Capítulo 02 Uma nova mulher

Depois de ligar para minha mãe e receber um sermão interminável, decidi tomar um banho. Eu não tinha me dado conta de que a muito tempo não me arrumava, parece que fui apagando aos poucos, e o pior é que não percebi, nem me lembrava da última vez que o Raul me levou ao cinema, show, festa, mesmo a boate onde fomos umas duas vezes em anos, e agora levava a outra. Fazia muito tempo que ele não saía comigo, estava sempre cansado, desanimado e com a cabeça cheia, e eu aceitava, estava iludida demais para perceber o óbvio.

— Ah, não, chega de choro, vamos espantar esse baixo astral, eu já disse que vou te transformar em uma diva — disse Rafael me levando pelo ombro. — Tem show hoje na praia e temos uma vingança para planejar.

Quem dera se toda mulher traída, tivesse um amigo como Rafael. Nunca conheci uma pessoa tão alto astral, ele emanava uma energia tão boa, que acabou me contagiando, e agora, estava decidido a me transformar em uma nova mulher.

— Rafa, você comprou muita coisa — me espantei ao vasculhar aquela sacola cheia de roupas femininas, nenhum pouco discretas, tampouco comportadas. — Deve ter custado uma fortuna.

— Eu tenho minhas reservas, e você tome um banho, vou te produzir e mostrar a aquele filhote de cruz credo, o mulherão que ele perdeu.

Entrei no banheiro e me sentei no chão atrás da porta, eu não queria chorar, mas não conseguia controlar. A imagem do Raul em público beijando Romana daquele jeito, era como um tapa certeiro, ele sequer fez questão de me preservar. Será que eu era tão sem graça assim?

— Ele disse que não chego aos pés dela — murmurei em lágrimas. — É até injusto essa comparação.

Realmente era injusto, a garota era fina, delicada, estava sempre com o cabelo impecável, maquiagem, unhas feitas, só usava roupas de grife, e eu? Eu só era uma garota simples, que não conseguia manter um esmalte na unha por mais de dois dias, nem o cabelo escovado. Enquanto ela passava horas no salão cuidando da aparência, eu fazia faxina para pagar as contas, sua pele tinha procedimentos estéticos e a minha, manchas de sol. Como concorrer com alguém assim?

Me levantei, limpei o rosto e tomei um banho, eu precisava reagir, o mundo não acabou junto com meu noivado, ainda tinha muita coisa para viver, e um dia aquela dor passaria. Essas palavras foram do Rafael, que agora cantava e dançava usando a escova de cabelo como microfone, ele até conseguiu me fazer rir.

— Meu amor, você é linda, vai ficar sofrendo por homem infiel? — Rafa gesticulava enquanto fazia minha maquiagem. — Se ao menos fosse bonito, o cara parece que nasceu do lado avesso, eu, hein!

Agora ao invés de chorar, eu não parava de rir, ele era muito bom em animar as pessoas.

Eu não estava acostumada a usar roupas curtas, nem mostrar a barriga, normalmente usava calça jeans, short com comprimento abaixo do joelho e camiseta. Foram poucas as vezes que coloquei saia ou vestido, e ainda assim, eram sempre compridos, mas Rafa me convenceu de que ficaria bom, e também não me deixou olhar no espelho até estar totalmente pronta.

— E a gata borralheira virou uma princesa moderna — Rafael sorriu satisfeito.

— Sou eu mesma? — meus olhos brilharam ao ver o resultado.

— Eu disse que você era linda, agora pare de se menosprezar, senão vou te puxar as orelhas.

— Obrigado por me fazer sentir tão bem — segurei em sua mão, e sorri.

O look escolhido foi um short preto de um tecido brilhoso e um cropped azul, com bojo e alcinha. No cabelo, ele fez uma trança estilo boxeadora e ousou na maquiagem valorizando o verde de meus olhos, o problema era o salto fino, eu não sabia andar com aquilo...

— Ajeita essa postura, mulher! Está parecendo uma siriema com assaduras.

— Abusado — respondi com uma careta.

Ele gesticulava à minha frente, já tinha dado umas dez voltas naquele quarto com o livro sobre a cabeça para a aprender a caminhar, sem parecer que estava andando de perna de pau. Perdemos alguns minutos ali, e fiquei até com a barriga dolorida de tanto que rimos, não tinha como ficar sério perto daquele ser humano debochado.

— Juro que se gostasse de mulher, eu te pegava — o jovem sorriu depois de tirar uma foto minha e postar nas redes sociais.

Me observei mais uma vez em frente ao espelho e gostei do que vi, nem sabia que tinha aquelas curvas e o salto me deixou com uma postura mais elegante, coisa que nunca fui. Eu não podia usar saltos com o Raul, ele falava que ficava muito desengonçada, mas a verdade é que detestava ser mais baixo que eu. Ele me proibiu de usar roupas curtas ou coladas, mesmo em casa sempre estava de calça e camiseta, e nem era questão de religião.

— Queria que os garotos da escola que me chamavam de feia, me vissem assim.

— Esquece o passado, levanta esse queixo e viva o agora.

— Uau! — disse Rodolfo se aproximando.

Ao me virar, senti um negócio estranho que subiu pela coluna me fazendo corar. Ele vestia uma calça jeans desbotada, e uma camisa na cor vinho marcando o corpo, até tentei desviar o olhar, mas não consegui. Será que ainda era tempo de colocar a culpa na vodka? 

Eu acho que não, o jeito era aceitar que me sentia atraída por homens de porte grande, e bota grande nisso. Raul era baixinho, magro e desengonçado, dançando então, parecia ter dois pés esquerdos, mas o amor é cego, eu o enxergava como o cara mais lindo do mundo. Mas agora havia encontrado um que superava todas as expectativas, o homem era lindo demais, dava vontade de apertar para ver se era de verdade.

"É hoje que ele paga todo mau que ele te fez"

Rafa cantarolou quando entrávamos no elevador.

Diferente do irmão, que tinha barba desenhada e cabeça raspada, ele mantinha o cabelo curto e rosto lisinho, era tão alto quanto, só que um pouco mais magro e de traços delicados. Na ocasião, vestia uma calça jeans desbotada e uma camiseta preta com estampa discreta, disse que não estava afim de se produzir, mas ainda assim, ficou muito bonito.

"Brota no bailão pro desespero do teu ex"

Agora eu olhava para aqueles dois, e tentava entender em que momento da vida, a filha única dos meus pais, deu errado. Era para estar estudando para a semana de prova, ou participando dos preparativos para o casamento, mas estava toda arrumada, do outro lado do país, indo para uma balada, na praia do calhau, com dois caras que literalmente conheci ontem. Aliás, um deles era tão interessante que deixava meu ex-noivo na chinela, e seu irmão maluco, não menos bonito agora rebolava a minha frente decidido me transformar em uma celebridade. O pior é que a galera comprou a ideia, e os vídeos viralizaram instantaneamente...

— Cíntia, que palhaçada é essa, minha família inteira está me ligando, você ficou maluca? — perguntou Raul completamente transtornado ao telefone. — Que roupas são essas, nem parece você, nunca foi de usar maquiagem.

— As pessoas mudam.

— Cíntia, está ridícula, deveria sentir vergonha por sair assim na rua.

— Ridículo é você tentando estragar minha noite. Eu estou muito feliz, acompanha lá nas redes sociais o paraíso que escolhi para te superar. Não esqueça de deixar uma curtida.

Desliguei o telefone com lágrimas nos olhos, não sei porque fui atender, estava tão animada com a festa e ele conseguiu me deixar mal mais uma vez.

— Se chorar por causa daquele traste, eu vou te dar uma surra! — Rafael cruzou os braços à minha frente.

— Ele tem razão, eu não sou essa pessoa, e...

— O cara que chama uma moça de ridícula, só porque ela está bonita, ou está com dor de cotovelo, ou se esforça muito para gostar de mulher — comentou Rodolfo bebericando sua cerveja.

O Raul sempre me botava para baixo com seu ciúme, eu nunca me arrumava, e quando tentei fazer isso para agradar a sua mãe, ele disse que estava com vergonha, fazendo com que ficasse mal. Exatamente como fez agora, mas os rapazes salvaram a minha noite, e não demorou muito eu já estava dançando, cantando e recebendo mensagem de um bêbado na mesa de um bar dizendo que me amava, e que me queria de volta.

"Queridas seguidoras, hoje é o segundo dia do meu desafio, e olhem onde estou"

Virei a câmera para mostrar o mar, o palco, a multidão de pessoas à nossa frente, e minhas companhias, é claro.

"Não vou dizer que não estou sentindo tudo o que aconteceu comigo, eu nem sei como essa loucura toda vai terminar, ainda estou juntando os cacos, mas também não vou ficar chorando em frente a TV com um pote de sorvete na mão. Eu mereço mais do que isso, e você que está passando pela mesma situação que eu, que confiou em uma pessoa que te prometeu o sol, e entregou uma lanterna sem pilha, você também merece. Se arrume, se cuide, se jogue, a vida é muito curta para viver chorando por quem não teve capacidade para te fazer sorrir".

E mais uma vez, o vídeo viralizou como a velocidade da luz.

Raul, não parava de me ligar, e eu também não parava de receber fotos dele na mesa do bar, bebendo com cara de cachorro abandonado, a galera realmente não perdoa. Tonta que sou, ainda senti pena do traste, vocês acreditam? Mas o Rafael me repreendeu e não deixou ligar para ele, então desliguei o celular e aproveitei a noite.

▬ ☼ ▬

Quando acordei estava perto da hora do almoço, me levantei, tomei um banho e coloquei um conjunto de malha que ganhei do meu agente, como Rafa se autointitulava agora. No celular várias ligações perdidas e mensagens do Raul me pedindo perdão, assim como o endereço para me buscar, e confesso que quase cedi aos seus apelos. Liguei para minha mãe e depois para Manu, que incentivou a levar o desafio até o fim, estava bombando na Internet e já começava a gerar um certo lucro. Não é que o Rafael tinha razão?

— Nossa, que cheiro bom — falei ao adentrar a cozinha e me deparar com Rodolfo descascando alguns legumes na bancada. — Precisa de ajuda?

— Não se preocupe com isso, já estou terminando.

— Eu posso lavar a louça — falei indo em direção a pia.

— Depois eu coloco na lavadora, é que...

Antes que ele terminasse o que dizia, eu já havia aberto a torneira que estava quebrada e um jato de água veio sobre mim. Rodolfo correu para me ajudar, mas a pressão da água era forte e escapava pelos seus dedos molhando a nós dois, e a cozinha que já não era tão grande.

— O registro, fecha ele, é ali no canto — disse ele já todo encharcado.

— Eu não alcanço!

Corri para pegar um banquinho, acabei escorregando e levando Rodolfo comigo. Agora éramos dois esparramados no chão, água para todo lado e um Rafael se acabando de rir com o celular apontado para nós, é lógico que primeiro ele filmou e só depois fechou o registro da água.

Não preciso dizer que o vídeo alcançou milhares de visualizações em questão de minutos como tudo o que ele postava...

— Se machucou? — perguntou Rodolfo aos risos.

— Quase quebrei o curanchim, mas estou bem, eu acho.

— O quê? — suas sobrancelhas se elevaram.

— Nada, não, esquece — falei me levantando com sua ajuda. — Me desculpe pela bagunça, eu vou limpar, e...

— Eu comprei a torneira, já era para ter trocado — Rafael jogou o objeto para o irmão.

— Acho que o almoço vai atrasar — falei envergonhada.

Eu e o Rafa limpamos a bagunça enquanto Rodolfo trocava a torneira. Aquele episódio atrasou o almoço, mas nos proporcionou muitos risos, ainda bem que ninguém se machucou e que seus móveis eram de qualidade, se fosse os meus, teriam virado farinha e teria que vender um rim para pagar o prejuízo.

"Cíntia, minha norinha linda, estamos sentindo a sua falta, temos que dar continuidade aos preparativos do casamento, o Raul está muito ansioso, ele te perdoou, já pode parar de se esconder, vai ficar tudo bem. Te amamos viu, volta logo."

Dizia um áudio da minha "digníssima" sogra, que, agora resolveu me amar.

Após o almoço notei uma movimentação suspeita entre os irmãos que confabulavam alguma coisa na sacada enquanto eu estava na sala respondendo algumas mensagens de pessoas que nem eram próximas, mas resolveram me dar conselhos sobre a vida. Será que é só comigo que isso acontece?

— Tenho um compromisso inadiável com um surfista que conheci no show, mas o gostosão aqui vai te acompanhar no passeio — disse Rafael digitando algo em seu celular.

— Podemos sair outra hora, eu não me importo — comentei tímida.

— Não mesmo, temos que gravar vários vídeos para ir postando, o Rodolfo não morde, fica tranquila.

— Nem pensei nisso — falei sentindo o rosto esquentar, na verdade eu pensei sim.

— Ótimo, eu estou de saída, e vocês dois, não se comportem, meus amores! — Rafa jogou um beijo a distância e se foi.

— Bem, eu acho que sobramos — desviei o olhar.

— Eu não tenho os encantos do meu irmão, mas posso ser uma boa companhia — Rodolfo sorriu me entregando uma sacola com biquínis, que nem sei de onde tirou, mas com certeza, era obra do seu irmão. — Se arrume vamos à praia.

Meu rosto esquentou imediatamente, eu estava próxima do Rafa, tínhamos até uma certa intimidade já, mas o irmão era uma interação ou outra e agora estávamos sozinhos, com a missão de gravar mais vídeos sendo que em sua presença eu ficava completamente desconcertada. Isso não ia prestar.

▬☼▬

Eu que estava acostumada com roupas largas e discretas, agora me observava de biquíni em frente ao espelho, pensando se colocaria o short, ou não, por fim, optei por colocar. Se o Raul me visse assim, diria que estava vulgar e me faria tirar na mesma hora, mas era praia as pessoas usam roupas abertas, um calor daquele, como se esconder embaixo de pilhas de tecidos? É incrível como mesmo longe, eu ainda me importava com sua opinião sobre mim, ele vivia me reprimindo até em meus pensamentos.

Rodolfo não era de muita conversa, ou estava sorrindo, ou me olhando de um jeito que não conseguia decifrar. Com o Rafael eu ria, fazia piadas, até falava umas besteiras, mas agora o clima era diferente, sabe-se lá como aquele passeio terminaria.

— Que lugar lindo — falei ao descer da garupa de sua moto.

— Já andou de tirolesa? — perguntou tirando o capacete.

— Aquela corda que fica pendurada lá nas alturas? Eu nunca nem vi um trem desse — respondi corada.

— Sempre tem uma primeira vez.

Ele me disse que seu gosto para diversões era diferente, mas não imaginava que me colocaria em uma corda bamba, a sei lá quantos metros de altura, para descer passando sobre um rio.

"Oi minhas lindezas, estou aqui para gravar mais um vídeo do tão comentado desafio, e olha aonde me enfiaram. Eu não sei se consigo pular daqui, é muito alto, estou tremendo, vocês não têm noção do arrepio que dá olhar lá para baixo. Aqueles moços ali me disseram que é seguro, será que eles sabem que me botaram chifres, e não asas? Eu vou tentar, torçam para que não tenha um piripaque no caminho".

— Está pronta? — perguntou o loiro que me amarrou naquele negócio.

— É normal querer fazer xixi?

O cara me olhou estranho, e riu, mas minha pergunta foi legítima.

— Te vejo lá embaixo — Rodolfo acariciou meu rosto com um sorriso.

Não entendi aquele gesto, mas também não tive tempo de raciocinar sobre isso, quando dei por mim, estava descendo em alta velocidade rumo a água que vinha ao meu encontro. Eu gritei minha mãe, pai, a família inteira, só não tive um treco porque não deu tempo, já estava dentro da água sendo resgatada por um ruivo que ria do meu desespero. Mas olha que abusado.

"Gente, foi muito bom, sensação de liberdade, experimentem, muito bom mesmo. Daqui a pouco posto mais vídeos desse passeio que está apenas começando."

Quando desliguei a câmera, caí sentada na areia de pernas bambas, e cara de assustada, eu nunca fui do tipo corajosa, mal subia em árvores por medo de cair de cabeça, e agora saltei lá do alto amarrada numa corda. O que a gente não faz para superar um chifre.

— Por que curte essas coisas? — falei caminhando ao lado de Rodolfo na praia.

— Eu gosto de sentir essa sensação de liberdade.

— Sempre tive vontade de viajar, conhecer esses lugares bonitos, mas nunca tive oportunidade.

— Seu noivo nunca te levou para viajar?

— Ele viajava muito, mas nunca me levava, acho que era por vergonha, eu sou muito atrapalhada.

— Eu não te acho atrapalhada, você é espontânea, gosto do seu jeito.

— Sério?

— Sim, eu não entendo o cara te maltratar assim.

— Você me acha bonita? — parei à sua frente.

Ele correu seu olhar sobre mim e me ofertou aquele sorriso que eu já gostava. Não sei porque perguntei aquilo, foi um impulso e já tinha feito, às vezes eu cometo esses disparates, já tentei mudar, mas não consigo controlar.

— Você é linda — afirmou colocando uma mecha de cabelo atrás da minha orelha, antes de acariciar meu rosto com as costas da mão.

Fechei os olhos ao sentir seu toque, era tão bom, eu não podia gostar disso, não era certo, ainda não tinha resolvido minha situação como deveria, mas também não posso dizer que não gostei. Fazia tanto tempo que não me sentia assim, era como se estivesse renascendo das cinzas. Aquela carícia durou alguns segundos, mas foi o suficiente para deixar meu coração acelerado, e quando meu olhar encontrou o seu, com certeza as sardas que estampavam a pele branca, deveriam estar vermelhas, tanto de sol, quanto de vergonha.

— É... — limpei a garganta tentando disfarçar meu nervosismo. — Qual a próxima loucura?

— Loucura?

— O desafio — sorri tímida. — Temos que gravar outro vídeo para postar amanhã.

— Ah, sim, o desafio, então, já pulou de parapente?

— Misericórdia!

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