Capítulo 23 Reencontro
De um lado estava o Fabiano inexpressivo com as mãos no bolso, do outro, o Rodolfo com um semblante sério segurando a rédea do cavalo, e no meio, estava eu completamente perdida sem saber o que fazer. Meu pai aleatório a situação acenou para um peão que passava por ali levar os cavalos até a baia. Rafael nos observava da varanda ao lado de minha mãe, e pela intimidade com que a abraçava, já havia conquistado o coração de dona Nilda.
— Bom dia — Rodolfo fez um aceno discreto com a cabeça ao se aproximar um pouco mais.
— Bom dia — Fabiano respondeu devolvendo o aceno.
— A sua benção, meu pai — juntei as mãos e estendi ao meu velho que me abençoou, em seguida voltei minha atenção para Rodolfo. — Bom dia.
Minha voz era tão baixa que quase não saiu, senti meu rosto esquentando ao mesmo tempo em que o corpo se arrepiava com aqueles calafrios recorrentes. Eu literalmente não sabia como agir.
— A festa estava boa? — perguntou meu pai.
— Estava sim, apesar do frio — respondi inquieta.
— Desculpa a demora, eu e o Luan dormimos com as meninas no apartamento, mas o Nathan foi para o hotel com os demais e acabaram perdendo a hora.
— Na sala — acrescentei atrapalhada, um tanto quanto aflita. — Eles dormiram na sala.
— Sim, dormimos na sala — concordou Fabiano me olhando confuso.
— Que bom que se ajeitaram — meu pai respondeu naturalmente, e não pude deixar de notar o olhar intrigado de Rodolfo em minha direção.
Eu ainda assimilava aquela situação, foi uma avalanche de acontecimentos que me deixaram atordoada. O tapa que jamais pensei ser capaz de dar no Raul; a declaração do Fabiano depois daquele beijo de novela; Rafael ali com minha mãe de braços dados trocando sorrisos e meu pai cavalgando ao lado de Rodolfo como se fossem velhos amigos. Essa foi a cena mais inusitada de todas, e a que mais mexeu comigo, e nem é sobre ele estar trajado como um legítimo homem do campo. Nunca, nem em meus sonhos mais intensos imaginei que um dia ele estaria ali em minha casa e passeando à cavalo com meu pai.
— Saiam do sol! — minha mãe acenou sorridente.
— Eu preciso que assine os documentos de seu contrato de trabalho para mandar no malote — disse meu pai ao Fabiano. — Acabei me esquecendo de te entregar ontem.
— Podemos fazer isso agora, se o senhor quiser — respondeu o jovem parado à sua frente.
— Certo — afirmou meu pai. — Rodolfo, fique a vontade, a casa é sua, e você Cintia, avise a sua mãe que já eu volto.
— Eu agradeço pela hospitalidade — Rodolfo respondeu tímido.
— É sério que vai me fazer ir até você? — Rafa correu ao meu encontro e me suspendeu no ar em um abraço apertado.
— Vocês vieram — falei com lágrimas nos olhos.
— Achou mesmo que ia se livrar de nós? — perguntou me devolvendo ao chão. — Que saudade de você, minha maluquinha.
— Me desculpa, Rafa, eu não queria ter vindo sem me despedir.
— Tudo bem, gata, não precisamos falar sobre isso agora — disse ele caminhando ao meu lado, juntamente com o irmão
— Quando chegaram, aliás, como me acharam?
— Bem, a sua história ficou conhecida na cidade, não foi difícil descobrir seu paradeiro — Rafael deu de ombros.
— Eles chegaram assim que você saiu ontem, devem ter se cruzado na estrada — disse minha mãe.
— E porquê não me avisaram?
— Seu pai disse que tinha saído com os amigos, achamos melhor deixar que aproveitasse o passeio — afirmou Rodolfo.
— Se tivessem me avisado, eu teria vindo embora — comentei. — Ou então poderíamos nos encontrar na festa.
— Exatamente por isso achamos melhor não incomodar — Rafael gesticulou com um sorriso.
— Eles pularam cedo da cama, já foram tirar leite com seu pai, ajudaram a tratar dos porcos, galinhas, e...
— Eu ganhei um carneirinho do seu pai — Rafael deu pulinhos de alegria.
— Ah, ele vai amar viver em apartamento, Rafa — eu ri.
— Estraga prazeres, eu tinha uma vizinha que criava um mini cabrito, tá.
Eu amava os carões que ele fazia.
— Senti tanta falta de vocês — comentei ganhando um abraço de lado.
— A casa ficou vazia sem você — o tom de voz do Rafael mudou, de alegre, para tristonho, me deixando emocionada. Eu também fazia falta.
— Cadê meu ajudante que saiu e não voltou?
— Poxa, tia, me desculpe — disse Rodolfo. — O seu José estava me mostrando como funciona os piquetes de confinamento e acabamos demorando um pouco.
"O Rodolfo e a mãe do Fabiano, juntos, em minha casa?" — Pensei taquicárdica.
— Oi, Cíntia, eu ainda não tinha te visto — disse ela vindo ao meu encontro. — A festa foi boa?
— Oi tia — eu sempre a chamei assim. — Foi, sim, mas estava frio, acho que desacostumei.
— Otávio chegou cedo e foi direto para seu quarto, está bem chateado por ter perdido a montaria. Estava ajudado no brete e levou um coice de um touro, quebrou três dedos, você acredita?
— Que perigo — disse minha mãe enquanto eu, intrigada, assimilava aquela informação. — Eu podia jurar que ia dizer que ficou chateado pela Cíntia ter ido a festa com o irmão dele — completou me colocando em uma situação desconfortável a frente do grandalhão que me olhava com um semblante sério. Rafael aleatório brincava com um filhote de gato que sabe-se lá de onde surgiu.
— Ele nem tocou no assunto, mas conhecendo bem minhas crias, sei que não vai falar nada. Tanto um como o outro são reservados em relação aos sentimentos.
— Minha nossa, o doce! — ela saiu apressada nos causando risos.
Tia Tereza sempre lamentou o fato de eu e Fabiano não termos ficado juntos, isso não era segredo para ninguém. Assim como era do conhecimento de todos que Otávio, irmão dele, era apaixonado por mim, mas nunca foi correspondido, e agora essa volta repentina do Fabiano e a minha presença ali, com certeza renderia muito assunto. Isso é tudo o que eu não precisava naquele momento.
— Quem diria, o doutor fazendo coisas da roça — murmurei tentando espantar aquele clima estranho que se formou.
— Eu disse que passei uma temporada na fazenda do meu avô — afirmou o grandalhão agora com o semblante mais suave, se sentando na cadeira de bambu no canto da área.
— A tia Teresa disse que vai fazer sonhos recheados com doce de leite, são os meus favoritos — Rafael deu pulinhos de alegria. — Eu vou morar por aqui, estou amando ser mimado assim.
— Bem, fiquem a vontade, eu tenho que terminar de preparar o almoço — avisou minha mãe.
— Eu te ajudo, tia — disse Rafael a acompanhando.
— Esses dois se deram bem — comentei aos risos.
— O Rafael cativa as pessoas com muita facilidade — Rodolfo deu de ombros.
— Como você está? — perguntei me sentando na cadeira ao lado da sua.
— Assimilando algumas informações, como aquele abraço que acabei de presenciar; a conversa que acabei de ouvir e o fato de o cara ter dormido no seu apartamento depois de um encontro.
— Pera, não foi um encontro e eu disse que ele dormiu na sala. Você vai mesmo querer brigar comigo?
Rodolfo soltou um suspiro profundo, recostando na cadeira, antes de fechar brevemente os olhos. Era nítido seu nervosismo, e ele nem sabia do beijo.
— Eu bati no Raul — falei ganhando a sua atenção. — Na festa ontem.
— O quê? — Rodolfo me olhou com espanto.
— Ele esteve aqui, meu pai perdeu a cabeça e o agrediu. Raul tem hora que faz umas coisas sem noção, não deveria ter vindo.
— Seu pai me contou sobre essa confusão, mas não entrou em detalhes.
— Ele não reagiu, pediu perdão, mas a situação era caótica — respirei profundamente esfregando as têmporas, ao me recordar daquela cena. — Eu coloquei um ponto final em nossa história, falei tudo o que sentia, mas isso não foi o suficiente, ele disse que não considerava o término.
— Temo por sua segurança, não se sabe o que ele é capaz de fazer.
— Estão dando importância demais a essa criancisse do Raul, ele não faz mal a uma mosca.
— Jamais subestime a capacidade do ser humano.
— É sério, ele está namorando, daqui a pouco nem se lembrará mais que eu existo — falei estalando os dedos da mão, um gesto que sempre fazia quando estava inquieta. — Só queria viver minha vida em paz.
— Senti sua falta — ele apertou a minha mão, fazendo com que parasse.
Nossos olhares se encontraram, pude sentir o seu perfume tão perto, assim como sua respiração e me bateu uma vontade imensa de beijá-lo, mas confesso que não consegui. A consciência pesou e acabei recuando.
— Como estão as coisas? — perguntei, ajeitando minha postura.
— Superando.
"O que ele quis dizer com isso?", pensei.
— Aquela carta foi obra da minha mãe, não foi?
— Ela não gosta de mim, isso não era segredo para ninguém — desviei o olhar.
— O meu pai faleceu aquela manhã. Eu saí apressado quando o hospital me ligou, foi tudo muito... enfim, quando voltei procurando colo encontrei uma carta de despedida.
— Eu sinto muito — falei com lágrimas nos olhos. — Não sabia que...
Agora eu olhava no fundo dos seus olhos e a dor que vi neles era tão grande, que fui incapaz de estender o contato visual. Tentei argumentar, contar a minha versão dos fatos, mas confesso que foi muito difícil, sequer consegui encará-lo por mais de alguns segundos. Não é exagero dizer que a profundidade de suas palavras, somada a aquele olhar, era como se mais uma ferida aberta sangrasse dentro de mim.
— Eu realmente achei que tivesse decidido voltar para ele. Não sei te explicar o que senti, já estava muito quebrado e acabei me perdendo.
— Eu não queria...
— Eu sei, o porteiro me disse quando retornei de Dubai.
— Você esteve em Dubai?
— Meu pai foi sepultado no Marrocos, sua terra natal, era seu desejo. Mas tive que ficar uns dias em Dubai resolvendo assuntos da empresa, era previsto que essas coisas aconteceriam. Muita burocracia e responsabilidades, mas não precisamos falar sobre isso agora.
— Como está sua mãe?
— Agora arrependida, mas passa.
— É complicado — murmurei encarando o chão.
Minha mente fervilhava ao me lembrar das palavras duras de sua mãe, ela pensava que me aproximei de seus filhos por interesse, me enxotou de uma forma humilhante do apartamento, imagine o que faria comigo agora que eles estavam oficialmente milionários, que ele estava. Não, definitivamente eu não podia me aproximar intimamente de Rodolfo se quisesse ter paz, aquela mulher passaria com um rolo compressor em cima de mim se ousasse ficar com o filho dela.
— Está pensativa — observou.
— Sua mãe sabe que está aqui?
— Não, eu não falei com ela depois de nossa última briga.
— Briga?
— Eu cheguei a dois dias no Brasil, e depois de conversar com o porteiro descobri que não foi com o Raul que você deixou o apartamento — disse ele, me deixando intrigada sobre o que mais ela mentiu. — Ele me contou tudo o que presenciou, minha mãe passou dos limites, eu te peço desculpas.
— Ela disse que eu saí com o Raul?
— Dentre outras coisas, eu deveria ter desconfiado, mas estava com a cabeça cheia, não pensei no óbvio.
— Ela não me deixou sequer te ligar, quebrou meu celular, e... É complicado, Rodolfo, é a sua mãe.
— Diferente do Raul, no meu caso existem questões culturais, Cíntia. Mas mesmo assim, eu não tenho mais cinco anos de idade, já posso cuidar da minha vida — ia dizendo ele, quando meu pai se aproximava com o divórcio ruivo ao seu lado.
Fabiano e Rodolfo se encararam por um instante, e pude sentir meu brilho sumindo lentamente. Eu não tinha mais coração para esse tipo de adrenalina, mas pelo jeito a vida não pensava o mesmo, já que decidiu me testar daquela maneira. E quando pensei que estava numa situação complicada, Otávio apareceu para completar o time.
— Bom dia — disse ele, e não pude deixar de notar sua mão engessada.
— Bom dia — respondemos.
— O que foi na mão — meu pai lhe perguntou.
— Um touro descontrolado — respondeu, ajeitando a tipóia com a mão livre. — Eu queria falar contigo.
— Comigo? — Um frio gelado percorreu minha coluna naquele instante. Seu semblante sério me dizia que vinha mais confusão pela frente.
— Sim, em particular.
Os outros três homens na área da minha casa observavam aquela cena intrigados, porém calados. Eu comecei a suar frio já imaginando a avalanche de problemas que estava se formando à minha volta, teria que ter muito jogo de cintura para resolver cada um deles.
— Tudo bem — falei caminhando à sua frente rumo ao jardim a alguns metros de onde estávamos. — Eu sinto muito pela montaria — falei parando a sua frente.
— Não foi um touro, fraturei o dedo em uma briga antes de entrar na arena — confessou.
— Você não é de brigas, o que aconteceu? Não me diga que a garota do beijo tinha namorado!
— Foi por conta da garota do beijo, mas não aquela.
— Não entendi, você... Com quem brigou?
— Eu estava aguardando para iniciar a montaria, quando vi seu rosto ao lado do meu irmão naquele telão. Já sabia o que viria a seguir então eu saí, mas acabei me deparando com o Raul que estava surtado atrás do brete.
— Droga — balancei a cabeça negativamente. — O que você fez?
— Eu fiz? — ele sorriu impaciente. — O cara te chamou de vadia barata e outros nomes que nem ouso dizer, eu te defendi, ele partiu pra cima e soquei a cara dele com tanta força que o desmaiei.
— Puta merda! — falei levando as mãos até a cabeça.
— Eu amanheci na delegacia, passei pelo hospital e depois tive que ir lá prestar depoimento. Por pouco não saí algemado de dentro da arena.
— Misericórdia, Otávio, e agora?
— Quebrei o nariz daquele animal — Otávio bufou balançando a cabeça negativamente. — Perdi a montaria, nunca tinha entrado em um carro de polícia, quem dirá numa maldita delegacia, se soubesse que chegaria a esse ponto teria quebrado todos os seus ossos.
— Calma, também não é assim.
— Eu saí de casa para competir na arena que é minha paixão e terminei a noite em uma sala fria sendo interrogado por um delegado arrogante que se não fosse o depoimento das testemunhas teria me prendido. Como vou explicar isso aos meus pais?
— Eu não sei o que dizer, sinto muito por tudo isso, eu...
— Não me arrependo de ter socado aquele imbecil, sempre quis fazer isso — disse ele. — Eu te amava, Cíntia, você foi meu primeiro amor, naquela época eu daria tudo para ter uma chance contigo e nunca tive. Ele teve, e ao invés de te fazer feliz apagou o seu brilho. O Raul nunca te mereceu.
— Eu sei — falei em lágrimas. Simplesmente não consegui segurar.
— Doeu te arrancar de dentro de mim, primeiro foi o meu irmão, depois ele, eu era presente em sua vida, fazia tudo por você e nunca me enxergou.
— Me desculpa — em um impulso o abracei. — Me desculpa ter te feito sofrer, eu não queria te machucar, tenho um carinho muito grande por você. Eu juro que não queria.
— Tudo bem, já passou — ele acariciou meu cabelo. — As testemunhas me ajudaram, caracterizou legítima defesa, não sei se vou responder a um processo, não quero pensar nisso agora. Só vim falar contigo porque o Raul está fora de controle e temo que te machuque. Você precisa denunciar, antes que...
— Não, o Raul jamais faria isso.
— O Raul que eu vi ontem na arena, sem dúvidas faria.
— Não, Otávio, o Raul é mulherengo, mas não violento, ele...
— Cíntia, o assunto é sério, ele está obcecado, você precisa denunciar, não pode...
— Eu não vou denunciar, isso me trará mais dor de cabeça, eu não quero passar por isso.
— Que merda, cara, você incentiva milhares de seguidores com palavras bonitas, então, por que não pratica o que diz!
— Por favor, não fale nada do beijo — implorei voltando meu olhar para o Rodolfo, que dividia sua atenção entre a conversa com meu pai e o jardim, onde eu acabara de abraçar o peão ruivo na sua frente. Depois de ter abraçado seu irmão.
Era uma boa hora para tocar as trombetas do apocalipse, eu já não sabia mais como tomar as rédeas da situação, me sentia perdida ao extremo.
— Está apaixonada por ele? — perguntou impaciente. — Olha a confusão que se meteu por conta de um maluco obcecado, vai se arriscar por um cara que nem conhece?
— É fácil julgar, você não sabe o que vivi!
Eu não queria alterar meu tom de voz, mas acabei alterando, e é claro que isso piorou a situação.
— O que viveu te trouxe até aqui, não seja inconsequente o Raul pode fazer uma besteira contigo! — ele gesticulava demonstrando uma agitação que chamou a atenção do meu pai, assim como os dois rapazes que estavam com ele.
— Por favor, Ferrugem, eu te peço que por enquanto não conte a ninguém sobre isso, é que...
— Somos amigos, foi o lugar que me reservou em sua vida e não espero ser mais do que isso. Não sei se superei, ou me acostumei, não importa — afirmou baixando consideravelmente o tom de sua voz. — Só que não tenho sangue de barata, se ele partir pra cima vai encontrar meu punho outra vez, e também não espere que eu esconda a verdade, quando isso pode significar a sua ruína.
— Desculpa, mas vocês estão discutindo? — perguntou meu pai se aproximando ao lado dos dois rapazes.
Agora eu olhava aflita para Otávio que me encarava de cenho franzido respirando pesado, eu estava em suas mãos.
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