Capítulo 24 Eu não vou voltar

Otávio contou ao meu pai sobre sua briga com Raul, mas não mencionou o beijo, o que me deixou momentaneamente aliviada, eu sabia que mais cedo ou mais tarde viria à tona, só não precisava enfrentar isso agora. 

O Fabiano também contou sobre a confusão onde rolou algumas ofensas e acabei lhe acertando com um tapa que por pouco não foi devolvido. O Rodolfo observava atentamente de braços cruzados com o cenho franzido, é incrível como ele se destacava por seu tamanho entre todos ali. Mesmo meu pai e os rapazes não sendo baixinhos como o Raul, ainda assim, ele era bem maior e mais forte, logo imaginei esse homem explodindo, não queria estar na pele do meu ex-noivo se isso acontecesse.

— Não vou prestar queixa contra ele — falei irredutível.

Eu sabia que se prestasse queixa contra ele não teria paz por um longo tempo. Raul não era de confusão, mas sua mãe não deixaria isso barato, sua assessoria, esse povo tem influência em todos os lugares. Como uma família de vida pública, eles viviam metidos em polêmicas, mas nunca ouvi dizer que se deram mal, afinal, nesse meio literalmente a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco. 

Sem contar que meu antigo celular onde havia áudios, registro de ligações e mensagens que serviriam de provas foi destruído pela dona Clô. Ou seja, era melhor ficar quieta e esperar a poeira baixar, rezando para que seu novo relacionamento desse certo e ele me deixasse em paz. Não entendo o porquê de as pessoas ficarem se matando depois de uma separação, eu fui traída, desci até o inferno com aquela decepção, mas ainda assim, só queria seguir a minha vida em paz. Dane-se meu ex-noivo, que fosse feliz ou não, mas vivesse sua vida sem se envolver com a minha. Será que era pedir muito?

— Mas é cabeça dura — Otávio bufou contrariado, diante de minha recusa.

— Cíntia, você precisa tomar providências antes que a situação piore — insistiu Rodolfo. — O cara quase te agrediu, isso é preocupante.

— Eu o agredi primeiro — tentei justificar o injustificável.

— Eu mato, juro que mato esse infeliz se tocar na minha filha — meu pai esmurrou a janela à sua frente, fazendo com que estilhaços de vidro se espalhasse por todos os lugares. Inclusive um me acertou no rosto causando um pequeno corte.

Eu me encolhi com o susto, os rapazes intercederam quando tentou repetir o ato, já havia muito sangue em suas mãos, vestes, assim como no chão e parede. Minha mãe veio correndo acompanhada de Rafael e dona Tereza, se deparando com aquela cena de horror. Rodolfo levou meu pai para dentro a fim de prestar o devido socorro e eu chorava sem saber o que era maior, se o sentimento de culpa, ou medo de que acontecesse alguma coisa com ele.

— Sei que não é hora, mas olhe bem para essa cena e decida se ainda vai insistir nessa ideia absurda de não fazer nada — Otávio gesticulou à minha frente.

— Você contou a ele sobre a briga, eu pedi que não contasse, droga! — bati em seu peito transtornada.

— Amigos não dizem só o que deseja ouvir, então dane-se se vai ficar com raiva precisa acordar para a vida e parar de achar que aquele cara é inofensivo. Não espere alguém levar a pior para tomar uma postura, Cíntia!

Ele passou por mim indo em direção a sala onde meu pai estava deitado no sofá, passando mal. Essa era a diferença entre os dois, enquanto Otávio era impulsivo, impaciente, seu irmão era ponderado, quase nunca demonstra descontrole, porém igualmente correto, pois os dois tiveram uma educação impecável com um pai exemplar que sempre cobrou muito os filhos em relação à sua postura diante de uma mulher.

— Eu não suporto mais isso! — levei as mãos até o rosto e chorei, eu não queria que as coisas tomassem aquele rumo.

— Ei, vai ficar tudo bem.

Em meio a aquele caos, Fabiano me acolheu passando a mão pelo meu ombro, me aconchegando em seu peito. Eu olhava para meu pai, e me sentia a pior das criaturas, tremia, chorava e soluçava ao mesmo tempo vendo Rodolfo limpar aquele sangue que escorria pelos cortes de sua mão, ali mesmo na sala, onde ele estava desabado no sofá com minha mãe ao seu lado vasculhando uma caixa de remédios.

— Não vou me perdoar se alguma coisa acontecer com meu pai — limpei as lágrimas do rosto tentando ir em sua direção, mas o peão me impediu.

— Já tem muita gente em volta, ele vai ficar ainda mais nervoso. Venha, vou limpar esse corte da sua testa, sangrou pouco, mas pode infeccionar.

Eu o acompanhei até a torneira do jardim, onde ele lavou meu rosto com água corrente.

— Não quero ter que mexer com polícia, Fabiano, não tenho mais as provas que incriminavam o Raul. Perdi tudo, mensagens escritas, de áudio, registro de ligações, essas coisas demoram a ter uma resolução e será como estender o problema — falei quando ele fechava a torneira a nossa frente. — Eu juro que não queria que as coisas chegassem a esse extremo.

A verdade é que, por mais que Raul estivesse extrapolando, não conseguia ver o perigo que eles insistiam em apontar. Não fazia sentido algum, o homem que eu conhecia, que convivi durante três longos anos, poderia até ser ausente, desligado, infiel, mas nunca violento. Eles viram um homem desconstruído que passava por uma separação complicada, mas eu o conhecia entre quatro paredes e sabia que atitudes agressivas não condiziam com sua realidade. Ele perdeu a cabeça ao me ver com outro, qualquer um ali teria extrapolado, eu mesma fiz isso quando foi comigo. Sinceramente, pensava que denunciá-lo só faria aumentar o problema, eu o acusaria do quê?

— O que foi? — perguntei ao retornar para a sala e ver uma movimentação diferente.

— Um pico hipertensivo — disse Rodolfo o ajudando a caminhar.

Eu vi meu mundo desabando ao presenciar meu pai tendo uma crise nervosa, ele sempre foi forte, inabalável. Agora meu herói desabava por minha causa, por minhas escolhas erradas, eu só queria sumir para bem longe onde não pudesse atingir a mais ninguém.

— Ele não quer ir para o hospital — disse Rafael se aproximando. — A teimosia pelo visto é hereditária.

— Eu posso pedir, posso tentar, ele vai me ouvir — me apressei indo em direção a porta, mas a mão do Rafael me segurou pelo braço.

— Calma, o Rô é médico, se achar que não consegue controlar a situação aqui com certeza vai dar um jeito.

— Ele é teimoso, não vai querer ir — afirmei preocupada.

— Eu conheço meu irmão, se ele disser que consegue controlar a situação, pode confiar.

Meu pai tinha cortes em sua mão que precisariam de pontos, pois, apesar de pequenos, eram profundos, mas teimoso que só vendo, bateu o pé que não iria de forma alguma ao hospital. Rodolfo acatou sua decisão a fim de não piorar seu estado emocional, que foi o principal motivo daquela crise hipertensiva, que para nosso alívio, foi controlada com medicamentos de uso contínuo que ele já vinha tomando.

Eu não pude entrar em seu quarto, Rodolfo ajudava minha mãe a banhá-lo a fim de se livrar daquele sangue que cobria uma boa parte de sua pele e o tecido do uniforme que vestia. A crise foi tão forte que seu corpo enrijeceu, os músculos contraíram, mal conseguia se mover, mas graças aos céus ele foi bem assistido por um profissional excepcional que o tratou com toda a dedicação e respeito que um ser humano merece.

Quando deixaram o quarto ele estava dormindo.

▬☼▬

No auge dos meus vinte e um anos, aquela foi a primeira vez que vi meu pai desabar em uma cama em plena luz do dia. Aquela cena foi como uma facada certeira em meu coração, ele estava assim por minha causa, pela preocupação que lhe causei, e eu sequer fiz por merecer aquela culpa.

"Você até já tem outra, Raul, porque não me deixa em paz?"

Era a frase que se repetia em minha mente, enquanto padecia desabada no chão, velando a porta do quarto de meus pais, me torturando com a dúvida de que talvez se tivesse aceitado o casamento, ou tivesse conversado com o Raul de uma forma mais leve, sei lá, pudesse ter de alguma forma evitado aquela situação. Com toda certeza do mundo aquela cena ficaria gravada em minha cabeça pelo resto da vida. Eu ali, sentada, olhando para aquela porta fechada, pensando no mal que causei à minha família.

— Como ele está? — perguntei ao Rodolfo quando saiu do quarto pela, sei lá, terceira ou quarta vez.

Ele se sentou ao meu lado naquele chão, que apesar de ser de madeira, parecia frio embaixo de mim. Ainda não havíamos conversado, depois de estabilizar meu pai, ele deu uma atenção especial a minha mãe que tentava ser forte, mas acabou desabando.

— Ele vem enfrentado muitas coisas, guardando para si e acabou não dando conta — Rodolfo respondeu afagando meu cabelo quando apoiei a cabeça em seu ombro.

— Ele poderia ter morrido, não é? — ousei ao perguntar, só não tinha certeza se gostaria da resposta.

Rodolfo respirou profundamente e me puxou para um abraço.

— Ele precisa de um acompanhamento, não é apenas sobre a pressão arterial, o emocional interfere bastante. Tive muito medo de que...

— O seu pai — o interrompi me afastando o suficiente para olhar em seu rosto. — Foi isso que aconteceu com ele?

— A crise nervosa — ele fechou os olhos e escorou sua cabeça na parede deixando que uma lágrima discreta escorresse pelo seu rosto. — Era como se estivesse revivendo aquela cena, só que não pude salvá-lo. Eu tentei, tentei amenizar seu sofrimento todos os anos em que ficou preso naquela cama, eu me culpava por ser egoísta e não aceitar que pudesse me deixar.

— Você fez tudo o que podia por ele, e...

— Você pode se levantar daqui e abrir aquela porta. Você pode se aproximar daquela cama e dizer ao seu pai tudo o que sente, pode abraçá-lo, sentir o calor de seu abraço de volta. Eu não.

— Rodolfo, eu...

— Você ainda tem esse privilégio, Cíntia, valorize. Eu acabei de sepultar meu pai, o cara que por mais imperfeito que fosse, eu queria aqui comigo. Hoje só restou o vazio.

— Você foi incrível — segurei seu rosto entre minhas mãos, de modo que seus olhos encarassem os meus. — Nunca vou poder te agradecer o suficiente.

— Enquanto eu puder usar meus conhecimentos para salvar vidas, sei que estou sendo útil em algum lugar. Eu vivia por ele, me dedicava todos os dias, e... É isso, não me sobrou muita coisa agora.

— Me desculpa — olhei para cima na tentativa de segurar as lágrimas que escapavam, mas foi em vão.

— Você pode retribuir se quiser, mas não quero que entenda como uma chantagem.

— Pode dizer, eu faço tudo o que você quiser. Se meu pai está vivo naquela cama, se está bem, sem maiores complicações, foi porque estava aqui e o socorreu.

— Não é esforço algum, e sobre o que dizia; gostaria que considerasse levar às autoridades essa situação. Não se trata mais de um término comum com uma das partes relutante. O Raul está se mostrando agressivo, isso pode piorar com o tempo se não tomar uma atitude.

— Mas eu...

— Cintia, eu conversei com Otávio, o relato que ouvi também não condizia com a postura que vi em minha casa, mas o ser humano pode surpreender.

— O ferrugem é impulsivo, mas não é o tipo de cara que se envolveria em uma briga por nada. Você acha que Raul teria me agredido?

— Ele levantou a mão para você, já deu o primeiro passo.

Ao ouvir aquilo olhei em seu rosto que mudou imediatamente suas feições. Agradeça por ser o Fabiano naquele momento, se fosse eu, a mãe dele o visitaria em uma UTI se sobrasse alguma coisa.

— Você iria comigo?

— Claro, faço questão de estar ao seu lado nesse momento.

— Só que sua mãe quebrou meu celular, não tenho mais os áudios nem mensagens que recebi, e...

— Para tudo dá-se um jeito.

— Então vou esperar meu pai se recuperar um pouco, amanhã ou depois podemos ir.

— Fico aliviado por saber que concordou. Essa história não está mais apenas entre o casal, o Raul cruzou a linha e vai acabar se dando mal. Ou... Não quero nem pensar.

— Será que eu posso? — perguntei olhando para a porta do quarto.

— Ele está dormindo, provavelmente só despertará amanhã, mas pode, sim — Rodolfo acariciou meu rosto com a mão. — Vai ficar tudo bem, minha princesa.

Entramos juntos naquele quarto, meu pai dormia sereno, sua mão ferida descansava sobre o peito. Me aproximei da cama e me sentei acariciando seu rosto, coisa que a muito tempo não fazia, a gente cresce e acaba perdendo esses hábitos de demonstração de carinho, não deveria, mas às vezes é mais fácil dizer um "eu te amo", aos amigos, namorado, do que aqueles que nos deram a vida, por uma vergonha boba. Eu nunca deixei de demonstrar afeto, só que com o tempo, momentos assim foram ficando mais raros.

— Posso ficar um pouco com ele? Eu prometo que não vou fazer barulho.

— Pode sim, vou ver como sua mãe está — Rodolfo beijou o alto de minha cabeça, e saiu.

Me aconcheguei ao seu lado como fazia ainda criança, e mesmo apagado ele ainda afagou meu cabelo. Ali eu chorei em silêncio como uma criança perdida procurando colo.

— Me perdoa pai — murmurei sentindo o peso de sua mão em meu cabelo, a outra eu acariciava a pele livre de curativos. — Eu não suportaria te perder, preciso muito de você em minha vida.

— Eu te amo, filha — ele sussurrou sonolento.

— Eu vou procurar ajuda, pai, ele não vai mais incomodar.

— Se ele ousar voltar a levantar a mão para você, não vai viver para dar o próximo tapa.

Meu pai me apertou em seu abraço, recostei a cabeça em seu peito ainda em uma posição desajeitada, eu estava encolhida ao seu lado, segurando sua camisa e usando seu peito como travesseiro. Ele respirava pesado devido ao efeito do calmante, e foi ouvindo as batidas de seu coração que adormeci.

Até gostaria de dizer que tive um sono tranquilo, mas a verdade é que sonhei que entrava no quarto e encontrava minha mãe triste ao lado da cama, acariciando o rosto de meu pai, que havia nos deixado. O sonho foi tão real que acordei chorando.

— Pai? — pulei da cama aflita. Demorei a entender que estava em meu quarto, nem sei como cheguei ali, ainda usava as mesmas roupas do dia anterior.

Aquela sensação de pavor tomou conta de mim, me sentia sufocada pelo medo de que ao abrir aquela porta o sonho se tornasse realidade. Precisei de um tempo para criar coragem de ir até lá verificar, mas para minha surpresa, ao sair do quarto ouvi risos vindo da cozinha. Andei uns passos e avistei a luz acesa, assim como a silhueta de meu pai com uma xícara de café descontraído ao lado de Rodolfo e minha mãe. O coração palpitava já batendo na garganta, mas a sensação de alívio ao saber que estava tudo bem, foi indescritível. Diferente do dia anterior, dessa vez, tudo não passou de um sonho ruim.

Ele estava bem, todos estávamos, eu tremia descompassadamente, mas o choro de agora era de felicidade. Não quis interromper aquela cena, eles conversavam distraídos em um clima leve e descontraído, como uma família.

— Obrigado, obrigado — sussurrei aliviada limpando o rosto com as mãos.

Voltei pelo mesmo caminho que vim e tomei um banho, sabia que seu José Luiz teimoso, jamais ficaria em casa, ele era elétrico demais para isso.

— Cíntia? — Manu atendeu o telefone sonolenta.

— Eu vi várias ligações suas, o que foi? — perguntei penteando o cabelo sentada em minha cama.

— Estamos na casa da minha avó, ela passou mal ontem, mas meu pai disse que temos que voltar para a fazendo porque o tio se machucou, o que aconteceu?

— Ele surtou quando soube que o Raul quase me bateu.

— Eu sabia que o tio ia ficar muito bravo, mas ele está bem?

— Ele socou a janela e se cortou, mas o Rodolfo estava aqui, e...

— Quem?

— O Rodolfo e o Rafa estão aqui.

— Calma, eu ainda não acordei direito, o Rodolfo, está na sua casa?

— Sim, e... — engasguei com o choro enroscado na garganta. — Aconteceram tantas coisas, Manu. O Otávio perdeu a montaria porque se envolveu em uma briga com o Raul. Meu pai teve uma crise nervosa depois de se machucar na janela, o pai do Rodolfo morreu, e ainda tem aquele beijo. Eu queria sumir para bem longe, não sei mais o que fazer.

— Amiga, o Rodolfo sabe?

— Não, eu ainda nem tive tempo de conversar com ele.

— Poxa, Cíntia, isso é praga de sogra, só pode.

— Por isso eu gosto de você, Manu — eu ri.

— Meu pai já vai voltar para a fazenda, mas eu chego com meu irmão amanhã ao fim da tarde. Aqui não é todo lugar que pega área de celular e por conta das queimadas a Internet está pegando muito mal. Sempre que puder vou te mandar mensagem, mas fica bem, tá.

— Estou tentando — respirei fundo desligando o aparelho.

Quando cheguei na cozinha para tomar café, só encontrei minha mãe lavando a louça, olhei ao redor e nem sinal dos três, fiquei curiosa.

— Onde eles foram?

— Seu pai não consegue ficar parado, levantou logo cedo e disse que ia tirar leite.

— Mas, e a mão machucada? — perguntei preocupada.

— Rodolfo disse que vai tirar o leite e que ele não vai fazer nada que possa contaminar o ferimento. Ele fala bonito, né filha.

— Sim, mãe — eu balancei a cabeça aos risos com sua simplicidade.

Depois de tomar café eu lavei a louça que sujei e me arrumei para ajudá-los. Sabia que meu velho daria trabalho, Rafael tinha razão, a teimosia era hereditária.

— Bom dia — falei ao abrir a porteira do curral.

Era um ambiente pequeno, gado de leite não era o foco da fazenda, ali havia apenas algumas vacas que meu pai ordenhava para uso próprio. O patrão o incentivava pois além de fazer o que gostava, ele ainda fornecia leite para uma sorveteria da cidade e ganhava uma grana extra.

— Bom dia — Rafael acenou ajeitando o banquinho onde se sentou para ordenhar uma vaca leiteira.

Minhas sobrancelhas se elevaram ao ver aquela cena, ele sentado ordenhando uma vaca holandesa, meu pai falando alguma coisa no rádio comunicador, e Rodolfo se aproximando com um galão de leite nos ombros. 

 Aquela foi a cena que mais me deixou impactada, jamais, nem nos meus sonhos mais loucos imaginei ver o doutor, que caminhou ao meu lado nos corredores do hospital vestindo um jaleco impecavelmente branco, portando um estetoscópio no pescoço; no curral da fazenda, de galochas sujas de esterco, chapéu, camisa de botão e fivela. Dois extremos, o homem era lindo de qualquer jeito.

— Bom dia, filha — meu pai se aproximou com um sorriso satisfeito. — Me colocaram de castigo, você viu?

— A sua bênção — falei lhe estendendo as mãos unidas. — Eu vi, e estou amando, o senhor trate de se cuidar.

— Tenho que me cuidar, sua mãe colocou um segurança de quase dois metros no meu pé — ele apontou com a cabeça para Rodolfo que sorriu pegando outro galão de leite.

— Você ordenha? — perguntou Rafael quando peguei o banquinho.

— Opa, eu não deixaria de fazer parte desse momento inusitado por nada nesse mundo.

Eu observava aquela cena dos rapazes ali tão soltos, felizes ajudando meu pai, que os ensinava sobre a vida no campo, e me perguntava qual seria a reação de sua mãe se visse aquilo. É claro que ela surtaria, poderia até nos acusar de estar explorando seus filhos, tudo para não admitir que estavam felizes na simplicidade. A mulher era amargurada e orgulhosa demais para aceitar o fato de que tinham outros valores.

Logo que terminamos de tirar o leite, Rafael foi picar lenha para minha mãe fazer feijão tropeiro no fogão de lenha. Meu pai foi olhar o gado com o Rodolfo, e eu fiquei com a tarefa de limpar a casa. No fim todo mundo se ocupou e o assunto Raul foi deixado de lado. Pelo menos até eu receber uma ligação inusitada de Emanuelle.

— Cíntia?

— Oi Manu.

— Amiga, que bom falar contigo, o Raul me ligou.

— Só me faltava essa, o que ele queria? — perguntei torcendo o pano de chão, depois de ajeitar os fones de ouvido.

— Ele queria teu número, mas não passei.

— Fez bem.

— Ele está muito estranho, se referiu ao Otávio e Fabiano como "teus machos", disse umas coisas muito pesadas que nem tenho coragem de repetir. Ele não desistiu do casamento.

— Que casamento? É muito idiota se pensa que vou mudar de ideia e voltar para ele.

— Amiga, eu fiquei muito preocupada, é sério, ele está obcecado por essa ideia, tenho muito medo que...

— Meu pai não pode saber disso, Manu.

— Mas Cíntia, ele...

— Eu vou até a delegacia com o Rodolfo, mas não hoje. O dia de ontem foi muito difícil, amiga, só que hoje está tão bom, não quero estragar o clima.

— Estou muito preocupada, não sei o que pensar sobre isso.

— Ele não vai vir até aqui e eu não vou sair da fazenda. Só queria poder curtir um dia de paz, será que estou sendo egoísta?

— Não — ela respondeu. — Talvez você tenha razão, ele não vai se atrever a aparecer por aí. Curte o seu dia de paz, mas toma cuidado.

— Te vejo a noite?

— Sim.

— Te amo, amiga. Você é minha irmã gerada em outro útero.

— Você também — falei antes de discar o número dele.

— Cíntia?

— Raul, eu estou ligando para avisar que se não parar de importunar meus amigos terei que tomar providências.

— Sentiu saudades?

— Raul, é sério, eu...

— Eu te amo, Cíntia, não vou permitir que me troque por esses derrotados de merda. Estou aqui no nosso apartamento, me lembro de quando planejávamos cada cantinho dele, que saudade de você minha branquinha, parece até que sinto seu cheiro. Poderia fugir dessa fazenda e se encontrar comigo, o que acha?

— O que deu em você? Cadê a namorada?

— Estou com ela porque preciso de uma presença feminina ao meu lado nessa jornada.Volte para mim e eu largo as duas, te prometo.

— Eu não vou voltar, e isso só prova que não mudou, está namorando outra garota, mantendo a amante e ainda me pede para voltar?

— Você me humilhou, me rebaixou como homem, isso não se faz.

— Raul, siga seu caminho e me deixe em paz. Eu não sei qual a dificuldade de entender que não te quero mais.

— Não é questão de querer, o meu caminho e o seu estão ligados. Você é minha, e vai entender isso, mais cedo ou mais tarde, eu não tenho pressa.

— Quando me tinha não deu valor.

— Eu não sabia que te amava tanto.

— Eu vou desligar.

— Você volta para minha vida e elas saem — disse ele em um tom calmo, frio, preocupante.

— Eu não vou voltar.

Foi a última coisa que disse antes de desligar.

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