Capítulo 04 Dia de princesa
Eu pensei que tinha extrapolado a cota de passar vergonha do ano todo, mas ainda tinha um estoque interminável à minha espera. A imagem do Rodolfo tentando se cobrir com as mãos enquanto era espancado não saía da minha cabeça, ele deveria estar pensando que fiquei olhando para sua nudez, mas a verdade é que fiquei tão envergonhada que só consegui olhar para o chão.
— Manu, eu bati no Rodolfo com uma concha, você acredita?
— Como assim, porquê fez isso? — Manu soltou uma risada espontânea ao telefone.
— Tinha uma barata na cozinha, ela voou no meu cabelo e eu gritei, aí ele veio ajudar ela voou direto na toalha que ele tinha enrolado no corpo. Eu fiz o homem ficar nu no meio da cozinha, não vou conseguir olhar para ele depois dessa.
— E agora?
— Eu não sei — falei com voz e cara de choro.
— Finge que não viu nada, e...
— Mas eu não vi, quero dizer, eu vi, mas não vi, é que olhei para o chão.
— Viu, ou não viu?
— Vi de raspão, mas...
— E como é?
— Manu, vai rezar e purificar essa mente — eu ri.
— Insensível — disse ela. — Tem o privilégio de ver um homem daquele como veio ao mundo e não relata para a gente saber como é.
— Credo, que safada, o que você fez com minha amiga quietinha e cheia de pudores?
— Nossa, agora fiquei com vergonha.
— Boba — respondi. — Vou desligar, se cuida tá.
— Você também, e tenta não explodir a casa.
— Nem brinca com isso, eu tenho o dom de as coisas quebrarem na minha mão.
▬☼▬
Na manhã seguinte saí logo cedo com o Rafael e só voltamos pela hora do almoço. O céu que amanheceu limpo, agora apresentava algumas nuvens deixando a tarde nublada, porém, o calor não deu trégua. Rodolfo estaria de folga a noite, então me chamou para dar um passeio na praia, e como estava com a tarde livre acabei aceitando.
— Jet Sky? — minhas sobrancelhas se elevaram.
— Tem medo?
— Eu até sei nadar em rio, mas o mar é um pouco assustador.
— Não precisa ter medo, o colete é exatamente para a sua proteção, e eu também posso te proteger... se for o caso — ele sorriu estendendo a mão para que subisse em sua garupa.
— Nada contra sua boa vontade, mas não queremos precisar.
Abracei aquele homem como se dependesse disso para viver, e ele acelerou pela água me proporcionando um passeio incrível. O Maranhão tem lindas praias, um verdadeiro paraíso, e quando a companhia é boa, se torna melhor ainda.
— Incrível como a natureza é tão perfeita — falei quando banhávamos em uma parte rasa em um local afastado da movimentação. — Essa água tão limpa, que lugar maravilhoso.
— O campo também tem belas paisagens — disse ele. — Eu costumava passar as férias na fazenda do meu avô, era um lugar rico em histórias, mas aí ele se foi e venderam tudo sem pensar duas vezes.
— Meu pai tem uma casa que ele aluga na cidade, é minha única herança, mas acho que não teria coragem de me desfazer.
— E o apartamento que você mora?
— É alugado, a casa além de ser grande, fica longe da faculdade, então não compensa me instalar nela.
— Entendo.
— Sinto falta dos meus pais — falei balançando a mão na água límpida e transparente.
— Bem, de qualquer forma, você já ia deixar a casa deles e construir a própria vida.
— É — sorri fraco.
— Nossa, que empolgação.
— É que eu entrava no apartamento novo e não me via morando nele. Sei lá, não tinha a minha cara, era tudo muito cheiro de frescura.
— Mas isso é fácil de resolver — ele deu de ombros.
— Minha sogra jamais deixaria mudar, ela arrumou tudo do seu jeito.
— Eu pensei que a dona da casa fosse você.
— Não tenta entender — falei me jogando na água sendo seguida por ele.
Passamos ali momentos muito bons, Rodolfo se mostrou uma ótima companhia e é claro que fiz vários vídeos que geraram muitas curtidas.
"Boa noite, minhas lindezas, olha essa lua, esse mar. Gente estou cada vez mais apaixonada por esse lugar, e respondendo a alguns seguidores, eu não estou de namorado novo, acabei de passar por uma decepção amorosa daquelas de te fazer perder a fé no amor, e romance não está na minha lista de prioridades no momento. Estou aproveitando esse tempo para me conhecer melhor, eu pensei que me conhecia, mas hoje vejo que não. Quando estou sozinha, fico pensando em como me apego fácil às pessoas, tão fácil que fico contente com o mínimo que elas me oferecem, e isso é frustrante. Eu não era feliz, essa que é a verdade, eu só seguia o curso da vida depositando no outro a confiança de que ele me faria feliz, mas a expectativa era grande demais para alguém que pouco oferecia. Desculpa, não estou aqui para ofender ninguém, é só um desabafo em forma de conselho. Não seja uma Cíntia, não se contente com pouco quando você merece muito mais, aprenda o seu valor e pense duas, até três vezes antes de tomar decisões que mudarão o curso de sua vida, alguns caminhos não tem volta".
Bom seria se eu conseguisse seguir meus próprios conselhos...
▬☼▬
Como alegrias não existem sem as tristezas, me bateu a depressão. Eu tentei me mostrar uma pessoa forte e decidida a dar a volta por cima, mas estava longe de casa, da minha família, de tudo o que eu era, e isso pesou na consciência. Chorei muito naquela manhã, precisava disso, não dá para ser forte o tempo todo, e por mais que tentasse fugir da realidade, essa não era uma opção.
— Que cara é essa? — Rafael se deitou na cama ao meu lado, e me abraçou. — Por que choras, preciosa?
— O que eu faço da minha vida, Rafa?
— Ele te magoou outra vez? Me dá o celular, vou ligar para esse traste e falar umas verdades.
— Não, ele não me ligou, eu é que estou com esse sentimento ruim aqui dentro — respirei fundo tentando segurar as lágrimas.
— Ah, não Cíntia, pode ir parando. Daqui a pouco vai dizer que o desafio foi um erro, e...
— Mas, Rafa...
— Não, e, não! — disse ele de cenho franzido. — Entenda que o desafio não é sobre provocar o traste do seu ex-noivo, e sim, sobre mostrar a si mesma de que não precisa dele. É isso que seus seguidores querem, te ver feliz.
— Mas estou feliz.
— Com essa cara de derrota?
— É que hoje me bateu a depressão, mas vai passar.
— Amor da minha vida, entenda que se não fosse o desafio você poderia estar lá chorando em frente a uma TV, assistindo um filme clichê com um pote de sorvete na mão e cantando... Volta, Raul, eu perdoo a chifrada.
— Eu não faria isso — ri com uma careta.
— Não faria porque ele já teria te convencido a voltar para ele. Cíntia, acorda o cara tem um sentimento de posse sobre você, ele sequer aceita o fim do noivado e age com se nada tivesse acontecido.
— Eu sou uma idiota mesmo.
— Amada? — Rafa revirou os olhos. — Você precisa aprender o significado da palavra, livramento.
— Eu fazia tudo o que ele pedia, abri mão de tanta coisa, e ainda assim, ficou com outra e ainda disse que não chego aos seus pés. Essa frase ainda dói dentro de mim, sabe?
— Xô depressão, eu, hein! — Rafa pulou da cama me puxando pelo braço. — Levanta e sacode a poeira, vamos afogar essa mágoa em grande estilo.
— Que animação é essa? — perguntei aos risos.
— Tome um banho que tenho ótimos planos para nós.
Eu sabia que não adiantaria questionar, então, separei uma roupa leve e fui me banhar. Se dissesse que estava animada, estaria mentindo, eu queria muito passar o dia na cama fazendo nada em especial, mas quem consegue dizer não ao Rafael?
— Eu preciso me animar — murmurei ensaboando o cabelo.
— Rafael, eu vou entrar em uma conferência online, e não posso ser interrompido, ok?
A voz do Rodolfo ecoou pela casa enquanto eu massageava o couro cabeludo cheio de espuma. Ele sempre participava de reuniões e conferências, se fechava no quarto com aquele notebook e ficava horas fazendo contas e falando com alguém por chamada de vídeo. E quando era assim, fazíamos silêncio para não atrapalhar, o Rafa costumava falar alto e o irmão sempre chamava sua atenção. Só que dessa vez, quem o atrapalhou fui eu... tinha que ser.
— Aaaaa! — gritei quando o chuveiro pegou fogo em cima da minha cabeça.
Foram dois estalos e faíscas saíam em cima de mim, saí correndo do banheiro com a cabeça ensaboada, shampoo caindo pelos olhos, escorregando pelo chão e trombei com o Rodolfo que vinha ao meu socorro, assim como Rafael.
— Ta pegando fogo! — gritei apavorada, sempre tive medo de que algo do tipo me acontecesse. O medo foi tão grande que demorei alguns segundos para me lembrar de que estava nua. — Puta merda!
— Aí, não! — Rodolfo gesticulou apressado quando corri para a primeira porta aberta tentando me esconder.
Peguei o travesseiro que estava sobre a cama e tapei a parte da frente do corpo. O problema é que atrás de mim tinha um notebook em plena chamada de vídeo com vários alunos assistindo aquela cena humilhante. Sim, eu mostrei o meu traseiro para uma junta inteira de médicos.
— Aaaaaa — gritei quando Rodolfo apressado fechava a tela do aparelho.
— Que humilhação — falei em lágrimas indo rumo ao meu quarto.
— Cíntia, eu não vi nada!
A voz de Rodolfo ecoou pela casa, mas é claro que era só para me fazer sentir menos envergonhada.
— Cíntia, meu anjo, já troquei o chuveiro, pode terminar seu banho — disse o Rafael do outro lado da porta.
— Ainda estou procurando um buraco para enfiar a cabeça.
— Deixe de ser boba, foi tão rápido que nem deu tempo de ver nada. E os médicos estão acostumados com a nudez humana.
— Eu não quero olhar para o Rodolfo — falei com voz de choro. — Ele me viu
— Grande coisa, você também o viu na cozinha aquele dia.
— Rafael, você não está ajudando — falei abrindo a porta.
— Termina o seu banho que planejei um dia de princesa para nós.
— Eu vou só para fugir do seu irmão.
Rafa me levou para um centro de beleza, onde depois de fazer as unhas recebi uma sessão de massagem maravilhosa, limpeza de pele e até design de sobrancelha. Meu cabelo que antes passava da cintura, agora estava mais curto, os cachos bagunçados, mais definidos, e o dourado ganhou algumas luzes de destaque. Meus olhos até lacrimejaram quando vi o meu reflexo.
Me lembro de quando criança me chamarem por vários apelidos por ter o cabelo armado, eu chorava tanto, um dia cortei com a tesoura e levei uma surra. Quem tem cabelo cacheado, sabe o trabalho que dá, nem sempre conseguimos domar, e eu parei de tentar, apenas amarrava ou mantinha em um coque. Agora via o quando deixei de me cuidar, e como isso afetava minha autoestima, pele branca sempre vermelha de sol, unhas curtas, nem de longe me parecia com a garota que estava em frente a aquele espelho agora.
— Você é um anjo em minha vida, Rafa.
— Sem sentimentalismo, meio metro, não quero borrar a maquiagem — ele fez uma careta engraçada. — Você sabe que eu te amo, não é?
— Eu tenho um e sessenta e dois, e também te amo, tá gigante pernudo.
— Um e noventa, meu irmão tem um e noventa e três, e você é um Smurf — disse ele com um sorriso de provocação se colocando ao meu lado.
Rafael caiu de paraquedas em minha vida, e ganhou um cantinho muito especial em meu coração. Não sei como seria se não tivesse topado com ele naquela noite, talvez eu fosse para casa chorar, entrasse em depressão, ou, sei lá, me enfiasse naquela fazenda na tentativa de me esconder do mundo até que me esquecessem e pudesse viver em paz.
"Olá, meus amores, estou de visual novo, gostaram? Eu não tinha me dado conta de o quanto deixei de me cuidar nos últimos tempos, e agora vendo meu reflexo no espelho, vi o quanto isso faz falta. Meu recado de hoje é: se amem, se cuidem, se valorizem, se movimentem, vocês podem muito mais do que pensam."
— Fechei mais uma publicidade para você, e também caiu dinheiro na conta, pode conferir — avisou Rafael manobrando o carro em frente a lanchonete.
— Dinheiro do quê?
— Eu disse que esses vídeos te renderiam uma boa grana. Daqui a pouco perco minha assistente.
— Sério? Nunca acreditei que isso realmente gerasse uma renda — falei ajeitando a mini saia, antes de caminhar ao seu lado. — Pelas minhas contas, já posso pagar meu aluguel e ainda sobra para ajudar vocês com as...
— Cíntia, nem eu, nem o Rô, estamos te cobrando nada, bruxinha da minha vida.
— Eu sei, mas preciso ajudar, e também faço questão de rachar a conta de hoje.
— Ah, mas que teimosa!
O local estava lotado, Rafael combinou de se encontrar com Levi, seu atual namorado e uns amigos, quando chegamos eles até já estavam lá. Levi era loiro de olhos claros, seu cabelo levemente ondulado caindo no rosto o deixava com um semblante angelical, até que faziam um casal bonito. O amigo era ruivo e tinha jeito de playboy, um tanto quanto simpático, mas não entendia praticamente nada do que falava, o jovem era estrangeiro. Na mesa também tinha um casal de namorados, o que teoricamente fazia de nós, três casais, mas só teoricamente.
No palco um grupo de pagode bastante animado se apresentava, até arrisquei uns passos com o ruivo, mas parei ao perceber que as garotas ao lado da nossa mesa, riam de mim. Tudo bem que eu não sabia dançar como elas, mas estava me divertindo e acabaram apagando o meu brilho com aquela atitude.
"Boa noite minhas lindezas, hoje estou no pagode, vocês acreditam? Nem eu, mas estou aqui e é muito divertido, olha que vista linda, esse lugar é incrível. Deixa eu contar um segredo para vocês; se tivesse que sair de casa para uma balada assim, jamais sairia porque não é algo ao qual estava acostumada, mas me dei a chance de experimentar, e está sendo uma experiência única. Minha reflexão da noite, é sobre como muitas vezes deixamos de viver boas experiências por não querer sair da zona de conforto. O tempo passa rápido demais para ficarmos de braços cruzados esperando a vida passar, pensem nisso."
Quando a câmera desligou, eu voltei a realidade e meu sorriso se desfez. Quantas pessoas não fazem isso? Postam coisas alegres tendo o coração despedaçado, fazem os outros rirem quando se está chorando por dentro, tentam mostrar o lado alegre da vida, quando seu mundo está cinzento. Eu não queria enganar ninguém, só tentava levar uma mensagem legal, e se isso fizesse com que uma única pessoa se sentisse bem, minha intenção já teria valido a pena.
Eu tentava conversar com o ruivo, mas não entendia o que ele dizia, acho que tentou flertar comigo, mas depois acabou desistindo, eu só ria de tudo feito uma boba alegre. Gargalhei achando que estava contando uma piada, e o homem falava da morte de seu cachorro, eu respondia yes para tudo, ele franzia o cenho e fazia umas caras que não sei até o hoje o significado. Rafael traduziu algumas coisas, mas quando saía, eu voltava a ficar com cara de paisagem. Mal falava o português ia lá entender outra língua?
"Não fica com vergonha de mim"
A tela do meu celular se acendeu, e logo vi que era mensagem do Rodolfo.
"Como não ficar?"
"Você é linda, de qualquer jeito"
"Meu traseiro ficou conhecido entre seus amigos, que vergonha."
"Eles não comentaram sobre o assunto, fique tranquila."
"Pelo menos não era uma live."
"Verdade, mas e aí, está se divertindo?"
"Estava, mas tem duas garotas aqui rindo de mim."
"Por que?
"Já me viu dançando?"
"Cada um tem o seu jeito, e daí?"
"E daí que as pessoas riem, mas tudo bem, vou ficar quietinha aqui na mesa."
"Deixe de ser boba e aproveite a noite"
"Não dá, estão rindo de mim e isso é chato demais"
"Ignore"
"Vou tentar, tem um amigo do Rafa aqui, acho que ele tentou me paquerar, mas eu não entendi nada do que disse."
"Que amigo?"
"Kilian, é um estrangeiro, acho que é suíço, sei lá, pegou em minha mão, tentou chegar mais perto, falou uns trem aqui no meu ouvido, eu só ri, não sei o que está dizendo"
"Cuidado, o Rafa não tem muito juízo."
"O Rafa está dançando com o Levi, os outros dois já sumiram, espero que não suma também, eu não sei o que fazer com esse ruivo."
Foi a última mensagem que digitei.
Kilian me puxou novamente para dançar, até que tentei me divertir, mas bastava começar a me animar e aquelas hienas riam de mim, aquilo me incomodou de um jeito que acabei desistindo. Talvez se bebesse alguma coisa criaria mais coragem, mas estava evitando o álcool, eu ficava irreconhecível sob o seu domínio.
— O que foi, loira, murchou de repente — Rafael se sentou ao meu lado bebericando sua cerveja.
— Estou cansada, se importa se eu for para casa?
— Agora que cheguei?
Quando olhei para trás, lá estava Rodolfo todo arrumado com um sorriso no rosto e toda a sua beleza.
— Ué, não estava trabalhando?
— Troquei com um amigo e vim dançar pagode contigo.
— Você saiu do plantão, só porque eu disse que riram de mim?
— Ele estava me devendo alguns plantões, e não se preocupe, só tem cirurgia agendada para amanhã de manhã — ele olhou para as moças que o encaravam boquiabertas. — São elas?
— Sim.
— É inveja da sua beleza — sussurrou em meu ouvido antes de me levar pela mão.
Eu continuei dançando estranho, mas Rodolfo não se importava, ele até se divertia com meu jeito diferente de ser. Quem dera todo mundo fosse assim, despreocupado com a vida alheia. O mundo seria bem mais divertido.
"Minhas lindezas, vim fazer um desabafo. Eu não sabia dançar pagode, e quando cheguei aqui, duas garotas riram de mim, e mesmo quando viram que me incomodavam, elas não pararam. Esse tipo de coisa dói, eu não sei qual o barato de alguém rir da dificuldade do outro, espero que quem faz isso, coloque a mão na consciência e mude, isso não é legal, causar desconforto no outro não é legal, não é engraçado, mais humanidade, é só isso que eu peço."
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