Capítulo 28 O mundo estava perdido

Rodolfo me olhava com um semblante sério, eu sabia o que estava assistindo, e senti como se o chão sumisse embaixo dos meus pés. Manu também percebeu a gravidade da situação e me lançou um olhar pesaroso, que foi capturado pelo Fabiano, que balançou a cabeça negativamente antes de levar a mão até o rosto. Vi toda essa cena em câmera lenta enquanto aquele nó insuportável subia pela garganta.

— Rodolfo, eu posso...

— Não — ele levantou a mão em um gesto para que não me aproximasse. — Eu não quero conversar contigo agora, não gosto de tratar assuntos sérios quando estou nervoso, e neste momento estou muito, mas muito decepcionado.

— Não é nada disso que está pensando — Fabiano se manifestou.

— Companheiro — Rodolfo repetiu o sinal para Fabiano. — Você não me deve explicações.

— Rô, me deixa explicar, eu...

Tentei novamente, mas ele estava irredutível.

— Agora, não. Eu preciso pensar, respirar, esfriar a cabeça. Talvez conversaremos amanhã.

— Por favor — implorei aflita. Meu queixo tremia, assim como minhas mãos.

— Eu fui fiel, Cíntia.

Foi a última coisa que ele disse antes de se recolher.

— O que aconteceu? — perguntou Rafael se aproximando apressado. — O Rô está chorando?

— Eu não tive culpa — abracei o Rafa deixando as lágrimas rolarem pelo meu rosto.

— Foi aquela blogueira namorada do Raul. Ela postou o vídeo do beijo, e ainda fez um texto distorcendo a verdade e insinuando que você já tinha um caso com o Fabiano quando estava noiva — disse Emanuelle me apontando o celular. — Ela te marcou, por isso ele viu.

— Que beijo, que blogueira, gente? Alguém me explica o que aconteceu? — Rafael começou a se desesperar, quando Otávio se aproximava.

— É uma brincadeira que fazem com a platéia em alguns rodeios. A câmera escolhe um casal na arquibancada e eles têm que se beijar — Fabiano explicou. — Eu beijei a Cíntia, ela não teve culpa. Estou assumindo meu erro, não quero que ela se prejudique por isso.

— Por que você não contou? — Rafael balançou a cabeça, impaciente.

— Eu ia contar, juro que ia — afirmei limpando o rosto com as mãos. — Ele não vai me perdoar, não entendo as pessoas me atacarem assim, não mexo com a vida de ninguém.

— Calma, meu amor — Rafael afagou meu cabelo com uma mão, enquanto a outra me apertava em seu abraço. — O Rô é sistemático assim mesmo, mas tem o coração mole, vai acabar cedendo.

— Ele ia me pedir em namoro e eu estraguei tudo — resmunguei em um sussurro abafado.

— Se tiver algo que eu possa fazer — Fabiano respirou profundamente colocando as mãos sobre o capô da caminhonete. Era visível o quanto se sentia culpado.

— Foi tão lindo o que vivemos nesse curto espaço de tempo, se ele soubesse como mudou a minha vida, eu... está doendo aqui — levei a mão até o peito voltando a ter o rosto molhado pelas lágrimas. — Dói pensar que uma mentira maldosa causou todo esse sofrimento.

— Vai lá, Rafa, traz ele aqui, a gente pode explicar, e... — ia dizendo Emanuelle.

— Conheço meu irmão, ele não vai querer ouvir ninguém agora, mas amanhã eu consigo falar com ele e explicar toda essa merda.

— Eu penso que o que vai pegar, nem será a brincadeira — Otávio se manifestou. — Se estavam juntos, você tinha que ter contado a ele.

— Ele estava chorando — falei com a voz embargada.

— Talvez não — afirmou Rafael. — Eu vi de relance, por isso perguntei.

— De qualquer forma ele ficou triste por minha causa. Eu o machuquei, sabia que estava cheio de problemas, eu sabia que estava sensível, só faço merda nessa vida!

— Realmente ele tem vivido uma pressão muito grande. Meu pai se foi, o Rô como primogênito herdou muitas responsabilidades, e até que aprenda a lidar com tudo isso, vai se sentir perdido. Eu choro, desabafo, consigo botar para fora o que sinto, mas ele guarda tudo para si, é como se existisse essa necessidade de se manter forte o tempo todo e sabemos que é humanamente impossível. Chega um momento em que acaba desabando.

— Eu passei tanto tempo ao lado da pessoa errada, e quando encontro a certa não consigo ficar com ela — lamentei.

— Quando eu precisei, você me defendeu — Rafael acariciou meu rosto me ofertando um sorriso. — Você foi amiga, confidente, companheira, e nunca vou conseguir te agradecer o suficiente, então, te prometo que no que depender de mim, essa mal amada vai ser desmascarada. Te deixei famosa, não deixei? Agora é a vez dela, ninguém mexe com as pessoas que eu amo.

— Você é necessário, Rafael, com certeza minha vida nunca mais será a mesma depois de sua passagem por ela.

— A minha também não.

— Bem, eu tenho que ir, preciso deixar a Manu em casa — disse o Fabiano, interrompendo nosso momento fofo.

— O Luan vai surtar quando souber — Otávio soltou uma risada nasal olhando para Manu, desabada no banco.

Ela ainda levaria um tempo para melhorar, o tio ia ficar furioso, não gostava que bebesse.

— Ele disse que se eu não fosse embora aquela hora era para me considerar solteira — Manu levantou a cabeça toda descabelada, ainda falando mole. — Perdi o namorado e não tirei nenhuma casquinha.

— Que casquinha, mulher? — Rafael soltou uma gargalhada espontânea. — A mulherada bebe e quer me atacar, eu, hein, que medo.

— Você vai ficar bem? — Fabiano perguntou com um semblante preocupado.

— Vou tentar dormir um pouco — esbocei um sorriso fraco.

— Se cuida — Ele acenou com a cabeça antes de dar a volta na caminhonete, funcionar o veículo, e sair.

Otávio me abraçou dizendo palavras de conforto, e enquanto Rafael o acompanhava até o carro, eu juntei os cacos do meu coração partido e fui para meu quarto. Agora tinha como companheira a escuridão da noite, juntamente com o cantar dos grilos que ecoavam como uma sinfonia triste na trilha sonora no capítulo do meu choro abafado. Só queria entender como uma pessoa que conscientemente prejudica a outra consegue botar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente. Eu nunca teria essa frieza, aliás, jamais faria algo do tipo.

"Gente, olha de onde ele quer pular comigo, será que meu coração aguenta? Olha isso, mãe, Manu, eu amo vocês, pai, me perdoa por te fazer passar vergonha, isso não é uma despedida eu só estou com muito medo. É isso, olha a cara dele rindo de mim, eu estou... olha lá embaixo, gente está me dando dor de barriga."

Eu ri revendo aquele vídeo, assim como vários que postei enquanto estive com eles no Maranhão. Ri ao me lembrar de quando espanquei o Rodolfo com uma concha, e corei com a recordação do meu traseiro estampado em uma conferência de medicina. Nosso beijo com trilha sonora naquela varanda, suas palavras carinhosas, aquele sorriso ao me ver dançando desengonçada no pagode. Ele nunca se importou com meus defeitos e ainda exaltava minhas qualidades, se soubesse como mudou a minha vida, como se fez importante nela, jamais soltaria a minha mão. Ainda mais por conta de uma mentira, e por falar em mentira...

— Filha de uma mãe! — praguejei ao ver a tal publicação. — Como pode ser tão babaca?

A garota editou o vídeo, postou fotos de nós dois abraçados na arquibancada trocando olhares e sorrisos. E não satisfeita, fez um texto enorme com suposições de que eu e Fabiano éramos amantes há algum tempo. Até dizer que existia uma "suspeita" de que o flagrante na boate foi armação minha aquela cobra disse, ela simplesmente me detonou limpando a barra do injustiçado, e agora meus seguidores me odiavam, me atacavam e me cancelavam, alguns até desejavam o meu mal usando palavras agressivas, xingamentos, ameaças.

"Devoradora de homens."

Esse era o apelido mais carinhoso que me atribuíram nos comentários da postagem.

"Depois amanhece com a boca cheia de formiga e não sabe porquê."

Em meio a tantos discursos de ódio, esse eu queria não ter entendido.

"Chifre trocado não dói, o Raul se livrou dessa meretriz."

— Não acredito que as pessoas estão acreditando nisso, que raiva de você! — protestei olhando a foto de perfil de Wendy, que sorria como se aquela imagem estivesse vendo a minha ruína.

Da noite para o dia minha vida que era tão calma, se transformou no caos absoluto, mal levantava de um tombo e já vinha outra rasteira me derrubando sem piedade. É incrível como as pessoas são facilmente manipuláveis, acreditam em tudo o que vê e depois ainda se acham no direito de apontar o dedo, julgando, condenando. 

Até queria dizer que aquilo não me afetou, mas a verdade é que ver aquela mentira sendo compartilhada pelas mesmas pessoas que antes me acolheram, me incentivaram, foi frustrante, eu jamais pensei que fosse passar por algo do tipo. 

A Internet é um local muito perigoso, se quem usa para atacar, afrontar, prejudicar uma pessoa, tivesse a noção do mal que isso causa, pensaria duas vezes. Principalmente porque o feitiço pode virar contra o feiticeiro nas voltas que o mundo dá.

▬☼▬

Ainda era madrugada quando fui em busca de algum analgésico, eu estava com muita dor de cabeça, talvez por privação do sono, ou até mesmo pelo estado emocional. Minha mãe costumava guardar o kit de medicamentos em uma gaveta na cozinha, então não demorei a encontrar, se bem que não existia um remédio específico para a dor que mais me consumia.

Ao retornar, percebi que a luz do quarto de hóspedes estava acesa e a porta entreaberta, então me aproximei, queria muito falar com ele, saber como estava, eu precisava de seu abraço. Rafael conversava com Rodolfo sentado em uma das camas, no chão suas malas estavam colocadas de um jeito que indicava que estava indo embora. Não preciso dizer o quanto aquela visão me afetou.

— Ela deveria ter confiado em mim, foi isso que me chateou, deixei claro desde o início que não gosto de exposição, e agora virei assunto nas rodas de fofoca do hospital. Se o doutor Tiago não tivesse me avisado, eu estaria até agora sem saber de nada.

Rodolfo dizia com um semblante abatido.

— Daremos um jeito de desmascarar aquela mentirosa, ela não sabe com quem se meteu.

— Pena que não mencionaram meu nome na postagem, eu adoraria comprar essa briga do meu jeito. Se ao menos ela me ouvisse — Rodolfo franziu o cenho mexendo no celular. — Consegui. Voo confirmado para às onze.

— Não acha melhor pensar direito, meu irmão? De repente acontece alguma coisa e essa situação muda, e...

— A menos que um milagre aconteça até às onze horas, estarei embarcando para o Maranhão.

Caminhei rumo ao meu quarto, desolada. Não tive coragem de bater na porta, sequer sabia como começar a dizer tudo o que sentia, e me conhecendo bem, com certeza desabaria a chorar e isso lhe causaria pena, um sentimento que eu odiava que sentissem de mim. Sei que não era hora de deixar meu lado orgulhoso falar mais alto, mas naquele momento, não consegui raciocinar o suficiente para agir de outra maneira. Se ele preferiu dar as costas, ao me ouvir, então que sua vontade fosse respeitada. Eu só não estaria ali para aquela despedida, aí já seria exigir demais.

"Oi"

A voz de Otávio era preguiçosa, logo percebi que estava dormindo quando liguei.

"Te acordei?"

"Não dormi a noite, estou sentindo muita dor na costela trincada."

"Você trincou a costela?"

"Sim, ele me empurrou e caí sobre um amontoado de ferros, um deles acabou fazendo esse estrago."

"Nossa, eu não sabia."

"Você está bem?"

Respirei profundamente, então respondi:

"Eu preciso de um favor."

"Se eu puder ajudar."

"Me tira da fazenda?"

"Como assim?"

Ele prontamente respondeu.

"Só me leva para algum lugar onde eu possa chorar e esquecer que o mundo existe."

Neste momento minha voz já falhava, mas não queria chorar, não agora.

"O que aconteceu, estou ficando preocupado."

"Só me tira daqui, eu preciso muito."

"Tudo bem, vou me trocar e já passo aí."

"Não, eu quero que meu pai me veja assim, prefiro que me espere na estrada, vou sair antes que se levantem"

"Não estou com um bom pressentimento."

"Não desista, por favor."

"Te espero perto do pé de Ipê roxo."

Eu nunca quis ter a minha vida exposta daquela maneira, usava rede social esporadicamente e da noite para o dia tudo mudou. Foi bom enquanto durou, mas a magia terminou e o que antes me causava risos, agora me causava lágrimas, desilusão. Não percebi quando subia até as nuvens, mas a queda foi mais difícil do que esperava. O preço da exposição é muito alto, foi pensando nisso que decidi apagar a minha conta e dar um tempo das redes sociais, pelo menos até que aquela tempestade passasse.

Pulei a janela do quarto e saí pelo pomar, eu não podia correr o risco de ser vista por algum peão naquele horário, ainda mais com aquela cara inchada logo perceberiam que não estava bem.

— Não late, por favor — falei para o caramelo que me seguia ao passar a cerca rumo a estrada.

Por ali não ficava muito longe, só tinha que passar por uma trilha no bosque e então sairia na entrada da colônia. A estrada ainda era dentro das terras da fazenda, não tinha muita movimentação naquele horário, pois o sol ainda nem havia nascido, mas tinha que ser rápida, no campo a lida começa muito cedo, e não tardaria a começarem a sair de suas casas.

— Bom dia — falei abrindo a porta do carro, e me acomodando no banco do carona.

— Bom dia — Otávio me encarou em silêncio por alguns segundos. — Essa crise existencial é contagiosa?

Olhei para ele que acenou com a cabeça para o banco de trás.

— Manu?

Emanuelle estava deitada no banco com cara de quem não dormiu, apenas acenou e disse para fingir que ela era uma planta. Olhei para Otávio que deu de ombros e voltei meu olhar para a garota desolada, sem entender nada.

— Eu estava vindo te encontrar quando me deparei com esse zumbi descabelado caminhando sozinha pela colônia, o curioso é que ela me fez o mesmo pedido que você, e agora estou aqui com as duas no carro tentando descobrir para onde vou.

— Só me leva para algum lugar, qualquer lugar — me enterrei no banco fechando os olhos.

— Mas, para onde?

— Qualquer lugar que não seja onde Wendy esteja, porque senão terá que me visitar no presídio.

Peguei o celular e entreguei em sua mão.

— Gente, o que é isso? — ele perguntou surpreso, lendo alguns comentários, era impossível acompanhar todos. — Esse povo não tem noção?

Não contive o choro e desabei sendo acolhida por seu abraço. Agora Manu deixou de ser planta e praguejava no banco de trás olhando para o celular, até me esqueci de perguntar o motivo da garota estar ali.

— Eu não aguento mais, queria sumir, desaparecer, até que essa tempestade passasse.

— Ah, minha linda, queria muito poder te ajudar, mas não sei o que fazer — ele disse, afagando meu cabelo até que me acalmasse.

— Eu estava feliz, contava os dias para vestir o vestido branco, ficava sonhando acordada com minha entrada na igreja de braços dados com meu pai. Me lembro do olhar da minha mãe na última prova do vestido, ela estava tão orgulhosa de mim, e estraguei tudo.

— Ei, você não estragou nada, o cara te traiu — Otávio segurou meu rosto entre as mãos, de modo que meu olhar encontrasse o seu. — Toda essa confusão é culpa dele, não sua, então pare de se torturar e tome uma providência.

— Eu não estou perseguindo o Raul, não quero voltar para ele, então porque tenho que ser atingida dessa forma?

— A garota só quer engajamento, viu a explosão que aconteceu contigo e está pegando carona. Mas existe uma coisa chamada justiça, e quanto antes você procurar os seus direitos, mais rápido se verá livre dessa dor de cabeça.

— Se quiser dar uma coça nela, eu seguro — Emanuelle se manifestou.

— Dá ideia, não — Otávio a repreendeu. — Estou todo estropiado, não vou conseguir defender nenhuma das duas se arrumarem confusão.

— Estraga prazeres — Emanuelle fez uma careta engraçada para o peão que retribuiu.

— Me leva na igreja? — Perguntei ganhando um olhar surpreso dos dois. — Eu preciso de respostas, e lá consigo meditar com tranquilidade.

— Em qual igreja você quer ir? — Otávio perguntou, ligando o carro.

— Se não se importar, eu gostaria de ir até a matriz.

— Orações são sempre bem vindas — afirmou Otávio ao cruzarmos as fronteiras da fazenda. — E também reduzem as chances de eu ser esfolado vivo pelos pais das bonecas fugitivas.

— Eu ainda acho que deveríamos comprar cordas, alicate e uma...

— Volta a ser uma planta, Manu — disse ele para a garota que respondeu com um gesto obsceno.

— Porque você está aqui mesmo? — perguntei curiosa, a encarando pelo retrovisor central.

— Estou fugindo de ter que encontrar o Luan depois de ter beijado o Fabiano.

— O quê?

Um uníssono ecoou pelo carro, Otávio freou bruscamente se virando para trás, eu deixei o queixo cair, não esperava aquela novidade. Agora, sim, eu tive certeza de que o mundo estava perdido.

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