Capítulo 19 Você só tinha que ter sido fiel
Aquela noite dormi muito mal, tive sonhos variados, dormia e acordava agitada. Senti falta da vida que não me pertencia, mas que aprendi a amar cada detalhe, cada momento. Como é ruim ficar longe de pessoas queridas, desta vez não teve mensagens noturnas, nem o veria chegar pela manhã. Não teria o Rafael cantando e dançando pelos corredores da casa com suas performances animadas, e é isso, eles estavam distantes dos meus olhos, mas impregnados em meu coração.
"Bom dia, minhas lindezas, sei que é bem cedo, mas eu queria muito dividir uma coisa com vocês. Dessa vez não tem praia, não tem aventura nova, essa é a minha casa, o meu mundo, eu voltei. Estão vendo ali na cozinha? São meus pais, esse homem sentado na mesa é o meu alicerce. Ele levanta antes do sol nascer todos os dias para trabalhar, e ela o acompanha, sempre foi assim. Essas duas pessoas são o meu maior tesouro... meus pais, era para eles que eu deveria ter corrido quando me machucaram, mas acabei tomando outro rumo. O que eu quero dizer a vocês, é que tive muita sorte de ter encontrado pessoas de bem, eu poderia ter terminado em uma vala, ou ter sido conhecida por ter a minha foto estampada em uma camiseta, até mesmo um site de pessoas desaparecidas. O meu conselho, é que se você cair, se seu mundo desabar, por qualquer que seja o motivo, não confie em estranhos. Procure um familiar, um amigo, sempre haverá uma mão estendida, um colo de mãe, um abraço de pai. O mundo não é um conto de fadas, coisas ruins acontecem quando confiamos em pessoas erradas. Eles são a minha referência de vida e me defenderam todo esse tempo, me esperaram e me acolheram. Eu conheci pessoas maravilhosas, que me acolheram, mas o que aconteceu comigo não é regra, pensem nisso. Sempre existe uma saída, e beber até perder a consciência correndo o risco de acordar em um lugar desconhecido, não é uma delas."
— Que lindo, filha — disse minha mãe com lágrimas nos olhos. — Não sabia que falava tão bonito.
— Nem eu, mãe — respondi me juntando a eles na mesa.
Desde que fui para a faculdade acabei mudando minha rotina e cenas como essa de me sentar e tomar café da manhã com meus pais se tornaram raras. Não pude deixar de pensar no Rodolfo e na profundidade de suas palavras quando disse que daria tudo para ter a sua família unida outra vez. Eu tinha, mas deixei a correria da vida me afastar de momentos assim, que com toda a certeza um dia me fariam falta.
— Hoje o dia vai ser longo — disse meu pai se levantando.
— Me espera que vou contigo, só vou pegar o chapéu — falei correndo para o quarto.
Mais uma vez me lembrei de Rodolfo que passava tanto tempo naquele hospital cuidando de seu pai que morria um pouco a cada dia. Se ele soubesse como aquela conversa que tivemos naquela noite me marcou, a lição que me ensinou ali com toda a certeza do mundo jamais seria esquecida.
— Senti falta de ver os dois trabalhando juntos — afirmou minha mãe nos acompanhando até a porta. Não tinha um dia sequer que ela não o acompanhasse e desse um beijo quando saía para o trabalho. Quem me dera um dia viver um amor assim, eles eram muito carinhosos um com o outro.
— Pronta para a labuta? — meu pai sorriu ligando a caminhonete.
— Sempre — respondi acenando para minha mãe que passava por nós rumo ao quintal.
Logo que chegamos no curral já iniciamos os trabalhos, era dia de vacinação de gado e a correria nessas ocasiões era intensa. Enquanto os peões separavam machos e fêmeas, eu e meu pai realizávamos as vacinas juntamente com mais dois vacinadores. Não me lembrava da última vez que fiz isso, mas não deixei a desejar, eu e meu velho formávamos uma boa equipe.
— Você está bem? — perguntou Otávio quando fizemos uma pausa.
Eu estava encostada na cerca, pensativa, nem notei que se aproximava. Ele era irmão do Fabiano, o peão que eu gostava quando adolescente e me contemplou com minha primeira decepção amorosa. Sofri feito cão sem dono até entender que não era o fim do mundo, é incrível como para os adolescentes tudo é ao extremo, eu passei meses chorando e sofrendo em um drama sem fim.
Otávio tinha apelido de ferrugem desde criança por suas sardas e a cor de seu cabelo que era de um tom vermelho intenso. Seus olhos eram de um azul tão claro que nem pareciam reais, lábios carnudos, e um sorriso que ficava ainda mais lindo com aquelas covinhas na bochecha que agora se escondiam entre a barba desenhada. Fazia muito sucesso entre as meninas, ainda mais depois que começou a se dedicar a montaria em touro nas competições de rodeio. Ele era dois anos mais velho do que eu, chegou a se decorar uma vez, mas como gostava de seu irmão, nunca lhe dei esperanças. Eu e meu dom de escolher sempre o cara errado.
— Na medida do possível — respondi.
— Sinto falta daquela época em que brincávamos aqui mesmo neste lugar.
— Eu também — sorri saudosa. — O tempo passa muito rápido, se soubesse que a vida adulta era tão complicada, teria aproveitado bem mais.
— Nunca fui bom com conselhos, mas tenho um ombro amigo se precisar. Você sabe disso, não sabe?
— Eu sei sim — concordei.
— Isso não vai terminar bem.
— Isso o quê? — perguntei acompanhando o seu olhar que foi para a mesma direção que os demais. — Ah, não!
— O que você está fazendo aqui, cara? — meu pai pulou do curral e foi em direção ao Raul, acertando um soco em sua boca que o fez cair de costas no chão.
— Pai! — gritei assustada quando os peões o seguraram, eu nunca o vi daquele jeito.
— Eu só quero falar com ela, seu José — Raul se justificou limpando o canto da boca que sangrava.
— Depois de todo o mal que você causou não sendo homem de cumprir com seu compromisso, eu não quero que chegue perto da minha filha!
Meu pai bufava feito um touro bravo dando de dedo na direção do homem que não arredou o pé, ele realmente não tinha amor à vida.
— Calma seu José — pedia o peão que o segurava.
— A sua mãe difamou minha filha pela cidade toda, seu pau-de-bosta e você não foi capaz de defender a honra dela!
— Eu soltei até nota na imprensa, o senhor não viu?
— Não foi pela imprensa que pediu a mão dela, nem foi em vídeo de Internet que prometeu cuidar quando a levasse do meu teto, seu imprestável!
— Sai daqui cara, não piora as coisas — disse Otávio se colocando à sua frente.
— Eu amo essa menina — Raul apontou para mim.
— Que amor é esse que trai? — meu pai avançou outra vez, sua fúria era tão grande que por sobre o ombro do peão que o segurava ele conseguiu acertar um tapa certeiro no rosto do Raul que cambaleou. — Eu abri as portas da minha casa para você, entreguei a coisa mais importante da minha vida para que cuidasse e a machucou da forma mais covarde, seu merda!
— Não se bate no rosto de um homem seu José — Raul o olhou com raiva.
— Que homem? O que estou vendo aqui é um moleque de barba que não sabe valorizar uma mulher!
— Eu te peço perdão, pela minha falha, sei que agi errado com ela, mas aprendi a lição. O nosso casamento, botei tudo a perder, eu... eu vacilei, mas estou aqui de peito aberto reconhecendo meu erro e pedindo só mais uma chance.
— É hoje que eu perco meu réu primário — dizia meu pai com os punhos fechados.
— Era isso que você queria? — perguntou Raul dando alguns passos à frente. — Que eu me humilhasse, então me humilho — afirmou caindo de joelhos. — Cíntia, eu te imploro, volta pra mim!
Eu estava muda, trêmula e assustada, sinceramente não sabia o que fazer.
— Já chega — Otávio pegou Raul pelo braço como se fosse nada, e o arrastou.
O Ferrugem até outro dia era um garoto franzino, alto, meio desengonçado, e agora havia se tornado um peão daqueles que exalava masculinidade. Raul até tentou escapar de seu aperto, mas foi em vão, ele estava dominado pelo cara que enfrentava touro bravo todos os dias.
— Tudo bem, eu falo com ele — gesticulei temendo que a situação ficasse pior.
— Filha, você não precisa...
— Eu preciso, pai, nós ainda não conversamos e tenho que botar um ponto final nessa história.
— Não Cíntia!
— Pai, eu realmente preciso — insisti.
— Ficaremos de olho — disse o Otávio juntando Raul pelo colarinho de sua camisa. — Por tudo o que é mais sagrado, se fizer qualquer coisa que a machuque a partir de agora, eu acabo com sua raça.
— Você nunca aceitou o fato de ela ter me escolhido — Raul sorriu ajeitando sua roupa.
— Eu já superei, otário, somos amigos. Diferente de você, não preciso me humilhar, eu sei qual é o meu lugar — Otávio cruzou os braços à sua frente, tão próximo que senti o brilho de Raul sumindo em câmera lenta. — O recado está dado, não queira pagar para ver.
— Calma Otávio — me posicionei entre os dois colocando minha mão sobre seu braço. — Só vamos conversar, ele não pode me atingir mais do que já fez.
— Vai precisar de uma rinoplastia se...
Ia dizendo Luan, quando todos os olhares se voltaram para ele.
— Já parei — o garoto levantou as mãos com o rosto vermelho e me segurei para não rir.
— Pai, está tudo bem?
Meu pai agora parecia mais calmo, ainda tremia e respirava acelerado sob o olhar atento de seus companheiros de trabalho, que agora também pareciam menos apreensivos.
— Acabe logo com isso.
— Obrigado por me compreender — sorri aliviada.
— Não saia do alcance de meus olhos — ele ajeitou o chapéu e saiu pisando duro. Seu José Luíz sempre foi um peão arretado, bravo que só vendo.
▬☼▬
Caminhamos lado a lado rumo ao banco que ficava embaixo dos ipês floridos. Era um local neutro, nem muito longe, nem tão perto de onde os peões estavam, mas a uma distância que nos permitia conversar com privacidade.
O vento suave balançava as folhas das árvores que se estendiam por toda a cerca formando uma paisagem que mais parecia uma pintura, enquanto os pássaros cantavam em seus galhos, um ambiente perfeito para uma cena romântica se fosse o caso, só que não era. Raul se manteve calado, perdido em seus pensamentos e comigo não foi diferente, eu tentava transparecer uma calma que não me pertencia quando na verdade, estava surtando por dentro.
— Não deveria ter vindo aqui, Raul — afirmei me sentando no banco de madeira.
Ele se inclinou a minha frente apoiando as mãos em meus joelhos de modo que nossos olhos se encontrassem.
— Não desiste de nós, minha vida, eu faço qualquer coisa para ter o teu perdão.
— Raul, eu...
Ele tentou segurar a minha mão e por instinto, recolhi.
— Fui te beijar quando te encontrei naquele lugar, você virou o rosto, agora se nega a segurar a minha mão. Eu te causo tanta repulsa assim?
— Eu ainda estou me refazendo, estou tentando encontrar um rumo e não quero me perder motivada pela carência, nem pela impulsividade. Você nunca foi o cara perfeito, Raul, mas foi o meu primeiro namorado, meu primeiro beijo. Você foi o cara que escolhi para construir uma vida e que me entreguei acreditando que seria o meu felizes para sempre.
— Você foi a melhor coisa que me aconteceu. A mulher da minha vida, companheira que me completava, que me fez enxergar o quanto sou falho e preciso mudar. Eu te decepcionei, não sabe como me arrependo, se me der uma chance...
— Chance de quê? Eu estava lá o tempo todo e não me enxergou. Agora meu coração escolheu outro caminho, e mesmo que esse caminho não me leve a lugar nenhum; eu sei que não posso mais voltar atrás. O que você tem a oferecer, não é mais o suficiente.
— Como destruir o coração de um homem em uma única frase — murmurou com um sorriso fraco, antes de se sentar ao meu lado.
— Como destruir o de uma mulher com uma única escolha. Você só tinha que ter sido fiel.
— Você disse que o que eu tenho a oferecer não é suficiente. Será que um dia foi?
— Quando estava contigo, eu não conhecia outras formas de amar e ser amada. Poderia ter vivido com isso, mas agora, não mais — respirei fundo buscando o seu olhar, que estava fixo em mim. — Me entreguei por inteira e recebi amor pela metade, se soubesse a dor que me causou, eu amei sozinha, Raul.
— Não fala isso, por favor — pediu em lágrimas. — Eu posso aprender a ser o homem que você quer.
— Não, você não pode.
— Posso sim, você sabe que posso.
— Mesmo que eu aceitasse voltar para você, não haveria confiança, sempre estaria insatisfeita esperando mais. A sua traição me jogou nos braços de um cara que soube arrancar o melhor de mim.
— Que cara? Você ficou lá pouco mais de um mês e já ficou iludida.
— Engano seu, ele conseguiu fazer por mim nesse curto espaço de tempo o que você não fez em todos esses anos.
O seu olhar exibia um brilho diferente enquanto no seu rosto a expressão de desespero me fazia ter pena. Em outros tempos deixaria me levar pelo seu discurso de homem arrependido, "tudo pela convivência", mas agora eu estava decidida a praticar o amor próprio. O meu amor próprio.
— Está doendo, Cíntia. Como pode ser tão fria?
— Fria? Te ver beijando outra boca também doeu, perceber o quanto aquele beijo era intenso, cheio de desejo enquanto me ofertava o mínimo — balancei a cabeça com a voz trêmula. — Eu me senti um lixo, você mal me tocava e estava lá protagonizando uma cena de novela. Por que Raul, qual o motivo de oferecer na rua o que me negava em casa?
— Era sobre isso? Se queria me humilhar, não precisava trinta dias, você fez isso com maestria em meia hora, Cíntia.
— Dói, não é, machuca, eu sei. Foi assim que me senti naquela noite quando você e sua amante destruíram os meus sonhos às vésperas do casamento. Mas se te serve de consolo, passa, tudo passa, você supera assim como te superei.
— Não, Cíntia, eu te amo, posso ser o cara certo, só me fala o que fazer, eu juro que...
— Sabe aquela noite em que me produzi toda para te agradar e me disse que aquilo não combinava comigo? Aquela outra noite em que te pedi atenção porque me sentia sozinha e disse que estava cansado dos meus dramas, e...
— Cíntia, por favor...
Ele ia dizendo, mas continuei desabafando, eu precisava fazer isso.
— Todas as vezes que tentei conversar, que te liguei para saber onde estava, que dormi sozinha depois de horas te esperando para aquela noite especial que você esqueceu. As vezes que briguei porque chegou bêbado cheirando a perfume barato, que chorei à frente de um prato vazio na mesa. Todas as vezes que troquei de roupa porque aquela não te agradava, que tentei me moldar para conseguir me encaixar em sua vida, que engoli o choro tentando ser forte, ou as vezes que dormi soluçando ao seu lado e não se importou. Em todas elas eu lutava por nós porque tinha esperança de um dia ser feliz contigo. Só que agora eu sei, hoje eu sei, que me doei demais e só recebi migalhas, então entenda que não se trata do que pode fazer, mas do que nunca fez.
— Não desista de mim, por favor — murmurou com a voz embargada. — Te prometo ser fiel até o fim dos meus dias, prometo fazer tudo que quiser, te darei uma vida de rainha, eu posso, você sabe. Faço qualquer coisa para que volte a ser minha, eu quero tentar, me deixe ao menos tentar!
— Raul, pare — segurei em seu braço. — Deveria ter se esforçado quando eu ainda estava lá.
— Eu não aceito esse fim, você é minha, e... — sua voz era trêmula, ele respirava apressado com os olhos vermelhos. Estava realmente transtornado. — Nós planejamos uma vida, está tudo pronto, não pode desistir assim!
— Acabou, aceita, não existe mais nós, a casa, os planos, nada.
— Por que fez isso comigo, Cíntia, você me tirou de seu coração.
— Se depois de tudo o que eu te disse ainda não consegue enxergar a verdade, só lamento — me levantei e o encarei. — Não te quero mal, aliás, desejo que encontre uma boa moça e que nunca faça a ela o que fez comigo.
— Não faz isso, Cíntia.
— Deveria estar feliz, agora não precisa mais se esconder para ficar com ela, nem suportar as reclamações de sua mãe sobre como eu era uma vergonha para sua família. Não vai mais precisar inventar reuniões para justificar seus atrasos quando me deixava esperando. Não vai mais precisar fingir indisposição para não ter que jantar comigo quando já havia feito isso com ela. Toma juízo, Raul — lhe dei um último abraço e saí.
— Meus parabéns, Cíntia! — seu grito chamou a atenção, não só do meu pai, mas de todos os peões ali presentes. — O tapa que seu pai me deu, não doeu tanto quanto suas palavras. Você conseguiu concretizar sua vingança.
— O desafio era mais sobre mim, do que sobre você — me virei para encará-lo uma última vez.
— Você me humilhou a cada vídeo postado, a cada aventura onde me esquecia, a cada palavra cheia de veneno que acabou de dizer, você me destroçou, e agora... Está doendo demais, não precisava de uma vingança tão cruel.
— Eu não me vinguei, só segui em frente — murmurei com lágrimas nos olhos.
— Você ainda vai ser minha, ainda vai se arrepender por cada palavra que me disse, e...
— Supera, Raul, você me perdeu — suspirei me juntando aos homens no curral. — Vamos trabalhar que o dia será longo.
Eu pensei que quando dissesse a ele tudo o que sentia, aquele peso que me sufoca o peito passaria, mas a verdade é que a conversa com Raul abalou minhas estruturas, era tudo muito recente e tocar na ferida foi como reviver cada momento com a mesma intensidade de quando aconteceu. Foi muito doloroso tentar me fazer de forte quando tudo o que eu mais queria era me encolher em posição fetal e chorar.
Mais doloroso ainda, olhar em seus olhos e encarar a realidade de saber que fiz tudo certo pelo cara errado, que um dia o coloquei em uma posição mais importante que a mim mesma, e que recebi ingratidão em troca, porque na verdade, meus sonhos eram grandes demais para alguém tão pequeno.
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