Capítulo 03 Atrapalhada
"Filha, não se preocupe com seu pai, ele vai acabar entendendo que foi melhor assim, só toma cuidado com essas coisas de ficar voando, é perigoso, também não entra na água sozinha, se tiver tubarão e aquelas coisas que queimam, fica longe da praia."
Eu ri com lágrimas nos olhos ao ouvir o áudio da minha mãe. Ela não era muito de falar ao telefone, mas me mandava muitos áudios e fotos de tudo o que fazia. Isso de certa forma, me dava um certo conforto e assim não me sentia tão distante.
"Cíntia, eu fui no salão acertar os últimos detalhes da festa, até consegui aquela banda que você queria, vai ser o evento do ano. Manda o endereço de onde você está, o Raulzinho pegou uns dias e vai praí curtir ao seu lado, vai ser bom passarem esse tempo juntos, meu filho te ama, não esqueça disso."
Revirei os olhos ao ouvir aquele áudio.
"Manu, eu não vi sua ligação, nossa estou muito cansada. O Rafa ainda não chegou e o Rodolfo foi para o plantão, eu vou aproveitar para dormir, amanhã te ligo, beijo, se cuida."
Tentei responder algumas mensagens dos seguidores, mas acabei dormindo com o celular na mão.
▬☼▬
Eu tinha um dinheiro de algumas diárias para receber, a patroa me pagava por mês, e logo cedo recebi a mensagem de que havia caído na conta. Saí animada, comprei pão, frutas e carne para o almoço, não daria para muita coisa, mas era melhor do que ficar ali sem contribuir com nada. Ao retornar ao apartamento, vi um anúncio de que a senhora do 34B precisava de faxineira, já anotei seu número, parecia que a sorte estava mudando. O Rafael ainda não havia chegado, ele tinha um compromisso de trabalho bem cedo, então aproveitei para dar uma limpada na casa e preparei uma lasanha, eu nem sabia o que aqueles dois estavam acostumados a comer, mas acabei acertando em cheio.
— Enquanto estiver aqui, preciso ajudar com alguma coisa — falei enquanto retirava os pratos da mesa. — Tem uma senhora precisando de faxineira no prédio, talvez ela me indique para as outras, e...
— Faremos assim — Rafael segurou a minha mão. — Eu te pago o dobro para ser a minha assistente pessoal.
— Eu não sei o que é isso.
— É uma pessoa que cuida da minha agenda e me acompanha nos eventos. Não é sempre que tenho, mas rende uma boa grana. E não gaste mais conosco, você é nossa convidada.
— Sobre a casa — Rodolfo interveio. — Temos a diarista, as roupas são lavadas na lavanderia da esquina, não temos tempo de ficar cozinhando, então pegamos marmita, todas essas coisas precisam ser agendadas, se topar cuidar disso, te pago um bom salário, e esquece esse negócio de pegar faxina no prédio, o que os vizinhos vão dizer?
— Que estou trabalhando — dei de ombros.
— Preciosa, não estamos cobrando nada de você, então esquece esse negócio de faxina. Promete?
— Ok, mas então vou ser a sua assistente, e não tente me beneficiar.
— Fechado.
Ótimo, agora eu tinha um emprego!
O parapente ficou para outro dia, Rafael que estava de namorado novo resolveu fazer um passeio de mini buggy nas dunas, esse rendeu muitas risadas porque consegui a façanha de cair quando passou no monte de areia. Rodolfo veio correndo socorrer a loira empanada que rolava morro abaixo, ralei o joelho, o cotovelo, as costas, mas até que foi divertido. Nem eu mesma entendi o que aconteceu.
— Está doendo? — perguntou ele quando me sentei ao seu lado no sofá da sala.
— Ardendo um pouco, foi difícil tomar banho, mas sobrevivi.
— Eu imagino — afirmou, ajeitando minhas pernas sobre seu colo e iniciando uma massagem relaxante.
— Minha mãe fazia massagens nas minhas pernas, era tão bom — falei saudosa.
— Eu saí muito cedo de casa, e não aproveitei o tempo com minha mãe.
— Minha família vive em função dos patrões, não conhecem outra vida — ajeitei minha postura de modo que ficasse mais confortável.
— Você não estranhou a vida na cidade?
— Muito, mas preciso estudar, não posso viver de faxina.
— Não julgo, eu saí cedo de casa para ter minha interdependência, e foi a melhor escolha.
— Quantos anos você tem?
— Vinte e seis, e você?
— Era meu aniversário de vinte e um — murmurei ao me recordar. — Eu estava animada, achei que ele fosse me fazer uma surpresa, fiquei esperando o dia todo, e nada.
Respirei profundamente reprisando aquela cena em minha cabeça. É incrível como ainda me importava com isso, eu queria muito ter esquecido, mas ainda doía.
— Ele se esqueceu?
— Acontece.
— Não deveria.
— Eu sei, mas... é que...
Eu tentava procurar as palavras certas para justificar, mas elas não existiam. Ele esqueceu o meu aniversário e pronto, é difícil admitir em voz alta, mas o que se pode fazer, meu noivo, já não ligava mais para mim. Se lembrou que existia depois que me perdeu.
— Me arrumei toda, tinha comprado um vestido, eu não usava vestidos, mas queria ficar bonita aquela noite. O tempo passou e ele não veio, só me mandou uma mensagem dizendo que ia passar a noite naquela reunião.
— Que vacilo — Rodolfo respirou fundo e balançou a cabeça negativamente.
— Eu estava no embalo do casamento, pensei que isso mudaria alguma coisa. Ele vai se candidatar a prefeito e precisa de uma imagem impecável, então ter uma vida estruturada, esposa, responsabilidades, conta muito. Eu estraguei tudo.
— Você descobriu a traição no dia do seu aniversário, e está preocupada com a vida podre do cara?
— A família dele é muito conhecida e vive de aparências, devem estar me odiando.
— E daí, sua felicidade não conta? Você tem que se sujeitar a ser um zero à esquerda na vida de um cara, só porque ele quer exibir uma vida de mentiras?
— Nossa — desviei o olhar.
— Me desculpa se te ofendi, eu não devia...
— Não tudo bem, você tem razão, eu sou muito besta.
— Eu sei o que é ser traído, Cíntia, é horrível ser passado para trás.
— Então, bem-vindo ao clube — ri fraco.
— Estávamos juntos a três anos e planejei pedi-la em casamento no dia de seu aniversário. Aluguei um quarto de hotel, contratei uma equipe para decorar com velas e pétalas de rosas — ele respirou profundamente olhando para o nada como se revisasse a cena em sua mente. — Seria um jantar íntimo estava muito empolgado. Fiz tudo certinho, contratei até violinista para a ocasião, mas quando cheguei no serviço dela a peguei na sala do chefe. Eles estavam... enfim, ela tinha um caso com ele.
Suas palavras saíram carregadas de mágoa, eu não sabia que tínhamos tanto em comum.
— O Raul não me beijava daquele jeito — murmurei rancorosa. — Talvez eu... talvez eu seja sem graça mesmo.
— Não tenta entender, nem sempre existe um motivo.
— Então, por que as pessoas traem? — perguntei quando o silêncio se fez entre nós.
— Eu não sei — ele deu de ombros com um olhar distante. — Só sei que dói, e, foi por isso que prometi a mim mesmo, não me envolver com mais ninguém.
— E vai ficar sozinho pelo resto da vida?
— Eu saio eventualmente, às vezes rola um encontro ou outro, mas não namoro, Cíntia, procuro ser sincero com quem se aproxima. Se vejo que estou me envolvendo emocionalmente, logo me afasto.
— Isso não me parece bom — refleti.
— Não é, mas foi a maneira que encontrei para não me decepcionar outra vez. Eu não consigo mais namorar, a palavra compromisso me soa como sofrimento.
— E elas aceitam?
— Sempre rola uma conversa antes, e mando a real, eu não engano ninguém. Namoro é algo que não faz parte dos meus planos.
— Eu também não quero mais ninguém em minha vida.
Aquela conversa não se estendeu muito, ele recebeu uma ligação do hospital sobre um paciente que havia tido uma piora em seu quadro clínico e teve que ir às pressas. Rafael já havia me falado que Rodolfo vivia para o trabalho, eu só não imaginava que fosse tanto assim. E por falar em Rafael, ele chegou antes mesmo de seu irmão sair trazendo consigo algumas porções de frango frito e batata. Não queria me acostumar com aquela vida, mas confesso que estava gostando, e isso não era bom.
— Cíntia, eu vou descer conversar com o Felipe, e já volto — avisou.
— Quem é Felipe?
— Ele é o meu Raul — sorriu fraco saindo pela porta.
Alguma coisa em seu olhar me deixou em estado de alerta, o Rafael antes de receber sua ligação estava alegre, brincalhão e agora exibia um semblante sério. Achei melhor ficar de olho.
"Está tudo bem por aí?"
A mensagem de Rodolfo veio em uma boa hora.
"Quem é Felipe?"
"Ele está aí?"
"Conversando com Rafael na praia, devo me preocupar?"
"Fica de olho, ele é agressivo"
Joguei o celular sobre o sofá, e corri para a varanda de onde podia ver os dois conversando em pé do outro lado da rua. Pareciam discutir, o cara gesticulava sem parar, achei melhor chegar mais perto.
— Está tudo bem? — perguntou o vigia ao me ver com uma vassoura na mão.
— Sim, eu só vim ver uma coisa — falei caminhando apressada.
— Sim, eu estou conhecendo outra pessoa.
— Você sabe que não pode!
O rapaz andava de um lado para o outro bufando feito um touro bravo.
— Posso, e estou muito feliz. Eu cansei, Felipe, cansei de te ver de mãos dadas com ela na rua fingindo que não me conhece.
— Eu te avisei que seria assim, você aceitava e agora fica aí fazendo graça.
— Fazendo graça? — Rafael gargalhou aumentando o tom de voz. — Foram dois anos da minha vida esperando você me assumir. Dois anos te acolhendo na minha cama quando estava carente, você dizia que ia contar a sua família e nunca contava!
— Pare de drama, Rafael, você sabe que...
— Drama? Eu maquiei a garota para o noivado, sem saber que o noivo era o meu homem!
— Pare de escândalo! — Felipe o segurou pelo braço.
— Solta ele! Solta, solta!
— Tá maluca, garota! — gritou o cara tentando se defender das vassouradas.
Ele corria de um lado para o outro, e dá-lhe vassourada.
— Ninguém bate no meu amigo!
— Calma, Cíntia — pedia Rafael.
— Calma coisa nenhuma, eu quebro o quengo dele!
Não demorou muito tempo, e já tinha uma boa quantidade de pessoas em volta. Rafael se contorcia aos risos, Felipe fugiu quando começaram a filmar, e eu, para variar, mais uma vez fiquei famosa na Internet.
▬☼▬
Rodolfo chegou pela manhã e logo foi dormir, Rafael tinha um compromisso e eu fiquei limpando a casa. Eles tinham a moça que os ajudava com a limpeza, mas achei melhor ajudar, já estava abusando da hospitalidade dos irmãos.
— Cíntia, sua maluca, eu vi o vídeo de você batendo no cara, perdeu o juízo, mulher? — perguntou Manu ao telefone.
— Menina, eu perdi a cabeça, bati mesmo — falei aos risos. — O Rafael antes de ser meu patrão, é meu amigo.
— Patrão? Como assim?
— Estou organizando a agenda dele, quando tiver eventos ficarei no apoio, ele faz de tudo um pouco, é coreógrafo, organiza eventos de cosplay e também é maquiador profissional. Vou ganhar mais do que quando fazia faxina, você acredita?
— Que máximo! Isso quer dizer que você não volta mais?
— Por mais que esteja gostando daqui, eu sei que esse mundo não pertence. Ficarei o tempo combinado e depois retorno para minha vida, preciso retomar a faculdade e seguir em frente.
— Amiga, o Raul anda pela cidade, borocoxô, diz que está sofrendo e que vai atrás de você.
— Vai perder a viagem, eu não vou voltar com ele.
— Seu pai está furioso, mas quem está doida da vida é sua sogra.
— Ela deveria estar feliz, não gosta de mim, só me quer com o filho por conta de política.
— Cíntia do céu, que lugar lindo que você está, grava muitos vídeos, e posta, não se fala em outra coisa na cidade. E que produção foi aquela, você estava linda no show.
— O Rafa me produziu, ele está me ajudando, aprendi a me maquiar, vou mudar o cabelo, vida nova, minha amiga.
— Isso mesmo, aproveite o momento.
— Dá um abraço na minha mãe, estou com saudade dela.
— Dou sim, eu vou lá daqui a pouco.
— Beleza, depois conversamos mais, vou preparar o almoço.
Desliguei o telefone, e fui para a cozinha, precisava pensar em algo rápido e prático pelo horário. Não queria fazer barulho, mas ao abrir o armário uma barata cascuda voou direto para meu cabelo, me fazendo gritar.
— Sai, bicho, sai! — pulei me debatendo, derrubei panela, foi um furdúncio danado.
— O que foi? — Rodolfo veio correndo enrolado em uma toalha, deveria estar no banho durante meu ataque.
— Tira, tira, ela tá aqui no meu cabelo!
— Não tem nada aqui, calma.
— Tem, sim, tira esse monstro de mim!
Eu gritava e me debatia, a barata voou repousando no Rodolfo, mais especificamente em sua a toalha. Peguei a concha, e parti para cima.
— Tá aqui, eu mato ela!
— Tá maluca? — ele se encolheu quando eu tentava acertar a criatura cascuda.
— Pera, ela vai fugir — puxei a toalha e sapateei sobre ela.
Agora a barata estava morta, o homem pelado a minha frente tapando as partes com a mão, e eu tentando me enfiar no primeiro buraco que aparecesse.
— O que está acontecendo aqui? — Rafael se juntou a nós com um olhar desconfiado.
— Era uma barata — murmurei. — Gigante, e me assustou, eu não tenho medo, desde que não grude em mim.
— Eu vou... — Rodolfo olhou para a toalha no chão, em seguida para mim. — Vou me trocar, só tenta não se matar.
O rapaz nos deu as costas, fiquei tão envergonhada que nem me dei ao trabalho de olhar quando saía.
— Acho melhor pedir uma marmita — Rafael foi em direção ao telefone.
— Eu disse que era atrapalhada, mas ninguém acredita em mim.
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