, ele se encontrava no centro cirúrgico, realizando a cirurgia que poderia salvar Otávio de passar o resto dos seus dias, acamado.

O médico que o atendeu em Campo Grande não retirou a bala, ele achou muito arriscado ela estava em uma parte bem difícil e a vértebra estava estilhaçada. Mas o grandalhão disse que não ia perder a fé e assumiu o risco, o levou para São Luís, no hospital da família e encarou o desafio. Todas as esperanças estavam naquelas mãos, existia uma pequena chance de êxito, mas ele não desistiu de tentar.

— Você acordou.

Olhei para a porta do quarto e sorri ao ver Rafael se aproximando.

— Me desculpa Rafa, se eu soubesse...

— Ei — ele me abraçou. — Tudo bem, o pior já passou. Olhe ali, a doutora não deixou eles entrarem, já tem muita gente no quarto.

Quando olhei para aquele retângulo de vidro, avistei Manu e Fabiano acenando com um sorriso. Não contive as lágrimas, pensei que nunca mais fosse vê-los novamente.

— Me sinto em um aquário — eu ri, desenhando um coração no ar como resposta para Manu, que havia me feito isso.

— A tia Tereza está na sala de espera aguardando o fim da cirurgia do Ferrugem — comentou Rafael, apertando minha mão.

— Ele vai ficar bem, o Rodolfo é um médico muito bom — comentei.

— Vai sim — Rafael sorriu com lágrimas nos olhos. — É tão bom ouvir a sua voz.

— A paciente vai tomar banho e tem uns exames para fazer — disse uma enfermeira.

— Fomos expulsos — Rafael sorriu. — Mais tarde Manu e Fabiano entram para te ver.

— Não quero ficar sozinha, não gosto de hospitais.

— Você nunca esteve sozinha, aquela mulher ali — Rafael apontou para minha mãe que estava sentada na poltrona ao lado do meu pai. — Ela e aquele homem com cara de mal, mas que tem um coração gigante estiveram aqui todo esse tempo segurando a sua mão. Nós estivemos, assim como o Rô, que praticamente se mudou para esse quarto.

— Eu amo todos vocês — sorri ganhando um beijo na testa.

— Cíntia, eu vou com seu pai dar uma força para Tereza enquanto você se banha e faz os exames — avisou minha mãe.

— Vai ficar tudo bem, o Ferrugem é guerreiro, eu sei que vai vencer mais essa — falei confiante.

— Não tenta levantar, e obedece as meninas.

Enquanto eles deixavam o quarto, eu ria de suas recomendações como se eu fosse uma criança de cinco anos. Realmente, para os pais os filhos nunca crescem.

▬☼▬

Retiraram a sonda que irritava meu nariz e, depois de um banho, fui levada em uma maca até a sala de tomografia. Estavam monitorando um coágulo que se formou no meu cérebro, e isso foi um dos motivos para eu ter ficado em coma induzido. Tive algumas crises convulsivas e, embora não me lembre, passei por momentos de grande agitação. Às vezes, ainda escuto o som peculiar daquela máquina com luzes girando ao meu redor; se pudesse, teria fugido dela.

— Está diminuindo, é provável que o corpo absorva — disse uma voz masculina que não sei de quem era, não consegui levantar a cabeça para ver além daquela porta.

O jovem alto de traços orientais que me colocou naquela máquina, retornou e me ajudou a deitar na maca outra vez. Feito isso, ele me levou até uma outra sala para aguardar a enfermagem do setor a fim de retornar para o quarto, e foi ali que tive minha maior surpresa...

— Não deixe que ninguém entre aqui.

Eu ainda estava confusa, com raciocínio lento, mas jamais deixaria de reconhecer aquela voz, que me trouxe péssimas lembranças...

— Dona Clô — falei com o coração acelerado.

Ela se aproximou, como sempre, com sua presença marcante e passos elegantes. Meus olhos acompanharam seu salto preto, fino, que ecoava no chão de porcelanato branco. Vestia uma calça de alfaiataria em um tom bege claro e uma blusa branca, adornada com uma corrente dourada e um pingente discreto que harmonizava perfeitamente com os brincos que usava. Alta e esbelta, ela irradiava a graça de uma verdadeira dama da alta sociedade, e sua classe era inegável.

— Como se sente? — perguntou ao se sentar em uma cadeira ao lado da maca onde eu estava.

— Minha cabeça dói um pouco, mas estou bem — respondi desconfiada.

Dona Clô ajeitou sua postura, colocando a trança comprida, que repousava pelo seu ombro para trás.

— Eu soube que iam diminuir o sedativo, pedi que me avisassem quando acordasse.

— Dona Clô, eu...

— Cíntia, eu não sou muito boa com sentimentalismo, mas queria te pedir desculpas.

— Desculpas?

Ela cruzou as pernas se ajeitando na cadeira, e repousou as mão sobre seu joelho ainda me olhando de uma forma estranha.

— Eu era uma moça simples, assim como você, quando conheci Muhammad. Ele veio ao Brasil passar férias com a família e se hospedou na pousada onde minha mãe trabalhava. Foi ali que o vi pela primeira vez. Nunca imaginei que aquele rapaz bonito e rico se interessaria por mim, uma garota pobre, negra, de chinelo e vestido de chita. — Percebi que seus olhos se estreitaram enquanto falava, talvez revivendo aquele momento. — Ele falava português com dificuldade, mas conseguimos nos entender. Nossa conexão começou numa noite de luau na praia. Desde então, nos encontramos todos os dias, e aquele amor de verão me levou para o outro lado do mundo.

Eu não entendi aquela aproximação, tampouco aquele relato de sua vida, então não soube o que responder, apenas esbocei um sorriso forçado ouvindo a continuação de sua história.

— Eu tinha quatorze anos, não fazia ideia de como seria a vida em um país com costumes tão diferentes. Já sofria um certo preconceito em alguns lugares aqui no Brasil por ser negra, mas lá no Marrocos conheci a dificuldade de ser mulher em uma sociedade comandada pelos homens. Eu tive que conquistar o meu espaço e não foi fácil, foram longas batalhas até chegar onde cheguei.

— O Rodolfo me contou um pouco sobre isso, ele tem muito orgulho da senhora.

— Eu não sei em que momento me tornei essa mulher dura e fria, não era assim. Talvez a dor de ser traída, ou a responsabilidade frente a família, eu fui me perdendo e não queria aceitar que isso era prejudicial. Meu casamento foi desfeito, meus filhos já trilhavam seus próprios caminhos, acabei ficando sozinha. O Rafael sempre foi mais desapegado, mas o Rodolfo era o meu menino — disse ela com lágrimas nos olhos. — Ele sempre foi responsável, carinhoso, era tudo o que me restava e isso me fez criar um certo sentimento de posse. Não aceitava que outra mulher pudesse ser mais importante do que eu em sua vida, ainda não consigo lidar com isso.

— Mas nunca vai ser, são sentimentos diferentes, e...

Tentei formular algumas frases, mas entendi que ela só queria desabafar, então respeitei o seu momento.

— Eu me tornei uma mulher independente, poderosa, com um cargo importante em uma empresa de nome em Dubai. A única mulher na diretoria do Grupo Abdalla, minha fala é lei e ninguém contesta. Mas quando volto para casa a solidão me espera na porta de entrada, e isso dói. Eu posso ligar e pedir qualquer coisa da rua, eles entregam na minha porta, mas atenção não é algo que se compre, afeto, carinho, cumplicidade.

Ela se levantou e caminhou pelo cômodo, onde só havia a maca e umas cadeiras. Respirou profundamente limpando a lágrima que escorreu pelo seu rosto, eu nunca pensei que fosse dizer isso, mas senti pena daquela mulher.

— A dama de aço não passa de uma mulher quebrada, vazia, solitária. Eu não podia perder a única pessoa que ainda me dava colo, o meu filho amado. Foi por isso que te tratei daquela forma — ela se virou para me encarar, e não consegui manter aquele contato visual.

— Mas eu...

— A Karina me ligou, disse que Rodolfo estava com uma garota que... Bem, ela me disse coisas horríveis ao seu respeito, me convenceu de que era melhor intervir, e foi isso que eu fiz. Você se lembra como foi que nos vimos pela primeira vez?

— Eu não gostaria de falar sobre isso — respondi sentindo o rosto esquentar.

— O Rodolfo jamais me enfrentou por conta de uma garota, e por você ele... Por você ele me pediu para ficar longe.

— Eu não sabia que...

Até tentei terminar a frase, mas o olhar daquela mulher me quebrou ao meio, então, mais uma vez me calei.

— Eu estava envenenada, enciumada, fui manipulada por aquela garota e meti os pés pelas mãos. Não vou jogar toda a culpa nela, é claro que agi consciente, eu estava com muita raiva de você por tomar o meu filho de mim.

— Mas eu nunca tomaria ele da senhora.

— Estou tratando isso em terapia, e vai levar um tempo até que consiga lidar com esse sentimento. Eu deixava a Karina se aproximar porque sabia que Rodolfo jamais voltaria para ela, nunca fomos amigas de fato.

— Nossa — desviei o olhar, revivendo algumas lembranças quando ela voltou a se sentar ao meu lado.

— Tenho uma longa caminhada pela frente, ainda me incomoda muito o fato de meu filho e você... — ela fez uma pausa, respirou fundo, então continuou. — Sei que agi errado o pressionando quando foi até sua casa, eu estava furiosa. Mas quando o vi desesperado temendo sua morte perdi o chão. Eu te trouxe até aqui, eu... eu dei ordens a equipe para fazer o melhor porque te queria bem, hospedei sua família e amigos no hotel aqui da frente e dei todo o suporte para que pudessem estar aqui todos os dias. Eu quis fazer isso, e sei que não muda o fato de que te humilhei, e também não me faz gostar de você. Mas reconheço que se ficar bem... o meu filho estará bem.

— Eu realmente não esperava por isso — falei de queixo caído.

— Talvez quando superar essa coisa que me faz refém aqui dentro, quando entender que posso ocupar o coração do meu filho ao lado de outra mulher, eu consiga te aceitar. Mas não posso ser falsa contigo, sinto raiva por vê-lo chorando à beira de seu leito, sinto mágoa por vê-lo abatido, sofrendo, e não consigo lutar contra esse sentimento. Eu juro que queria que fosse diferente, mas não é algo que eu possa arrancar de mim assim tão de repente.

— Não precisa se preocupar, eu jamais o afastaria da senhora.

— Só te peço que me perdoe por tudo o que te fiz, e que não magoe o meu Rodolfo. Ele é um bom homem, e merece ser feliz.

— Eu senti muita raiva da senhora, mas agora entendo seu comportamento. Não vou dizer que não sinto mágoa quando me lembro, mas agora sei que não fez por mal e que está buscando melhorar.

— O Rodolfo ainda está chateado, mas sei que um dia vamos nos entender. E você, menina, se cuida.

Ela se levantou e caminhou até a porta com a mesma postura que entrou.

— Dona Clô — falei me ajeitando na maca. — A senhora está de parabéns, criou dois homens de bem, eu amo seus filhos.

— Eu sei — ela finalmente sorriu para mim. — Não conte a ninguém sobre nossa conversa. Não somos amigas, eu ainda tenho uma longa caminhada até conseguir abrir as portas para que ele voe.

— Obrigada por tudo.

— Espero que seu amigo fique bem, eu percebi que é muito importante para o Rafael. O hospital está à disposição para tudo o que precisarem, e, não pense que as coisas que te contei foram para me vangloriar, só é um voto de confiança como uma forma de reparar o mal que te causei. Eu ia me esquecendo, meus advogados vão te procurar, de agora em diante, você e seu amigo estão sob a minha proteção.

— A senhora não é a megera que eu pensava.

— Eu sou sim — ela sorriu fechando a porta.

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