Capítulo 20 Fechando a página
Eu passei por todas as fases da depressão em um curto espaço de tempo. A euforia do primeiro dia e o choro a noite, a reclusão, desânimo, tristeza, autopiedade, revolta, sentimentos destrutivos que me jogaram em um abismo tenebroso. Até tentei reagir, mas bastou uma única ida até a cidade e descobri coisas sobre mim que nem eu mesma sabia que havia feito. É incrível como as fofocas têm o poder de nos derrubar, acabei me fechando para não ter que encarar o julgamento alheio e me sentir na obrigação de ficar me explicando. Se as pessoas soubessem como isso dói, como é destrutivo teriam mais empatia pela dor do próximo.
— Olha só quem saiu do quarto — disse Emanuelle ao me encontrar na varanda naquela manhã.
— Minha mãe me fez tomar um pouco de sol — comentei quando se sentou ao meu lado.
— É tão bom te ver reagindo — Manu apertou a minha mão com um sorriso que suavizou sua expressão de preocupação.
— Obrigada por estar sempre ao meu lado — sorri agradecida, todos os dias que passei naquele quarto mergulhada na depressão, não teve uma única vez em que ela não tenha ido me fazer companhia.
— Eu só queria que ficasse bem.
— Não dá para ser forte o tempo todo, eu passei todos esses dias analisando minha vida, e enfrentando cada conflito interno que se formou. Doeu, mas passou.
— E os rapazes, falou com os eles?
— Não, e nem vou falar, eu desativei todas as redes sociais, preciso desse tempo para mim.
— A quem quer enganar?
— A ninguém, eu sei que se falar com o Rafael, automaticamente terei que falar com o Rodolfo e não quero fazer isso, Manu.
— Cíntia, já faz mais de um mês, qual o seu medo?
— Não é medo, a mãe deles não me quer por perto, e ela tem razão, pertencemos a mundos diferentes.
— A opinião deles não conta?
— Conta, é claro que conta, mas já passei por isso antes e saí muito machucada. Prefiro me lembrar de nossa história com saudade, não com mágoas e ressentimentos.
— O Rodolfo não é como o Raul, não acha que está misturando as coisas e sendo injusta?
— Ele não é, mas eu também não quero ser pivô de uma briga em família — respondi incomodada.
— Está fugindo, só espero que não se arrependa depois.
— Tá, eu assumo que estou sendo covarde, estou fugindo por medo de descobrir que me esqueceram assim que saí do Maranhão. Que a dona Clô tinha razão quando disse que não sou boa o suficiente para o filho dela, que aquela carta possa ter feito com que me odiassem. Eu sou covarde, é isso, sou insegura, rancorosa, orgulhosa, sou... eu não vou atrás.
— E se eu...
— Você, nada, eu não quero mais falar sobre isso.
— Grossa — disse ela com uma careta engraçada.
Eu sei que fui indelicada, mas o assunto Rafael e Rodolfo era muito delicado para mim, a mãe deles me humilhou demais, já bastava o trauma da convivência com dona Eugênia, eu não precisava de uma versão turbinada da sogra serpente em minha vida. Não espero que me entendam, só quem vive algo do tipo sabe as marcas que carregamos como gatilhos.
— Você viu quem voltou para a fazenda? — Manu cortou o silêncio apontando para os peões que cavalgavam lá adiante, longe o suficiente para que logo sumissem de nossas vistas.
— Quem?
— O Fabiano.
— Sério? Será que terminou os estudos? — perguntei curiosa.
— Sim, ele estava fazendo umas especializações, mas está de férias, vai ficar um tempo por aqui.
— E como ele está?
— Ainda mais bonito do que antes — Manu sorriu diante do meu interesse.
— Hum, que bom — falei tentando parecer indiferente.
— Ele perguntou de você, disse que sente falta da amizade que tinham.
— Algumas amizades não foram feitas para serem duradouras, acontece — respondi antes de soltar um suspiro profundo.
Por um instante me perdi em pensamentos e voltei ao passado, mais especificamente para o dia em que nos conhecemos. Ele veio de outro estado com sua família para trabalhar na fazenda, eu nunca tinha visto um garoto tão bonito, foi botar os olhos nele e fiquei encantada pelo jovem peão de cabelos vermelhos, e olhos azuis. Fabiano só tinha quinze anos, mas já tinha jeito de homem, barba no rosto e corpo formado, sua chegada causou uma epidemia de menina apaixonada, e eu fui uma delas.
— As meninas disseram que ele era muito sério quando chegou e que mesmo cheio de pretendentes evitava namoro por conta de uma decepção amorosa. Quem diria que Rosana fosse quebrar o gelo daquele coração?
— Na verdade, fui eu, mas isso ninguém sabe. Ela só colheu os frutos.
— Você, mas como assim?
— Eu era apaixonada por ele desde os doze anos, e quando fiz quatorze, comecei a escrever cartas anônimas de amor contando como me sentia, e no auge da minha inocência confiei em Rosana, que na época era minha melhor amiga para lhe entregar.
— Mas ele não desconfiou que eram suas?
— Não, ela prometeu que não contaria, mas acabou se beneficiando de minhas cartas quando se declarou dizendo que eram suas — expliquei, voltando minha atenção para os pavões que se abriam imponentes no gramado. — Eu consegui quebrar o gelo de seu coração, o problema é que ele destruiu o meu quando pediu minha amiga em namoro na noite de natal — concluí.
— Então foi por isso que vocês duas brigaram? — ela perguntou se inclinando na cadeira em uma postura curiosa. — Me desculpa ficar fazendo perguntas, é que você nunca fala sobre isso.
— Você me conhece, Manu, acha que eu brigaria por conta de homem? Nunca houve uma briga, só cortei vínculos — franzi o cenho com o sentimento que aquela lembrança me causou. — Eu sequer contei que as cartas eram minhas, só me afastei dos dois.
— Ah, Cíntia, não estou acreditando, você deveria ter contado!
— Ela o proibiu de falar comigo, você acredita? Alegou ciúmes, mas tenho certeza que era medo de que eu contasse a verdade.
— Pois você deveria ter contado.
— Até tentei, fui até a casa dele para que pudéssemos conversar, mas antes mesmo de tocar no assunto ouvi que pelo bem de seu namoro ele tinha que se afastar de mim. Ela o proibiu de falar comigo.
— Mas olha que cobra peçonhenta.
— Então, estava decidida a contar a ele, mas aí ouvi de sua boca um pedido de desculpas por se afastar e que se sentia chateado por toda aquela implicância comigo. Nossa conversa terminou quando ele disse que eu era criança e me via como uma irmã. Eu corri pra casa chorar e acabei não falando nada.
— Eu ainda acho que deveria ter contado.
— Contar não mudaria o fato de que ele não me via da mesma forma, então, não faria diferença.
— E porque será que terminaram, será que ele descobriu?
— Não faço ideia, mas acredito que não. Ele foi para a cidade fazer faculdade e ela foi morar com a tia, deve ser por conta da distância, sei lá.
— E o irmão dele gostava tanto de você.
— São os desencontros da vida — comentei. — Talvez se tivesse dado uma chance a ele não estaria na situação em que me encontro.
— Ele enfrentou o Raul para te defender, talvez ainda tenha sentimentos por você.
— O Ferrugem é uma gracinha, bonzinho demais, não merece que fique com ele pensando em outro — comentei. — Jamais faria isso.
— E o Fabiano?
— Esse bem que merecia ser iludido pela criança que cresceu — eu ri debochada.
— Já pensou vocês dois juntinhos, casamento na capela da fazenda, você chegando em um cavalo branco, vestida de noiva e ele no altar de bota e chapéu. Uma cabana, um cachorro, porque cachorro não pode faltar numa cena romântica, e.. ah! Um filho, já sei, um menino de cabelinho vermelho e olho azul como o pai, vestindo jeans e botinha. Ah, Cíntia casa com ele, eu quero ser madrinha!
— Ele quem?
— O Fabiano — afirmou aos risos.
— Você sonha demais, Emanuelle. Não sei de onde tira tanta imaginação.
— Cadê seu romantismo?
— Botei para correr à base de chifradas.
A visita de Emanuelle me fez muito bem, ela era o tipo de amiga que apesar de atrapalhada, me conhecia como ninguém. Tanto que me visitou em meus momentos de reclusão e nunca me julgou por não querer sair do quarto, apenas ficou comigo ora conversando, ora em silêncio me oferecendo sua companhia. Algumas vezes nem precisávamos de palavras para nos entender, sem dúvidas a irmã que a vida me permitiu escolher.
— Oi tia — disse ela ao ver minha mãe se aproximar com um jarro de limonada.
— Eu estava lá na cozinha ouvindo os risos das comadres e decidi fazer um agrado — disse ela, servindo um copo generoso com gelo.
— Vamos no rodeio, tia?
— O serviço aqui não pára meu anjo, mas a Cíntia podia ir, só fica enfiada dentro de casa.
— Não estou com clima para festas — respondi desanimada. — E também não quero ter que topar com o Raul ou sua mãe por aí.
— Bobagem, filha, quem errou foi ele, você não tem que viver se escondendo.
— O Ferrugem vai disputar a semifinal do rodeio em touros hoje, se continuar indo bem, vai disputar a final amanhã. Seria legal ter os amigos na torcida — comentou Emanuelle.
— Da última vez que saí na rua tive a impressão de que todo mundo me olhava com julgamento, é tanta confusão em minha cabeça que acabei ficando paranóica — expliquei. — Não é fácil lidar com essa situação, o Raul é de família muito conhecida e sempre vai ter alguém me olhando atravessado porque compraram a ideia de que eu fui a errada.
— Isso é coisa da sua cabeça — disse minha mãe. — Não pode ficar se isolando assim, vai acabar ficando doente.
— Boa tarde — disse Otávio se aproximando. — Seu José me pediu para pegar um documento e deixar no escritório.
— Só um minuto que vou pegar. Aceita uma limonada? — Minha mãe foi logo lhe entregando um copo.
— Agradecido — ele tirou o chapéu e se sentou na mureta da área enquanto ela se afastava.
— Estou tentando convencer a Cíntia a ir no rodeio, mas está difícil — disse Emanuelle ao peão.
— Ficou famosa e agora não sai mais com os velhos amigos, moça?
— Só estou querendo evitar um encontro com pessoas desagradáveis — dei de ombros.
— Fugir não é o melhor caminho — respondeu bebericando sua limonada.
— É sério, se o Raul me ver na festa não vai perder a chance de me importunar, e...
— Ele que não venha com gracinhas para seu lado.
O murmúrio de Otávio saiu baixo, mas não o suficiente para que não ouvíssemos.
— Nossa, que homem bravo — provocou Emanuelle aos risos.
— Peão que lida com touro chucro não tem medo de boi manso — o jovem respondeu quando minha mãe se aproximava.
— Acho que são esses — ela afirmou lhe entregando uns envelopes.
Ele conferiu o envelope e então me disse:
— Não é porque alguém te jogou no fundo do poço que precisa permanecer lá. É hora de reagir.
Nossos olhares se encontraram por um instante, então desviei.
— Eu sei.
Foi a única coisa que consegui responder.
— Bem, eu tenho que ir, se mudar de ideia te vejo na festa — Otávio ajeitou seu chapéu e foi se afastando.
— Esse menino ficou muito bonito — afirmou minha mãe.
— Mãe! — exclamei aos risos.
— Mas ele está mesmo, ué — ela riu se distanciando.
— Nem tenta criar outro roteiro romântico! — apontei para Manu que tinha um sorriso suspeito no rosto.
— Droga. Vou cancelar a capela, o cachorro e a menina ruiva.
— Não era menino?
— O menino era do irmão, agora tive que reescrever a história.
— Vai caçar uma pia de louça para lavar, Emanuelle!
▬☼▬
O mais difícil do fim de um relacionamento é enfrentar o orgulho ferido, o medo do desconhecido, o receio de não dar conta, de se arrepender. Na maioria das vezes existe uma dependência emocional, ou até mesmo financeira, a pressão do recomeço, e o egoísmo de não querer abrir mão das conquistas, planos, sonhos, de uma vida de ilusão.
Comigo não foi diferente, eu encontrei muita dificuldade para me libertar de fato, precisei me afundar na recaída para entender que era hora de soltar as amarras e seguir em frente. Não era sobre dependência emocional ou financeira, não era sobre amor, mas pelo orgulho ferido, pela mágoa de saber que me doei tanto a quem não merecia. Foi doloroso, mas entendi que aquele sofrimento todo, nada mais era do que frustração por sempre escolher a pessoa errada.
— O que está fazendo? — perguntou minha mãe quando eu queimava uma pilha de coisas no quintal.
— Me livrando das lembranças daquele traste — respondi jogando um urso de pelúcia que ele me deu no último natal.
— Ainda gosta dele, filha?
— Não, o que sinto por ele é indiferença — respondi jogando um estojo de maquiagem caríssimo que ele me deu quando retornou de sua última viagem... com ela.
— Se queimar essas coisas vai te fazer bem, então queime — disse ela olhando para uma foto que eu segurava.
— Essa foi do dia em que saímos pela primeira vez — afirmei antes de jogar na fogueira. — Essa foi quando me apresentou para a família, e essa do jantar do nosso noivado — falei repetindo o gesto.
Minha mãe me observava compassiva, sei que não entendia minha atitude, mas aquele ritual significava muito, eu não estava apenas queimando objetos e imagens, estava encerrando aquela etapa da minha vida para iniciar uma nova. Eu estava dando o primeiro passo de uma grande caminhada.
— Acabou, mãe — afirmei jogando a última caixa de lembranças, que ao cair no fogo fez com que fagulhas acesas flutuassem pelo ar. — São apenas lembranças de uma vida que não me pertence mais, não faz mais diferença.
— Você tem um bom coração, vai encontrar um rapaz que te faça feliz.
"Eu já encontrei, só que ele não é para mim.", pensei sentindo as lágrimas brotarem nos olhos.
Tive muita sorte de ter pessoas maravilhosas que me ajudaram a atravessar aquele abismo. O Rodolfo e seu irmão, meus amigos, família, todos foram importantes no processo, deixaram a caminhada mais leve, mas reagir e seguir em frente só dependia de mim. Agora eu entendia isso, e enquanto aqueles objetos eram consumidos pelas labaredas coloridas, observava atentamente me sentindo como uma fênix, que ressurgia das cinzas.
Estava me despedindo de uma história com final infeliz e fechando a página.
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